Bloodlines escrita por Srta Who


Capítulo 10
Capítulo X




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Capítulo X –

Teatro de Sombras

 

            Levi mal podia acreditar que era humanamente possível estar tão cansado. Ele se encontrava ridiculamente sentado no sofá meio acordado e meio dormindo depois de tomar café com sua mãe e limpar todo o apartamento como sempre fazia aos domingos. Kuchel tinha saído. O rapaz não sabia para onde, mas no momento que a viu na porta o sofá lhe parecia especialmente confortável e reclamar desproporcionalmente penoso então ele continuou calado com a mão segurando o queixo afim de não permitir todo seu corpo pender para frente enquanto ouvia a porta fechar e o barulho causado pelos sapatos de sua mãe diminuir até se perder completamente no ar. De uma coisa Levi estava certo, teria uma bela dor no pescoço depois.

            Mas o estudante realmente não se importava com qualquer dor que fosse, contanto que pudesse fechar as pálpebras sem imaginar um par de olhos cinzas passando por atrozes situações. Infelizmente, para Levi, a troca não era equivalente, o torcicolo viria, mas aparentemente, não acompanhado de qualquer sono. Por que ele se importava afinal de contas? É! Quem se importa se uma pessoa sofreu? Quem se importa se Mikasa, seja qual for o sobrenome dela, passou pelo inferno? Ele também passou! E adivinhem só? Estava vivo, e, na medida do possível, bem!

            Ele tentava ao máximo internalizar aqueles pensamentos tamborilando furiosamente os dedos na própria face, ainda bem que mantinha as unhas sempre bem cortadas, do contrário, começaria a abrir buracos na pele. No entanto, a verdade que nem seus dedos coléricos, nem seus pensamentos ácidos podiam calar era que ele tinha medo. E se ela tivesse passado pelo mesmo que Kuchel. E se Mikasa também tivesse sido... sido... até a palavra emperrava em sua mente porque trazia consigo a memória indesejada de suas mãos infantis cheias de um sangue repulsivo que começava a estancar e grudar no cabo da enorme faca.

            Levi não pensava nisso com frequência, nem se debulhava em lágrimas quando o fazia. Ele apenas se sentia nauseado e tinha vontade de correr para o banheiro e lavar para longe de si a sensação do sangue grudando em sua pele como malditas trepadeiras numa parede de jardim. Ele não lembrava muito além disso. Todo o resto tinha sido bloqueado por seu cérebro e quando tentava evocar qualquer acontecimento mais remoto àquela parca percepção encontrava-se diante de um teatro de sombras distorcidas no qual cada uma desempenhava soturnos e misteriosos papéis. Da menor Levi conseguia ler os pensamentos. Eram todos confusos vislumbres sobre vida, morte, honra e desgraça regados de um medo tão real que parecia prestes a engoli-la. Enquanto ele, solitário espectador, tentava ver algo que não fossem gestos mecânicos e furiosos naquele pesadelo de loucura.

            E aquilo era o que realmente o incomodava e lhe tocava a respeito de Mikasa naquele momento. Desde os oito anos quando sua mãe o levara numa psicóloga Levi estivera sozinho na plateia assistindo aquele delirante espetáculo de tempos em tempos. E agora, olhando ao seu redor depois de tantos anos ele via outra pessoa na cadeira ao lado. Outro ser humano! Não uma sombra distorcida de pensamentos tortos, mas um ser humano de carne e osso que também estava igualmente machucado e que também não se dava conta de qualquer coisa que não fossem o palco e os atores, embora Levi tivesse a impressão de que eles interpretavam uma peça completamente diferente para ela.

            Porém, não era apenas um humano, era uma mulher. Aquela era a primeira vez em anos que apreciava verdadeiramente a beleza feminina, os traços delicados de uma Afrodite tão descritos por todos os poetas e apaixonados de todas as eras que ele jamais entendera. Quando entrou na adolescência em seu primeiro ano do colegial Levi conheceu muitas garotas lindas e vaidosas com seus cabelos longos de todas as cores, as roupas curtas o perfume de rosas e a maquiagem extravagante. Algumas delas gostavam dele, achavam-no intrigante e até belo. Mas Levi nunca gostava delas. Lhe pareciam distantes, e mesmo que não parecessem, nunca o entenderiam. Nunca andariam por seu teatro particular e compartilhariam de suas mais sombrias memorias.  Como ele poderia gostar de alguém que nunca o conheceria por completo? Alguém para quem ele seria sempre apenas um rosto sem alma?

—Acho que vou enlouquecer. – Levi murmurou para si mesmo pouco antes de seu cérebro finalmente apagar devido ao cansaço.

            Minutos, ou horas mais tarde, ele foi acordado por um barulho de correria do outro lado da porta. “Devem ser aqueles malditos moleques do apartamento em frente”. Ele se levantou furioso, pronto para manda-los ficarem quietos. Mas quando abriu a porta tudo o que viu foram duas cabeças, uma loira e outra cor de terra.

—Lilian? Isabelle? O que vocês estão fazendo aqui? – As gêmeas estavam ofegantes e traziam os rostinhos redondos avermelhados, e os vestidos que usavam estavam molhados de suor.

—Papai... – Isabelle tentava falar entre pesadas lufadas de ar. – E mamãe nos trouxeram, titio.

—O onde estão meu irmão e a quatro olhos?

—Conversando... conversando com a vovó. – Lilian respondeu.

—Sinceramente... Hanji deveria cuidar melhor de vocês. Estão sempre empapadas de suor. Andem entrem, acho que precisam de água.

—Você está bem, titio? – A loira Lilian perguntou depois de tomar dois copos cheios de água gelada.

—Hm? Por que não estaria?

—Você parece o papai.

—E o que tem de errado com o pai de vocês?

—Nada. Só estive ocupado. – Uma voz bem familiar retrucou da porta.

—Não deviam deixar as filhas de vocês correndo por aí. E se eu fosse um pervertido?

—Bom, ainda bem que você não é. – Hanji comentou ríspida.

—Qual é o problema quatro olhos? Não vai surtar? Nem gritar comigo?

—Outra hora quem sabe.

—O que você fez com ela, Erwin?

...

            O domingo passou num piscar de olhos. Levi tinha de admitir que até foi divertido ter suas sobrinhas correndo pelo apartamento, a não ser é claro quando elas tentaram usar sua maquete, que deveria ser entregue na terça, como casa de bonecas. E apesar da estranheza de Erwin ele gostou de tê-lo de volta em casa nem que fosse só por um dia, Levi sentia muita falta do irmão mais velho ás vezes. Então apesar do sono e do calor infernal que foi a tarde o dia foi de se aproveitar.

            Felizmente essa manhã estava agradável. O céu primaveril de Shiganshina estava cheio de gordas nuvens acinzentadas as quais ociosamente eram sopradas pela brisa matinal, ora cobrindo o sol e deixando a rua em trevas, ora permitindo àquela gigante bola de fogo no céu estender seus raios calorosos até as pessoas que caminhavam para seus trabalhos, escolas, faculdades e só Deus sabe mais onde. Ainda era possível ver uma pessoa ou outra completamente embriagada e descabela que provavelmente passou a noite inteira em alguma festa. Levi nunca entendeu esse impulso quase doentio da maior parte da cidade de ir de festa em festa ficando cada vez mais bêbados ou drogados. Será que eles não sabiam o quão imundos e nojentos ficavam naquele estado?  

            Quando já podia ver a fachada de Hreidmar um homem na casa dos quarenta com um horrível chapéu panamá na cabeça passou por ele fazendo alguma piada idiota sobre o seu tubo de projetos ser grande demais para um pirralho nanico como ele carregar. Levi teve vontade de colocar o tubo num lugar de onde o velho não conseguiria tira-lo, mas ia ser um saco ir parar na delegacia e ter de explicar a Erwin porque estava brigando com alguém que tinha duas vezes a sua idade, de novo. E mesmo sabendo que todos os policiais morreriam de rir seu irmão ia ficar com aquela cara emburrada de sempre, então era melhor ficar quieto dessa vez. Ele suspirou e subiu os degraus de mármore um tanto frustrado.

            “Devo estar ficando louco. Ou talvez Farlan tenha finalmente conseguido me contaminar com todas aquelas baboseiras românticas que fala sobre Isabel. Ou talvez os dois” Levi pensou assim que viu Mikasa sentada na sala de aula vazia e sentiu algo dar um pequeno salto bem debaixo de sua caixa torácica. Desde quando perfis delicados o interessavam?  Desde quando cabelos negros um pouco abaixo dos ombros lhe pareciam tão... tão interessantemente belos?  E, mais importante do que isso, desde quando ele tinha um coração que acelerasse levemente ao ver todas essas características?! Definitivamente, Levi estava louco.

—Bom dia. – Ele cumprimentou tentando ao máximo não a olhar. Tinha certeza de não estar corado, mas a ideia dos olhos cinzentos o encarando não lhe era agradável. Conseguira se manter distraído ontem, e até dormir à noite, mas ainda não queria defrontar-se com a alma que eles podiam lhe mostrar.

—Alguma coisa errada? – Ela perguntou depois que o rapaz se sentou à sua frente como vinha fazendo todos os dias no último mês.

—O que? – “Merda! Ela lê pensamentos por acaso?!” — Por quê?

—Você me viu há mais de dois segundos e ainda não me chamou de pirralha. “Ah, é isso...” — Está doente? – Mikasa tocou o pescoço dele para checar sua temperatura tendo sua mão quase que imediatamente retirada pela dele.

—Estou bem. E achei que você não gostava de ser chamada de pirralha.

—E eu que você não se importava com o que acho ou deixo de achar.

—Se chama ser um cavalheiro.

—Faria sentido se você fosse um.

—Está tentando me irritar?

—Está funcionando?

—Sua pirralha. – Ele praguejou em voz baixa pensando no quão insano deveria estar àquela altura.

—Está vendo? Agora parece normal. – Mikasa comentou num tom brincalhão, que o fez questionar se ela estava realmente se divertindo em irrita-lo ou se estava fingindo animação por ser conveniente à conversa.

            Aquilo era diferente do colegial. Mikasa não usava doces e sufocantes perfumes enjoativos que de tão fortes lhe davam vontade de vomitar. Ela não se atrasava todos os dias por passar horas e horas colocando todo tipo de maquiagem possível no rosto e também não ria estardalhada e irritantemente há cada três frases dele. O que tornava aquele um momento dissidente de todas suas outras experiências com garotas. Levi podia sentir claramente em sua postura, sua voz e até no ar quente que ela soltava em seu pescoço por estar tão próxima, Mikasa era como ele. Talvez fosse por isso que o rapaz se sentia tão confortável agora quanto estaria se fosse Farlan ou Isabel ali, talvez até mais.

—Você é irritante. – Ele disse com um sorriso invisível para ela.

—E você é uma flor de pessoa! – Mikasa ironizou.

—Então por que fala comigo?

—Não estou falando sozinha, estou?

—Mas foi você quem começou falando que eu estava estranho.

—Estamos conversando há mais de cinco segundos, acha isso normal? Podemos até estar quebrando uma lei da física sabia? Aquela que fala sobre nanicos esquisitos não serem amigáveis.

—Você não faz ideia de como é engraçada... – Levi disse revirando os olhos.

            Eles continuaram conversando por vários minutos, Mikasa encarando a nuca raspada a sua frente e Levi olhando sem interesse algum as pessoas que cruzavam a rua para entrar no prédio. A garota riu discretamente quando Levi lhe contou sobre o velho que encontrou na rua. Ele não pode evitar de erguer o canto dos lábios num meio sorriso vitorioso. Tinha certeza que ao menos aquela risada era real.

            Enfim os dois espectadores do teatro de sombras abandonavam o silêncio torturante a qual se submeteram por longos anos. Finalmente tinham alguém para distrair-lhes do dantesco show de horrores. No palco as silhuetas negras como o breu continuavam a interpretar sua peça em um ato sem perceber que ninguém os assistia. Talvez houvesse mais alguém na plateia. Mas no momento nenhum dos dois se importava. Estavam muito distraídos para notar qualquer coisa que extrapolasse o pequeno universo do espaço ocupado por suas mesas. Por isso nem Levi nem Mikasa se deram conta da pequena multidão que em silêncio se acotovelava na porta. Todos, desde o Sr. Pixis mais à frente de todos até os idiotas que sentavam mais ao fundo queriam checar se era verdade que o temível Levi estava sorrindo para alguém que não fossem seus dois amigos. E ainda por cima uma garota. Uma bela garota! Aquela certamente era a coisa mais chocante que veriam àquele dia.


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