O que não dá pra evitar e não se pode escolher escrita por The Escapist


Capítulo 4
IV


Notas iniciais do capítulo

Agora vamos descobrir por que o pobre Ulisses faz uma ideia tão baixa de si mesmo, coitado. Ou não.
Inês, obrigada pelos comentários, alegra-me muito saber que você está gostando. Mas sinta-se à vontade para tecer críticas, ok? Sabe que vindo de você, serão muito bem recebidas.



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IV

1998/1999

 

Ulisses olhou mais uma vez para o espelho do elevador e sentiu vontade de bater com a cabeça na parede. Não queria fazer drama por besteira, porém, ignorar os óculos de grau no rosto era impossível. Se tivesse ficado calado sobre as dores de cabeça e a irritação nos olhos, sua mãe não teria insistido em levá-lo ao médico. Agora teria que lidar com as consequências.

— Idiota — disse para sua imagem quando o elevador parou. Assim que pisou no hall, o motivo real de seu mau humor veio à tona. Ele e Arthur estavam completando cinco meses de namoro, mas não havia nenhuma comemoração programada.

Apesar de não ser o tipo romântico apaixonado, queria uma noite bacana, daquelas com velas, vinho e chocolate. O que teriam era cerveja, pizza e um Davi recitando termos médicos.   

Ao entrar no apartamento, Arthur estava sentado na sala, o que era uma surpresa, já que ele, além de não gostar naturalmente de socializar, vivia babando no novo computador e programando. Os quatro pararam de conversar quando ele bateu a porta, tamanha a força que usou para fazê-lo.

— O quê? — dissimulou. Os amigos ficaram olhando para ele, indiferentes aos motivos de sua irritação. — Ok, podem rir. — E eles riram, mais de sua cara emburrada do que dos óculos, claro, porque todos ali usavam um. 

— Bem-vindo ao clube — disse Leonardo. 

Voltaram a conversar de onde haviam parado. Ulisses foi guardar a mochila, depois sentou no sofá ao lado de Arthur. Quase sem se dar conta, colocou o braço em volta dos ombros dele e ficaram assim por um bom tempo, sem ninguém dar muita atenção ao fato.

A pizza não demorou a chegar. Enquanto comiam e bebiam, Davi enumerava as possíveis doenças que todos teriam no futuro.

— Paciente pro seu consultório, você já tem, manezão — Ulisses falou.

— Isso se ele não for o primeiro a ter alguma dessas doenças de que tanto gosta de ficar falando — Leo completou. — Precisa ficar se exibindo o tempo todo?

— Desnecessário.

— Não tô me exibindo.  

A conversa ainda durou até quase de madrugada e, apesar de ser tarde quando resolveram ir para os quartos, Arthur ainda estava decidido a passar um tempinho no computador.  Quando Ulisses entrou, batendo a porta e chutando a cama, tirou um pouco de sua concentração. 

— Por que você tá assim? — perguntou, preocupado.

— Assim como? — Ele tirou os óculos e quase os jogou em cima do criado-mudo.

— Você não pode estar fazendo essa birra toda por causa dos óculos, cara, pelo amor de Deus! Você tem dezenove anos! Para de ser infantil. — Arthur não queria dar uma bronca nele, mas não se segurou. Tanto narcisismo chegava ao ponto de irritar. — Eu uso óculos desde os sete anos e não morri por isso.

— Eu não tô chateado por causa dos óculos. — Tentou disfarçar o comportamento imaturo. Detestava quando agia de maneira tão superficial na frente de Arthur. — Eu tinha planejado algo pra hoje, uma coisa que a gente não tem feito muito, sabe? Tipo sexo. Mas parece que o seu computador é mais interessante do que eu.

Arthur estava olhando para a tela preta com letras verdes, digitando rápido no teclado. Parou e encarou o namorado, depois balançou a cabeça. 

— Ele com certeza não é reclamão como você. Por mim, estaria te beijando desde que você entrou nesse apartamento. Lembre-se de que o segredo é seu, as regras são suas.

Ulisses ficou de pé atrás da cadeira e colocou as mãos em seus ombros. Respirou fundo, sentindo-se mais idiota do que nunca. Inclinou-se e deu um beijo na testa dele.

— Desculpa? Eu prometo que vou tentar resolver isso em breve.

Se aquela fosse a primeira vez que ele fazia semelhante promessa, talvez Arthur ficasse mais animado, contudo, limitou-se a um sorriso constrangido e logo desconversou.

— Nós podemos fazer muito sexo no fim de semana — disse enquanto voltava a atenção novamente para o computador. 

— Não vai rolar. Esqueceu que é aniversário da minha mãe no domingo? Meus avós estão vindo do Rio Grande do Sul e eu vou ter que ir pra casa. Vai ter almoço em família...  Essas coisas...

O que mais doía era que eles estavam completando cinco meses de namoro e Arthur não podia ser convidado para um almoço de família, no qual estariam as namoradas dos dois irmãos dele.

— O que é isso que você tá fazendo? — Ulisses perguntou, apontando para a tela. Arthur sentia como se ele pudesse ouvir seus pensamentos e quisesse desviar-se do assunto.

— É um programa que eu tô escrevendo.

— Você ainda vai trabalhar na Apple.

Arthur apenas sorriu, um pouco envergonhado com o pensamento bobo de que seria ótimo se aquilo acontecesse.

— Você poderia ir passar o fim de semana lá em casa também...

Ouviu a sugestão, mas tratou logo de descartá-la. Ele já aguentava o segredo do relacionamento há um bom tempo, entretanto, passar o final de semana todo fingindo que eram apenas amigos seria o cúmulo da hipocrisia. 

— Acho que não... Eu tenho um monte de trabalhos pra terminar...

Ulisses sorriu e o beijou novamente, então achou melhor deixá-lo com seus códigos e números. Sabia que não era justo exigir mais do que já tinha, quando devolvia tão pouco em troca.

Infelizmente, eles tiveram pouco tempo para comemorar os cinco meses de namoro. Apesar de não ser tão dedicado à faculdade quanto seu namorado, Ulisses precisava estudar de vez em quando também.

— x —

No fim de semana, sua casa estava cheia de parentes, incluindo os gêmeos de oito anos que dividiam o quarto com ele e que já haviam conseguido deixá-lo com saudades da bagunça da república. No sábado, enquanto os pais dos garotos saíam para passear com os outros adultos da família, ele ficou encarregado de entreter as crianças — isso porque ainda era tratado com uma em alguns momentos, então era suposto que se desse melhor com elas, mas todos estavam enganados.

Com Patrícia e Carolina, as primas adolescentes de doze e treze anos, até que as coisas não foram tão ruins; elas eram tranquilas e ficaram o dia quase todo lendo e conversando sobre as Chiquititas. Por mais de uma vez, reparou nos olhares e risadinhas que vinham em sua direção, mas, de forma geral, elas não o incomodavam.

Com os gêmeos, a história era diferente. Os garotos mexiam em suas coisas, jogavam seu videogame, pulavam na cama e não paravam de fazer barulho. Ulisses só conseguia se perguntar se era irritante daquele jeito quando criança e por que as pessoas insistiam em ter filhos, se eles se tornavam aquelas criaturas insuportáveis.

— Por que você tá com essa cara emburrada, Júnior? — Marcelo perguntou assim que ele sentou na espreguiçadeira vazia. Seu irmão mais velho só o chamava de Júnior quando queria deixá-lo irritado, embora àquela altura Ulisses já tivesse atingido o limite da paciência. Estava rezando para aquele dia acabar e todo mundo voltar para suas casas.

— Vou matar aqueles dois — disse, apontando para Diego e Lucas, brincando na piscina. — Como duas crianças conseguem ser tão irritantes? Sério mesmo, eu nunca vou ter filhos.

— Não diga “desta água não beberei” — seu irmão Maurício sugeriu e completou com uma tapinha na sua cabeça.

Aos três, juntaram-se Henrique, o pai dos gêmeos, e Ricardo, marido de uma de suas primas. Um dos motivos por que não gostava daquelas reuniões era que sempre começavam a perguntar sobre seus relacionamentos. Se ele não era o maior fã de tê-los, imagina falar sobre o assunto.

Entre as lamentações de Henrique por não ter tempo para sair mais por causa das crianças e Ricardo se gabando por ter xavecado uma novinha — que Deus o livrasse de Vanessa descobrir —, começaram a enchê-lo de perguntas. Mesmo sabendo o quanto ele detestava isso, seus irmãos apenas ajudavam.

— Sério que você não tá saindo com nenhuma gatinha?  Na minha época, tinha umas meninas lindíssimas na USP. — Ricardo falava como se a época dele tivesse sido há muitos anos. Ulisses apenas rolou os olhos. — Essa juventude de hoje, tsc...  

— Pois é, cara, você não tava de rolo com uma menina? O que aconteceu com ela? — Marcelo emendou, e os três riram. — Você não gostou da fruta?  

— Ah, pelo amor de Deus, parem de bancar as “tias do pavê”. — Ele desistiu de manter uma conversa civilizada com os outros rapazes e saiu, resmungando. 

— Ei, Ulisses, volta aqui! — Ainda ouviu Marcelo gritar, mas não voltou.

Foi andando em direção à churrasqueira, na qual estavam seu pai, o avô e o tio Jorge. Provavelmente falavam sobre o “tempo deles” ou, pior, sobre Medicina. Perguntava-se por que aquela família de médicos nunca percebia o quanto era chato ficar repetindo o mesmo assunto em todas as reuniões. 

— Olha a ovelha negra aí! — O avô, que também se chamava Ulisses, o saudou, com a alegria típica de quem já havia bebido mais do que era recomendado para alguém daquela idade. — Nosso futuro juiz.

O rapaz sorriu, encabulado. Parecia que, para seu avô, o único consolo à sua decisão de não ser médico, como a maioria dos homens da família, era que ele teria o invejável tratamento de Meritíssimo, pois já contava como certo que o neto se tornaria juiz no futuro.

Como tinha previsto, a conversa dos três homens não estava muito animada. Seu pai tentou ensiná-lo a manejar a churrasqueira, porém, como já havia acontecido das outras vezes, não obteve sucesso. Ulisses limitou-se a ficar petiscando, ouvindo a conversa sem dar nenhuma atenção especial, com os pensamentos longe. Em Arthur, mais precisamente.

Havia um risco muito grande em fazer comparações. A relação com Arthur era diferente daquela que tinha com a família, porém, não evitava pensar que, se fosse para escolher, sua preferência seria por ele. Ao mesmo tempo, estava claro que a escolha não seria tão simples assim. Arthur poderia estar ali naquele momento, se ele tivesse coragem suficiente para dizer aos pais que tinha um namorado. Isso, no entanto, ainda lhe parecia algo difícil de fazer. Quando ouvia o pai falar, cheio de orgulho, de Marcelo e de Maurício, parte de si se doía de inveja; queria que João Ulisses inflasse o peito para falar sobre o filho caçula também. Ao ver a mãe planejar, empolgada, o casamento do mais velho, não evitava pensar em como dona Ruth lidaria com a ideia de que ele gostava de um garoto.

Talvez fosse uma pessoa horrível por isso, mas quem poderia condenar um filho por desejar o amor dos pais? Eles não eram más pessoas, todavia, tinham opiniões cheias de preconceito. Eram tradicionalistas, apegados a uma visão mesquinha e rígida de certo e errado. Qualquer relacionamento que contrariasse a concepção de família tradicional, seria errado.

— x —

Ulisses voltou para a república depois do fim de semana em família. Ficara dois dias sem ver Arthur e isso pareceu um tempo eterno. Era uma noite de quarta-feira e estavam sozinhos em casa; todo o material de estudo estava em cima da cama, como se quisesse lembrá-los do fim de semestre que se aproximava. Todavia, esta não era sua preocupação imediata, aliás, enquanto beijava o pescoço de Arthur, correndo a mão pela lateral do corpo dele e se encaixando entre suas pernas, mal se lembrava de que havia faculdade.

— Ulisses, espera um pouco... — Arthur pediu, apesar da dificuldade que era pensar quando tinha aquela boca percorrendo sua pele.

— Hum? O que foi? — Temia ouvir o já conhecido “tenho que estudar” que sempre jogava um balde de água fria em suas expectativas.

— Nada, é só... — Tirou os óculos e os deixou em cima do criado-mudo. Não queria correr o risco de deixá-los cair. Depois empurrou os livros, fazendo-os cair no chão. — Pronto. Todo seu.

Ulisses sorriu, animado. Adorava quando seu namorado o escolhia em detrimento dos estudos; fazia seu ego inflar.

— Que bom, porque eu tenho algumas coisinhas pra fazer com você... — intercalando com beijos e lambidas, sussurrou no ouvido de Arthur as coisas que pretendia fazer.

— Só tô ouvindo você falar... — devolveu, provocativo, sabendo o quanto ele gostava desses joguinhos. Falar sacanagens era um fetiche que achava estranho, mas não evitava se arrepiar ao ouvi-las.

No entanto, a brincadeira deles foi interrompida quando escutaram o toque da campainha.

— Deve ser engano, deixa pra lá — sugeriu, e Ulisses acatou o conselho, mas o som voltou a soar.

— Deve ser brincadeira, né?

— Talvez algum dos caras tenha resolvido voltar mais cedo... — ponderou. — Vai lá ver o que é...

Ulisses já se levantou pensando na maneira mais dolorosa de matar a pessoa que o tinha atrapalhado. Será que era tão difícil deixar que um casal transasse em paz?

Quando abriu a porta, pronto para apontar o dedo para a cara do intruso, foi ele mesmo quem ficou paralisado.

— Oi, desculpa incomodar...

Era uma garota. Ela estava com um short curto, uma camiseta regata branca e uma camisa de manga longa dobrada até o cotovelo por cima; usava dreadlocks nos cabelos. Nunca tinha visto uma menina de dreads, e isso o deixou de boca aberta por vários segundos.

— É que eu me mudei recentemente pro apartamento aqui do lado, e acabei de chegar de viagem... Então, acho que eu meio que perdi minhas chaves... e minha colega só chega amanhã... Cara, eu tô morta de vergonha de pedir, já que você nem me conhece... mas... será que eu poderia.... Ah, meu Deus, eu sei que sou maluca por pedir isso. Você nem me conhece...

— Ok, calma, moça... — Ele passou a mão pelos cabelos, um pouco atordoado. Não estava sabendo lidar com a presença daquela garota à sua porta, aparentemente pedindo abrigo. Engoliu em seco, tentando pensar na melhor maneira de dizer “não” sem parecer grosseiro. Gostaria de poder ajudar, mas, por Deus, ele e Arthur estavam no meio de algo importante. A última coisa de que precisavam era de um estranho para interromper tudo. — Olha, eu...

— Ulisses, o que...? Ah! — Arthur tinha estranhado a demora e resolveu ir ver o que estava acontecendo. Ele também estacou quando viu a moça. — Oi.

— Oi. — Ela sorriu, visivelmente sem jeito, enquanto coçava a cabeça. — Eu não queria incomodar nem nada, mas é que não sei mesmo o que fazer... — Então contou novamente a história, só que dessa vez com mais coerência.  

Morava no apartamento da frente, mudara-se há menos de três semanas, no entanto, logo depois da mudança, tivera que retornar à sua cidade — o que talvez explicasse por que os rapazes nunca a haviam encontrado. Durante o tempo em que estivera fora, perdera a chave e não contava que a amiga com quem morava também estivesse viajando quando voltasse.

— Não tem sido um ano fácil pra gente... — Suspirou, embora não tivesse entrado em detalhes sobre as dificuldades. — A Luana volta amanhã, então...

— Olha... — Arthur começou, já disposto a deixar que ela ficasse, afinal, com os colegas fora de casa, dois quartos estavam desocupados. Ulisses, porém, tinha uma solução diferente para o problema dela.

— A gente pode chamar um chaveiro. E você pode ficar aqui até ele chegar, claro — acrescentou, quando percebeu que fora um pouco brusco.

— Muito obrigada. Vocês são uns amores.

Ulisses encontrou o telefone de um chaveiro vinte e quatro horas na lista telefônica e ligou para ele. Pediu que não demorasse muito.

A jovem, que, depois de mais agradecimentos, se apresentou como Natália, estava contando praticamente a vida inteira a Arthur enquanto esperava.

Se não tivesse certeza de que ele era gay, Ulisses teria ficado com ciúmes do jeito como seu namorado a tratava, mas isso seria idiotice demais, porque ele só estava sendo legal e ajudando. 

Demorou quase três horas até que o chaveiro tivesse aparecido e feito o serviço, o qual Natália, aliás, não podia pagar — provavelmente as chaves e o dinheiro haviam sido perdidos no mesmo lugar.

— Tudo bem. Eu te empresto. — Ulisses resolveu o impasse antes que o chaveiro começasse a criar caso.

Depois de resolvido o problema, Natália voltou a agradecer a ajuda.    

— Vocês foram muito legais comigo.

— Que isso. Não foi nada.

— Claro que foi. Nossa, vocês devem me achar completamente maluca. — Ela deu uma risada da própria conclusão. — Bom, eu já incomodei demais. Acho que é melhor deixar vocês dormirem.

— Ok, qualquer coisa, pode chamar, tá? — Arthur garantiu ao despedir-se da moça.  Então os dois voltaram para o próprio apartamento.

— “Qualquer coisa é só chamar”? Sério? — Ulisses fez cara feia para o namorado, assim que fechou a porta. — Meu Deus, a menina é maluca e você ainda dá corda!

— Era uma garota precisando de ajuda. O que você queria fazer? Bater a porta na cara dela e deixá-la na rua?

— Ela poderia ser uma ladra, sabia? Com esse papinho de chave perdida... Você acha que ela vai me devolver esse dinheiro? Talvez ela nem more nesse apartamento.

— Você sempre pensa o pior das pessoas.

— Não, é você quem só enxerga o melhor delas, e isso, por Deus, ainda vai te machucar — falou da maneira mais despretensiosa, sem imaginar que seria ele quem mais machucaria Arthur.

Naquele momento, todavia, a única coisa que queria era parar de falar sobre a maluca de dreads e retornar ao que tinham começado antes de ela chegar.

— x —

A presença de Natália acabou se tornando comum no apartamento. Aquela primeira não foi a única vez em que ela bateu à porta pedindo ajuda. Os problemas variavam desde uma lâmpada para ser trocada à falta de água, decorrente de contas não pagas por causa da péssima memória.

Porém, a impressão de maluca e um pouco folgada que Ulisses teve a princípio foi se desfazendo à medida que a conhecia. Ele — e os outros amigos — logo a perceberam como uma garota inteligente e divertida. Natália acabara de fazer dezoito e cursava o primeiro período de História, na USP. Ela não parecia se importar muito com a opinião alheia e tomava decisões por impulso.

Arthur tinha a impressão de que, quando ia ao apartamento deles com a desculpa de pedir ajuda, ela queria mais era ter com quem conversar por algumas horas. Era suficientemente capaz de trocar uma lâmpada e, se tivesse que dormir sem tomar banho por uma noite, não teria problemas. Ela falava sobre a perda recente do pai e sobre o conflito de ideias que tinha com a mãe; sobre como era ser uma garota de dezoito anos que não sabia bem o que queria fazer da vida e que nem tinha muitas pessoas com quem pudesse contar.

Nas sextas-feiras, compravam pizza e cerveja e ficavam lamentando as injustiças da vida. Quanto mais bebiam, mais complicados os problemas pareciam e as soluções propostas também iam ficando mais criativas. Naquela noite em especial, Davi estava decidido a largar a faculdade de Medicina e virar hippie — decisão que obteve o apoio incondicional de todos os amigos.

O monólogo de Natália foi mais longo. Ela havia conversado com a mãe mais cedo, pelo telefone, e ainda estava chateada.    

— Quer dizer, ela não me entende. Quer que eu seja algo que eu definitivamente não sou. — Estava meio sentada, meio deitada no sofá, dividindo o espaço com os livros de Davi. Já havia tomando várias cervejas e parecia um pouco grogue.

— Eu sei o que você sente, irmã — Ulisses ecoou, tão bêbado quanto ela, propondo um brinde a seguir. — Tudo que a gente faz é decepcionar nossos pais.

— Mas ela é minha mãe. Eu ainda espero que ela me ame. Um pouquinho, pelo menos.

— Exatamente.  

Os dois ébrios continuaram compartilhando lamúrias. Eles eram mais parecidos do que gostavam de admitir, tanto que as brincadeiras sobre a possibilidade de formarem um casal não tinham demorado aparecer.

Arthur não gostava nada disso, mas não dizia nada para não levantar suspeitas nos amigos — algo que ele considerava inútil, pois acreditava que já sabiam sobre o namoro deles. Em todo caso, preferia deixar que as brincadeiras corressem soltas, sem dar muita atenção a elas. A proximidade dos dois, porém, se tornou tanta que era difícil ignorar, por mais que se esforçasse para confiar no namorado.

Amava Ulisses, todavia era difícil não se deixar influenciar por sentimentos negativos quando ele era incapaz do simples ato de assumir o relacionamento publicamente. De que adiantava estarem juntos se não era bom o bastante para que ser apresentado às outras pessoas como seu namorado?

Como não sentir ciúmes quando chegava em casa cansado e encontrava o garoto que amava conversando sobre Marxismo e cheio de sorrisos para uma menina? Nem se fosse um santo conseguiria evitar.

— x —

Arthur não conseguia sentir raiva de Natália. Dia após dia, via a amizade dela e de Ulisses mais próxima e mais forte. De certa forma, ela fazia as coisas que deveriam ser dele, como andar de mãos dadas, fazer cócegas nele, assistir a filmes até tarde com a cabeça encostada no ombro dele. Tampouco sentia raiva de Ulisses, e essa falta de talvez um pouco de amor próprio o deixava muito deprimido.

— O que está acontecendo com você? — Ulisses perguntou. Tinham acabado de chegar do cinema e Natália fora com eles. Sentara-se entre os dois e segurara a mão dele durante todo o filme.

— É sério que você tá me perguntando isso?

— Não tô entendendo.

— O que tá rolando entre você e a Nat?

— Quê? A Nat...? Não tá rolando nada. A Nat é minha amiga.

— Eu sou seu amigo, e isso não me impediu de me apaixonar por você. A menos admita que você sente algo por ela.

— Você tá maluco — afirmou, sua voz, no entanto, não demonstrava certeza alguma. — Arthur...

— A Nat não fala com você como amiga, não olha como amiga. Ela não quer ser sua amiga.

— Eu amo você, Arthur.

— Então conte pra ela, ou melhor, conte pra todo mundo.

— Eu... Você sabe que não é assim...

— O que eu sei é que você precisa se decidir.   

Era demais esperar que Ulisses o chamasse para uma conversa, admitisse que estava gostando de outra pessoa e que não ficaria com ela antes de terminar com ele.

A suspeita, que o rondou por meses, se confirmou um dia quando chegou da faculdade e, ao sair do elevador, deu de cara com Ulisses e Natália se beijando. Seu cérebro bloqueou o fato de que não era um beijo simples: eles pareciam prestes a transar ali mesmo — e talvez tivessem feito isso se ninguém tivesse aparecido. Ambos eram irresponsáveis o bastante para tal coisa.

— Desculpa... Eu não...  — ele gaguejou, se esforçando para não chorar. Fazer isso seria ainda mais humilhante do que ver o riso que Natália tentava prender. Ulisses, como sempre, abriu e fechou a boca, incapaz de dizer qualquer coisa. Arthur apenas caminhou para a porta, a mão tremendo enquanto colocava a chave na fechadura.

— Nossa, ele parece chateado. — Ainda ouviu quando Natália falou, mas logo bateu a porta e entrou para o quarto.

Foi então que as lágrimas vieram, violentas, descendo por seu rosto, o choro ameaçando sufocá-lo. Sentiu-se péssimo, culpado por não ter dado atenção suficiente ao namorado, por não ter sido bom o bastante para ele, perguntando-se o que poderia ter feito para evitar que aquilo acontecesse.

— Arthur... — Ulisses entrou logo em seguida. — Eu...

— Não, nem começa, ok?

— Eu... eu...

— Você o quê, Ulisses? Sente muito? Não sabe o que aconteceu? Não sabe o que dizer? Não é o que eu tô pensando? Olha, eu não preciso das suas desculpas mal formuladas, está bem? Apenas me poupe disso.

Ulisses nunca o tinha visto tão irritado. Claro que ele tinha motivos para tanto, mas era assustador ver Arthur com tanta raiva. E mais ainda saber que era o causador daquele sentimento. Encolheu-se na cama, perguntando-se o que havia de errado consigo.


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