Muito Além de Mim escrita por Mi Freire


Capítulo 4
Desastre ambulante.




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Meu único dia de folga: domingo. Eliezer e eu aproveitamos para tirar o dia para conhecer melhor nossa cidade. Dar uma volta, tirar fotos, conhecer pontos locais, experimentar comidas novas e falar com as pessoas.

Posso dizer que foi um dia bastante produtivo.

— Ei, aonde você vai? – Já é noite quando Eli e eu paramos em frente ao nosso pequeno prédio estudantil.

Ele olha para a tela do celular. Acho que chegou uma mensagem.

— Preciso fazer uma coisa. – Responde ele, sendo bastante vago. O que me irrita um pouco.

Tenho sido bastante paciente com ele.

— Quando é que você vai acabar com esse mistério?

— Quando eu descobrir a verdade.

Ele me dá um beijo no rosto.

— Até mais tarde.

E ele se vai.

Com toda certeza ele encontrou alguém. Ou está investigando essa pessoa. Sabe-se lá porquê. Eu estou bastante curiosa e quero logo que ele se abra comigo.

Tomo um banho e vou direto para a cama. Estou exausta. Caminhamos muito o dia todo e comemos muito bem, por isso nem estou com fome agora. Tudo que preciso agora é dormir e descansar. Dessa vez não esperarei por Eliezer acordada.

Quando acordo no outro dia pela manhã, ele já está de pé, muito bem arrumado e tomando seu café-da-manhã.

— Como foi sua noite? – Arrisquei perguntar, enquanto me arrumava para mais um dia de aula e trabalho duro.

— Produtiva. – Ele dá uma piscadinha e sorri.

Quero estapeá-lo até ele confessar o que está acontecendo.

— Eu pensei que contássemos tudo um para o outro. – Comento, como quem não quer nada. Bebo meu café.

— E contamos. Sempre seremos melhores amigos e você sempre será minha melhor confidente. Só não é o momento ainda.

A aula foi bastante interessante. Nós conversamos muito sobre a cultura Australiana. Acabei aprendendo coisas que não fazia a mínima ideia de que eram possíveis e reais. Como por exemplo: atualmente quase metade da população australiana é formada por estrangeiros. O principal antepassado cultural são os aborígenes, com pele mais escura e origem pré-histórica. Esse tipo de coisa e muitas outras eu ainda não sabia. Mas sabia que, por exemplo, aqui se tem o costume de andar descalço, mesmo nas ruas e comércios. Os restaurantes do país oferecem água gratuitamente e a maioria dos comércios fecham cedo, exceto alguns restaurantes e mercados.

Além de muitas outras coisas que venho aprendendo com o tempo.

Chego cinco minutos mais cedo no trabalho, visto meu avental, guardo minhas coisas, cumprimento as meninas e faço meu trabalho da melhor forma possível. Enquanto estou organizando o balcão, ouço as meninas conversarem sobre seus finais de semana. Elas saíram, beberam e conheceram uns caras. Hoje elas estão bastante tagarelas, pois o Mr. Wilson saiu para resolver problemas financeiros.

O sininho toca.

Hoje ele não está sozinho. Apareceu com mais dois caras, provavelmente amigos. Um alto, moreno e forte. Outro mais gordinho com um cabelo enroladinho e bochechas rosadas.

Meu coração logo entra em pânico, como vem acontecendo desde que ele apareceu por aqui pela primeira vez.

Os três se sentam em uma das mesas perto da vidraça. Como estou ocupada, Sydney vai atendê-los com seu melhor sorriso. Judy fica só olhando. E eu continuou passando o pano úmido em tudo, como se minha vida dependesse daquilo.

Ela anota os pedidos em seu bloquinho e se aproxima do balcão.

— Dois cafés expresso e um chá com pouco açúcar.

Judy vai preparar.

Não tenho coragem de olhar na direção deles. Por causa dele. Mas provavelmente eles estão olhando para nós, dando risadinhas e falando bobagens. Coisas típicas de homens.

— Pronto. – Judy coloca os pedidos na minha frente, sobre o balcão que eu acabei de terminar de limpar. — Sua vez.

Acho que ela quer me ferrar, só pode ser isso.

— Mas...

— Vai, Nina. – Sydney sorri. — Você consegue.

É claro que eu consigo. Não sou estupida. Talvez só as vezes. Mas eu não quero. Simplesmente não quero e ponto.

Parece que essa questão é indiscutível.

— Eles estão esperando. – Judy observa.

Vaca maldita.

Suspiro fundo, limpo minhas mãos no avental e pego minha bandeja.

E lá vamos nós.

Enquanto caminho vagarosamente até a mesa com as pernas moles feito gelatina, a bandeja treme em minhas mãos. Não quero que eles notem que eu estou tão nervosa por nenhum motivo. Mas também não é algo que eu possa disfarçar.

— Olá, boa tarde. – Digo no inglês mais perfeito que consigo.

Me recuso a perguntar de quem são os cafés e quem pediu o chá porque sei que não vou conseguir e eles não vão entender nada. Então, estrategicamente coloco os copos no centro da pequena mesa e dou meia volta, aliviada por ter conseguido não cometer nenhuma gafe.

— Vocês têm rosquinhas? – Pergunta um deles.

Me viro novamente.

— Sim. – É tudo que digo.

— Pode me trazer duas, por favor?

— Com alguma cobertura especifica?

Isso aí, garota. Está se saindo ótima.

— Sim...

— Só um instante.

Resolvo pegar o bloquinho escondido no bolso do meu avental para anotar antes que eu esqueça alguma coisa.

Teria sido uma tarefa simples e fácil, se eu não tivesse esbarrado acidentalmente o cotovelo em um dos copos com o meu gesto, que virou na mesa e fez com o que o liquido quente escorresse bem em cima do colo de um deles.

Adivinhem quem?

— Ai, meu Deus! Eu sinto muito!

Olho para ele, apavorado e ao mesmo tempo querendo enfiar a cabeça em um buraco escuro. E para piorar eu me desculpei em português. Certamente ele não entendeu nada.

Deve ser por isso que está me olhando com essa cara esquisita enquanto os outros estão morrendo de rir.

— Algum problema por aqui?

É o Mr. Wilson.

Porque justamente agora ele resolveu aparecer e voltar de seus compromissos? Não poderia ter sido em uma outra hora melhor? Ou talvez nunca mais? Teria sido ótimo!

— Vou pegar um pano. – E saio correndo.

— Meu Deus! O que você fez? – Judy pergunta, assustada.

Tanto ela quanto Sydney parecem não acreditar.

— Foi um acidente!

Volto correndo para a mesa com um pano em mãos.

— Eu resolvo isso. – Começo a limpar tudo o mais depressa possível, mas acabo piorando ainda mais a situação.

O Mr. Wilson parece prestes a explodir.

— Nina, será que podemos conversar lá dentro?

Oh, não. Ele vai me demitir. Vai me xingar, vai gritar, vai me bater. Vai dizer que sou inútil e muito estupida...

— Podemos? Por favor.

— Tudo bem. – O bonitão com cheiro de mar se levanta e vira-se para o Mr. Wilson. — Foi um acidente, senhor. Foi minha culpa. Eu bati no braço dela primeiro. Foi sem querer...

Mas o que ele está fazendo?

— Mas...

Eu não quero que ele faça isso por mim. Ele não tem que fazer isso por mim. Somos estranhos um para o outro. Totalmente desconhecidos. Não vejo necessidade...

— Não precisa se desculpar. – Ele olha para mim de forma tão intensa com seus olhos escuros que me calo rapidamente.

O Mr. Wilson olha para nós, sem entender.

— Venha! – Pego o rapaz pelo braço. — Eu te ajudo com isso.

Não sei o que deu em mim. Talvez tenha sido algo em seu olhar. De repente me vi puxando um estranho por quem tenho uma quedinha até os fundos, onde há um pequeno lavabo.

— Eu sinto muito, muito mesmo.

Tento esfregar a calça dele com um pano limpo, o que só torna a situação ainda mais estranha.

Ele olha para mim, abismado.

— O que foi? – Pergunto.

— Você fala português?

— Sim. Claro! – Respondo em português só para ele ter certeza de que não ouviu errado da primeira vez. — Eu sou brasileira.

— Não posso acreditar! – Ele fala português também e eu me espanto. 

Olhamos um para o outro muito de perto, pois o espaço é apertado. Nossas expressões são intrigantes. Até que ele abre um largo sorriso. E eu não consigo deixar de sorrir também.

— Eu me chamo Andrew. – Ele expende a mão.

— Pode me chamar de Nina. – Aperto sua mão.

Ela é grande e calorosa.

— Olha, me desculpe pelo mal jeito. – Volto a ficar envergonhada. — Eu não quis em momento algum...

— Eu entendo. – Ele toca o meu braço. — Não se preocupe.

É muito bom poder falar a minha língua com alguém que não seja o Eli.

— Ei, está tudo bem aí? – Sydney vem ao nosso encontro, parecendo preocupada. O que é característico dela.

— Tudo sob controle. – Responde Andrew, com um sorrisinho.

Ele faz o máximo que consegue para amenizar a mancha do café que causei em sua calça caqui. Mas não tem muito jeito. Ele precisa trocar por outra limpinha. Coisa que é impossível de se fazer aqui.

Não temos calça para vender, temos?

Após ter uma conversinha particular com o Mr. Wilson e garantir que tudo não passou de um acidente, ele parte com os amigos. Mas não antes de sorrir e acenar para mim.

Um fofo.

Sydney e Judy me fazem mil e uma perguntas quando estamos fechando a loja. Elas querem saber tudo que aconteceu nos poucos minutos que ficamos a sós no lavabo.

É loucura! Não aconteceu nada de mais.

Só acabei descobrindo que ele também é brasileiro.

Minha nossa! Que mundo pequeno!

Eli e eu fomos jantar fora aquela noite em um pequeno restaurante que fica na mesma calçada do nosso prédio e vende os melhores anéis de cebola que eu já comi até hoje.

Assim como eu, Eli mal consegue acreditar que o Andrew – aliás o nome é tão bonito, combina perfeitamente com ele – também é brasileiro e que nossos caminhos foram acidentalmente cruzados logo aqui na Austrália.

— Você está apaixonada por ele? – Ele pergunta, depois toma um gole do seu suco, mas sem tirar os olhos de mim.

Fico constrangida. As vezes ele é terrivelmente direto.

— Não. Acho que não. – Respondo. — Acho que não dá para chamar isso de paixão. Eu sei tão pouco sobre ele ainda.

— Por enquanto, né? Porque por tudo que você me contou até agora ele parece bastante interessado em você também.

— Você acha? – Meu coração bate forte.

— Com certeza ele está.

— Eu não acho que seja para tanto, Eli.

— Isso porque você é modesta.

Dei um sorrisinho.

— É verdade.

— Mas então, tenho novidades!

— O que?

— Finalmente consegui um emprego.

— O quê?! Ai meu Deus! Não acredito. Sério?

— Total. Começo amanhã. Como recepcionista em um escritório de advocacia.

— Você está falando sério? – Sorrio ainda mais.

— Sim!

— Precisamos comemorar, então!

Vamos dormir muito tarde aquela noite, pois depois do jantar decidimos ir a um pub para brindar os acontecimentos.

No dia seguinte, já no trabalho, vou até as mesas que ficam lá fora para recolher as xícaras, copos e toda a sujeita que os clientes deixam em cima das mesas. O movimento hoje está maior que o normal. As meninas estão a todo vapor.

— Olá. – Ouço alguém dizer em português.

Viro-me para verificar.

— Oi. Andrew.

Nós nos vimos ontem, foi um desastre total que eu quase nem conseguir olhar para ele de tanta vergonha. Mas agora, cara a cara mais uma vez, percebo que ele me parece muito mais bonito aqui do lado de fora, por causa da claridade do dia.

— Tudo bem, Nina?

— Sim. Nossa, estou surpresa. Não estava esperando. Você quer alguma coisa?

— Na verdade, quero sim.

— Oh, então por favor, me diga qual é o seu pedido de hoje. – Com rapidez pego meu bloquinho no bolso.

— Seu numero de telefone. Pode ser?

— Claro!

Opa. Espera aí... Isso não é bem o tipo de pedido que eu estava esperando. Meu número de telefone não faz parte do cardápio do Café.

— Não entendi...

Sim, eu sou bem lerda as vezes. 

— Tem algum problema eu querer que você me passe seu número de telefone? – Ele sorri. — Porque se tiver...

— Não. É só que... Mais uma vez estou surpresa.

Sorrio de volta para ele e anoto meu número em uma folha do meu bloquinho a qual arranco e dou a ele.

— Aqui está.

— Obrigado.

— Mais uma coisa?

— Por enquanto, não. Mas quem sabe depois. – Ele dá uma piscadinha encantadoramente apaixonante. — Eu adoraria ficar e tomar um café, mas estou atrasado para o trabalho.

— Ah, tudo bem. – Estou mais do que sem graça.

Ele dá um aceno e se vai.

Nem posso acreditar. Um cara incrivelmente lindo acabou de pedir o meu número e eu, mesmo estando incrivelmente surpresa e envergonhada, dei meu número a ele.

Mal posso esperar por seu primeiro contato.


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