Alvo Potter e a Sala de Espelhos escrita por Tiago Pereira


Capítulo 23
Capítulo 23 — O Baile de São Valentim




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— CAPÍTULO VINTE E TRÊS —

O Baile de São Valentim


MAL ELES SABIAM, MAS aquela noite fora a última em que Alvo, Rose e Wayne puderam de alguma forma desfrutar de um bom divertimento. As semanas seguintes foram as mais exaustivas das crianças desde que iniciaram o ano letivo: como se não bastasse a volumosa quantidade de deveres que começaram a ser passados, eles tinham ainda de lidar com a presença de Belo, que estava atingindo o tamanho de um frigobar.

Os três tinham combinado de ajudar Hagrid a cuidar da quimera e, a cada dia que se passava, mais eles se questionavam quanto tempo restava para que um deles fosse devorado por Belo. Como Alvo tinha os treinos de quadribol quase todos os dias, coube a Wayne e Rose a tarefa de alimentar e tratar da criatura.

Conforme fevereiro foi chegando, maior se tornava a azáfama em cima do Baile de São Valentim. A maioria dos estudantes já tinham um par, ao passo que a outra parte começava a correr atrás do tempo. Já era frequente Alvo topar com garotas recusando convites de rapazes desesperados. Quem estava se dando bem com toda essa história eram Fred e Roxanne, que conseguiram contrabandear a linha de produtos de poção do amor da Gemialidades Weasley, Bruxa Maravilha. Não demorou muito para que McLaggen descobrisse e os obrigasse a parar com a venda.

— Definitivamente, é contra as regras — o monitor informou com um ar de importância. — Filch baniu todas os artigos e logros da Gemialidades Weasley.

Fred e Roxanne se olharam e riram.

— Fala sério, quem se importa com aquela guitarra velha? — caçoou Roxanne.

McLaggen fez menção de concordar, mas se ateve em ajeitar os seus cabelos lanzudos.

— De toda forma, eu não quero ver nenhum artefato do gênero circulando pelo Salão Comunal da Grifinória. — Ele aguardou alguma reação, mas os irmãos permaneceram quietos. — Lamento, são as regras.

— Claro. — Fred incrementou um sorriso no rosto sardento. — Entendemos perfeitamente.

McLaggen os olhou com desconfiança antes de dar as costas e sair.

Diante de tantos afazeres, as crianças deixaram um pouco de lado a Sala de Espelhos. Eles andavam tão estressados ultimamente que o assunto foi sumindo aos poucos nas suas conversas. O Profeta Diário ainda não se pronunciara sobre toda a situação, o que de certa forma tranquilizava-os. Bem, pensava Alvo, Wayne estava certo. A Sala era uma arma do Ministério para defender o Antaglifo. Não tinha mais motivos para eles se estressarem. E foi com esse raciocínio que ele se sentou à poltrona da sala comunal, na terça-feira às vésperas do baile, para realizar a lição de História da Magia — um resumo sobre o Período Caça-Bruxas. Alvo soltou um suspiro triste e abriu o seu exemplar de Uma História da Magia. Wayne, ao contrário do amigo, parecia muito animado.

— Espero que Rose não demore muito — Wayne comentou enquanto molhava a pena no tinteiro. — Talvez ela consiga fazer a introdução sobre a Inquisição.

Alvo encolheu os ombros, indiferente. Pela janela, o céu noturno ia se acentuando cada vez mais, os vidros cobertos por um vapor fino. Os dois garotos estavam envergados diante do pergaminho, Wayne escrevendo em um ritmo alucinante comparado a Alvo. Vez ou outra, ele erguia os olhos e via o amigo totalmente longe daquela sala, o pergaminho caindo pela borda da mesa, enquanto ele se esforçava para escrever suas primeiras linhas. Até pensou em bisbilhotar o texto de Wayne, mas achou que estaria sendo muito desonesto.

Pouco a pouco as vozes loquazes foram diminuindo; Alvo levantou o queixo e observou cada canto da sala — só restara Wayne e ele. Quanto tempo tinha se passado?, pensou. Uma? Duas horas?

O relógio na parede tinha acabado de badalar doze vezes antes de Alvo baixar os olhos novamente para o seu pergaminho. Ele alternou entre o livro e o seu resumo e soltou um grunhido que lembrava Grope.

— Diabo de morcega velha — chiou baixo, referindo-se à Profa. Sable. — Preferiria comer uns cem gnus a ter que fazer esse resumo.

— Ah, não prefere, não! — Rose puxou a capa da invisibilidade. Tanto Alvo quanto Wayne ficaram boquiabertos com o estado da amiga: seu rosto tinha linhas salientes de arranhões, parte de suas vestes estava em frangalhos e pelo menos dois dedos de uma mecha ruiva estava negra e queimada. — Belo está começando a soltar fagulhas pelo nariz!

Alvo e Wayne trocaram um olhar preocupado.

— Acham que deveríamos informar a Profa. Minerva? — inquiriu Wayne.

— Sim! — respondeu Rose imediatamente. — Eu realmente não acredito que essa ideia maluca do Hagrid vai dar certo. Ora, se algum funcionário do Ministério ficar sabendo...

— Mas eles já sabem — disse Alvo com frieza. — Copperfield, esqueceu?

Rose lhe lançou um olhar feroz.

— OK, mas e o Godunov? — retrucou. — E se ele descobrir? E se ele usar o objeto que tem para roubar Belo? Não tem como manter essa situação às sombras, Alvo.

Houve um momento de silêncio antes que a garota voltasse a falar.

— Toma. — Entregou a Alvo a capa da invisibilidade. — Vou tomar um banho.

Alvo e Wayne guardaram seus materiais e subiram para o dormitório sem trocar mais nenhuma palavra. A mente dos dois estava atônita, refletindo se valia ou não contar à diretora sobre a quimera. Convença Hagrid a confessar, uma voz reverberou na cabeça de Alvo. Não, ele concluiu, Hagrid não faria isso por espontaneidade. Seria preciso algo muito grave para que ele desacreditasse no amor da criatura.

Mesmo depois de horas observando o teto, o menino pôde adormecer serenamente. O dia 14 de fevereiro amanheceu com um céu azul anuviado. Não era um dia de calor, mas tinha sido a melhor manhã desde a volta das férias. Apesar da avalanche de matérias, Alvo e o resto dos colegas não estavam demonstrando nenhum interesse em estudar naquele dia. Como o Prof. Silvanus tinha avisado, os professores tinham se tornado bem severos com ele; não havia uma aula de Voo que o Prof. Bagman o deixasse participar de alguma atividade divertida (“Vai acabar quebrando os dentes, Potter, foco no quadribol!”), ou que a Profa. Aingremont não criticasse as suas transformações (“Ainda não praticou o Feitiço da Comutação, Potter? Receio que fará horas extras comigo”). Do contrário, os outros vinham sendo muito complacentes — o Prof. Longbottom só o fizera cumprir a detenção que devia, o Prof. Flitwick não parava de elogiar a sua evolução com o Feitiço de Levitação, a Profa. Monet frequentemente lhe dava a nota máxima nas lições e o Prof. Silvanus tinha o adotado como o aluno preferido da classe. Em contrapartida, o rancor da Profa. Sable tinha redobrado. Ela adorava ter motivos para castigá-lo.

O dia estava sendo bem interessante em Hogwarts com os convites de última hora. Alvo achava ótimo, pois quanto mais baboseira sobre o baile a Garota dos Segredos soubesse, menos ela iria bisbilhotar sobre a vida dele.

— Ah, claro, espere até ela descobrir que você não pode ir — disse Rose assim que ele compartilhou esse pensamento. Os três estavam a caminho da aula de História da Magia, a última antes do Baile de São Valentim.

— Rose tem razão — concordou Wayne. — Essa menina é um perigo, Alvo. Já deve saber de tudo à essa altura.

— Pouco importa — Alvo falou baixo. — Eu pensei em um plano.

Rose e Wayne estacaram, obrigando as pessoas que vinham atrás a desviarem.

— Plano do quê? — eles perguntaram juntos.

— De ir ao baile — respondeu Alvo.

Rose cruzou os braços e franziu a testa.

— Alvo, você sabe que não pode.

— É, Alvo, vai arranjar uma baita encrenca — reforçou Wayne.

— E também tem o vaticínio — continuou Rose. — A última parte dela... no jogo da vida, a vida estará em jogo. Não percebe o quão perigoso é?

Alvo soltou um ar quente pelas narinas e continuou andando ao primeiro andar.

— Não gostaria de ficar sozinho no Salão Comunal — resmungou.

— Não vai ficar sozinho — disse Wayne consolatório. — Tiago estará lá também.

Alvo riu ironicamente.

— Prefiro ficar sozinho — refutou.

— É uma ótima oportunidade — Rose falou rudemente — para você cuidar de Belo.

Sem mais nenhum ânimo, Alvo e os amigos chegaram à Sala 4F. Já havia uma fila de primeiranistas esperando na porta de salgueiro empoeirada. Tudo naquele aposento tinha um aspecto muito antigo — inclusive a Profa. Sable. Quando a sineta tocou, os estudantes entraram na sala retangular com as mesas em semicírculo. Nas paredes, os retratos de muitos bruxos notáveis e no centro a grande mesa em frente ao largo e antiquado quadro negro. Alvo odiava aquele cheiro forte de pêssego. Poucos instantes depois de todos se sentarem, a Profa. Sable veio entrando pela porta com um ruge-ruge de suas vestes. Ela deformou os lábios no que, para Alvo, era o sorriso mais estranho do mundo.

As aulas do dia tinham sido, até então, extremamente agradáveis. Nenhum professor teria a coragem de tentar empurrar algum tipo de conhecimento na cabeça dos alunos, tão visivelmente longe dali. Ou seja, tinham passado a maior parte do tempo conversando ou tendo divertidas aulas práticas, algo que não combinava nem um pouco com a Profa. Sable e todos tinham plena consciência de que ela não seria generosa com eles.

— Olá, meus caros. — A Profa. Sable abriu os braços em uma forma de afeto. — Imagino o quanto os senhores estão ansiosos para o evento que acontecerá em nossa escola esta noite. Uma grande pena que nem todos poderão participar.

Mais uma vez ela sorriu, desta vez, direcionando-se a Alvo. O menino sentiu suas bochechas queimarem de raiva. Iria ao baile, matutou, faria de tudo para se divertir. A injustiça da punição sobre algo que ele não realizara era tão grande que doía.

Os próximos cinquenta minutos foram dedicados à parte teórica da queima das bruxas no século XVI, a qual ninguém parecia se importar, os olhos voltando-se constantemente aos relógios de bolso. O baile se iniciaria às oito horas, enquanto as aulas terminariam duas horas antes — fato que incomodou muito Dominique; para ela, três horas era o mínimo para que uma mulher se arrumasse decentemente. Havia, sobretudo, uma enorme curiosidade alojada sobre o Salão Principal, que fora fechado assim que o almoço se encerrou. O que haveria de tão especial que ninguém poderia saber? Boatos apontavam que haveria uma grande quantidade de artistas presentes.

À medida que o tempo passava, mais difícil ficava para os alunos esconderem a vontade de sair da sala de aula. Então, no momento em que a sineta encheu os ouvidos de todos, houve uma gritaria generalizada e um tropel de gente se apertando para atravessar o arco de volta aos corredores do primeiro andar. Alvo nunca presenciaram congestionamento tão grande nas escadarias de Hogwarts, por isso guiou Wayne e Rose ao Corredor das Tapeçarias, um cômodo totalmente revestido por tecidos encorpados. Dentre os inúmeros retratos, Alvo se aproximou ao de um homem pálido com um cavanhaque robusto, um chapéu alto pendurado na cabeça, as golas altas e longas como asas de morcego. A plaquinha indicava: George Von Rheticus.

Os três amigos se lembravam do dia em que encontraram esta passagem, por acaso, na Grande Escadaria. Era um daqueles dias cheios de maratonas extenuantes de aulas de Voo, o vento frio importunando os terrenos, tornando a tarefa de se manter no ar um desafio difícil. Porém, para o Prof. Bagman, era uma ótima oportunidade para ensiná-los a ser resistentes diante das adversidades climáticas. Como Rose dissera várias vezes, se dependessem do juízo do Prof. Bagman, metade da turma estaria morta. No final da aula, a maior parte dos primeiranistas estava com os cabelos em pé, os dentes castanholando, os cílios pontilhados por gotículas.

— Aquele homem é um canalha — resmungara Wayne enquanto eles se esforçavam para subir os degraus.

— Você disse canalha, jovem? — Uma voz rouca repercutiu às costas deles.

Eles se viraram e deram de cara com o retrato de George Von Rheticus, denominado como um astrônomo prócer.

— Nenhum canalha tem o direito de receber a dádiva de acessar a minha passagem secreta aos corredores do sétimo piso — Rheticus afirmava peremptoriamente. Tinha um ar exibicionista, na opinião de Alvo. Entretanto, eles estavam tão sedentos em descobrir um novo atalho que deram importância à ladainha do quadro. — Vocês, jovens, querem utilizar o meu atalho?

As crianças se olharam, desconfiadas.

— Bom, senhor... — Rose apertou os olhos para ler a plaquinha. — Rheticus. Nós gostaríamos, embora sejamos dependentes de sua avaliação.

A pintura de George Von Rheticus os analisou com os olhos.

— Tradicionalmente — começou — eu peço que as pessoas preencham uma carta de estrela quando não as considero confiáveis. — Novamente, ele estudou as três crianças com as sobrancelhas baixas, quase unidas. De repente, seu rosto se iluminou em um sorriso. — Contudo, vocês, estudantes bravos e destemidos lembram a mim em minha infância: excepcionalmente inteligentes, ébrios!

Ter um bom relacionamento com os quadros era ótimo para Alvo. Conhecera o Homem de Três Rostos, Edessa Skandenberg, dentre outros retratos que lhe mostraram rotas alternativas. As coisas poderiam ser mais fáceis se ele possuísse o Mapa do Maroto de Tiago, mas, desde que ele ganhara a Capa da Invisibilidade no Natal, o irmão se tornou menos propenso a lhe emprestar os pertences pessoais.

— Ãh, alô? — chamou Alvo.

Rheticus, que estava atestando uma carta estelar, ergueu a cabeça. À princípio, suas narinas inflaram, até que ele arqueou as sobrancelhas e tirou o seu chapéu aos meninos, curvando o pescoço.

— Alô, senhores! — bradou altivamente. — Como percebem, estou preenchendo a minha tricentésima vigésima nona carta estelar. No entanto, hoje é dia do Baile de São Valentim, por isso tive de mudar de retrato e vir para cá. — Rheticus ajeitou um de seus dozes botões de camisa perfeitamente enfileirados. — Suponho que vocês queiram algum serviço, certo?

— Sim, sim, tivemos que desviar do tumulto da Grande Escadaria — explicou Wayne.

— Ah, sim, compreendo! — Rheticus sacudiu a cabeça de modo que suas golas rendadas balançassem. — Sejam breves.

— Claro — disse Rose. — Canalha Indecente.

— Certamente que são. — Rheticus, em um gesto parecido com a Mulher Gorda, girou o seu retrato e revelou um buraco quadrado no meio da parede revestida pela tapeçaria. Wayne foi o primeiro a se espichar e se apoiar no chão para conseguir alcançar a abertura, seguidos por Rose e Alvo.

O buraco, na verdade, era um túnel razoavelmente largo para as crianças. Eles tinham de ir de quatro por pelo menos dois metros até chegarem em uma escadaria cinzenta com um forte cheiro de mofo. As paredes estavam úmidas e decoradas com teias prateadas, os archotes iluminavam fracamente o caminho, de modo que as crianças tiveram de se apoiar com firmeza no corrimão pétreo. Eles subiram três lances de escada e chegaram em uma nova passagem. De novo eles engatinharam à uma fenda quadrada tapada pela parte de trás de um retrato, o qual Wayne empurrou com delicadeza e os três puderam saltar no assoalho de madeira.

Alvo, Rose e Wayne viraram a primeira esquina e foram introduzidos no corredor que dava acesso ao Salão Comunal da Grifinória. Dava para enxergar de longe a fila em frente à pintura à óleo, os alunos efusivos e ansiosos pelas próximas horas, ao passo que a Mulher Gorda tinha um ar impaciente. Quando eles finalmente conseguiram entrar na sala comunal, Rose se despediu dos amigos e subiu apressadamente os degraus da torrinha onde se encontrava o dormitório feminino, junto das outras colegas de classe. Os meninos ficaram hirtos ao pé da escada.

— Mulheres. — Suspirou Louis. — Elas precisam de tanto tempo para se arrumar?

— Só espero que a Rhonda se ajeite bem — disse Fergus em um tom de preocupação.

— Que tal uma partidinha de Snap Explosivo? — sugeriu Ryan.

Foi um divertido passatempo para Alvo, que pôde afastar o pensamento de que estaria sozinho enquanto os outros se divertiam, dando lugar à concentração em montar um castelo de cartas na iminência de estourar. Assim que a noite caiu, os garotos começaram a seguir em direção do dormitório para se trocar. Alvo acompanhou Wayne e os outros rapazes, que substituíram seus uniformes por vestes de festas.

— Bem — falou Ravi Thomas depois que todos estavam bem vestidos –, acho melhor irmos descendo...

Os garotos miraram para Alvo com um olhar hesitante. Ele era o único de pijamas.

— Até mais tarde, Alvo — desejaram os colegas antes de começarem a sair.

Wayne fora o único a ficar.

— Ei, cara, prometo voltar antes da meia-noite. — E sorriu alentador ao amigo.

Alvo forçou um sorriso.

— Divirta-se — disse por fim.

Wayne, então, trilhou o mesmo caminho dos outros primeiranistas. Alvo apoiou as mãos na coxa e certificou-se se alguém retornaria ao aposento. Visto que não, ele fechou o baldaquino da cama, ajoelhou-se no chão e puxou o seu malão de madeira, de onde tirou do seu fundo a Capa da Invisibilidade do pai. Alvo quebrara muito a cabeça durante semanas para encontrar um meio em que ele pudesse entrar clandestinamente, mas todas as vezes ele caía na mesma resposta: a capa. Ele despejou a capa pelo seu corpo, abriu uma festa no dossel e saiu discretamente do quarto.

O Salão Comunal, de repente, pareceu arrefecido pela ausência dos alunos; contudo, à duas portas de distância dele, era possível ouvir alguns palavrões. Alvo apertou o punho da varinha e caminhou sorrateiramente em direção do outro dormitório, pronto para fechar os olhos caso estivesse invadindo a privacidade de alguém. Mais alguns passos e a voz ficava cada vez mais audível... Seu coração pareceu inchar de medo... Ele conhecia aquela voz...

Alvo estava diante do letreiro que dizia ALUNOS DE TERCEIRA SÉRIE quando ele esticou o pescoço e foi enchido pela visão do quarto redondo com camas de quatro colunas exatamente iguais a sua. Uma delas, entretanto, estava fechada pelas cortinas de veludo, embora fosse visível enxergar uma silhueta recortada contra a luz do lampião. Somente duas pessoas haviam sido banidas do baile. Uma era ele, a outra era...

— Tiago! — Alvo, descomedido, puxou o sobrecéu, mas não encontrou o irmão. Era, na verdade, um aluno que ele jamais vira antes no castelo. Cabelos cacheados que iam até o ombro, pele morena, o nariz perfeitamente cinzelado, sobrancelhas grossas, uma bela medalha de lata pendurada no pescoço. Fosse quem fosse, ele rolou e caiu da cama, desparecendo com um urro de surpresa. Alvo descobriu a cabeça.

— Pelas barbas de Merlim! — O garoto reapareceu por trás da cama, desta vez, com uma a aparência que lembrava a do irmão. Ou melhor, era, de fato, o irmão. — Alvo, seu filho de um trasgo, como você ousa invadir o meu dormitório, seu pedaço de bosta de dragão imundo!

Depois de uma rodada de ofensas, Tiago sumiu por trás da cama novamente e começou a tatear o chão. Alvo observou a cena toda paralisado, o rosto pálido, as sardas claras salientes. Tiago surgiu de novo, a medalha de latão afugentada em seus dedos. Será que o outro garoto estava dormindo com Tiago?, Alvo pensou.

— Desculpe — disse Alvo com infelicidade. — Eu não quis atrapalhar nada...

— Pois atrapalhou! — respondeu Tiago com ferocidade. Ele deu mais uma olhada no irmão. — Você está com a capa, por que não vai invadir o dormitório das garotas?

Alvo achou aquele comentário nojento da parte do irmão.

— Estava pensando... — ele titubeou. — Em descer um pouco.

— Descer? — perguntou Tiago com desconfiança. — Para onde?

— Para o baile, obviamente — respondeu Alvo.

Os olhos de Tiago brilharam como duas pedras preciosas. Ele abriu um sorriso malicioso.

— Eu estava pensando o mesmo.

— Não tem como nós dois ficarmos juntos sob a capa perambulando pelo baile. — Alvo se sentou na beirada da cama.

— Não se preocupe, Al — disse Tiago com confiança. — Eu tenho tudo planejado.

Ele envolveu a medalha de lata no próprio pescoço, mudando a sua aparência drasticamente para o garoto de cabelos cacheados que Alvo encontrara há minutos.

— Como? — Alvo estava com os olhos arregalados. Ele passou os olhos para a medalha e uma luz se acendeu em sua mente. — Medalhas-Metamórficas...

Medalhas-Metamórficas. Foi algo que ele pensou com muita cautela durante os últimos dias. Era um objeto útil, porém repleto de defeitos. Nem tio Rony conseguira consertá-lo, quais as chances de um mero garoto de treze anos fazê-lo? Era muito arriscado utilizá-lo em meio a todos os professores e funcionários de Hogwarts.

— Exatamente — confirmou Tiago. — Agora eu sou Fábio Grimbald. É melhor manter o disfarce.

— OK, Fábio. — Falando em voz alta, Alvo achou o nome estranho de se pronunciar. — Vamos logo, então.

Tiago — ou Fábio — estava esplêndido em suas novas vestes para festas fosco esverdeado. Ocultos pela magia da capa, os dois irmãos atravessaram a sala comunal praticamente vazia. O Saguão de Entrada, ao contrário, estava abarrotada de alunos. Era estranho ver que a massa negra de uniformes tinha sido alterada drasticamente por uma paleta de cores tão variáveis. Todos ali esperavam que dessem oito horas para poderem entrar no Salão Principal, uns atravessando a multidão à procura de seus pares, outros recrutando os colegas para confabularem. Alvo não queria topar com Rose, Wayne ou Chloe durante a sua passagem. Até conseguia imaginar a cara deles quando o vissem fora do Salão Comunal e deixando de lado a tarefa de cuidar de Belo.

Tiago apertou o cotovelo do irmão.

— Por ali, Alvo.

Com muita dificuldade, os dois Potter avançaram para o aglomerado de pessoas, esforçando-se muito para não chamar a atenção com a travessia. Sozinha em um canto próximo à porta dos terrenos, uma bela garota de vestido violeta olhava para os lados como quem estava esperando alguém. Aproveitando o amontoado de pessoas, Tiago piscou para Alvo e saiu de baixo da capa, andando em passos céleres até a garota. Alvo andou mais um pouco para perto deles. Era uma menina realmente bonita, ele pensou. À primeira vista de Tiago, ela abriu os braços cheios de pulseiras e saiu correndo na direção do menino, os cabelos ruivos em cascata balançando. Alvo apertou os olhos, boquiaberto: era Hilda Withby.

— Que bom que você veio — disse Hilda, sorridente.

— É, eu sempre dou um jeito — vangloriou-se Tiago.

Alvo pôs a mão no pescoço e estirou a língua, torcendo muito para que o irmão pudesse ver a sua cara de indignação. Sem perder mais tempo, ele atravessou as portas de carvalho da entrada  e saiu em disparada até a cabana de Hagrid. Era uma noite nublada e fria. As janelas, sempre iluminadas, estavam com as cortinas cerradas. Mal ele tinha batido na porta do casebre e Hagrid abriu uma fresta para ver quem era; Alvo retirou a capa imediatamente.

— Ah! — Hagrid meteu a manzorra nas vestes de Alvo e o puxou depressa para dentro. — Alvo, que bom te ver! Belo estava sentindo a sua falta... O que? Aconteceu alguma coisa?

Alvo estava perplexo com o que constatara: Hagrid, o maciço meio-gigante, estava com a aparência deplorável. Seu rosto estava com proeminentes linhas vermelhas, os cabelos e barba, antes cheios e emaranhados, estavam com tufos a menos e um de seus olhos estava tão inchado que ele mal conseguia manter uma abertura razoável das pálpebras. Noel veio saltando nas pernas de Alvo.

— Ah... Hagrid? — Alvo gaguejou. — O que você e Belo andam aprontando?

— Ele anda um pouco... — Hagrid inclinou a cabeça. — Um pouco rebelde, ultimamente. Mas continua uma gracinha, quer ver? Belo!

Noel saiu correndo para baixo da cama quando a quimera pateou até Hagrid. Alvo deu um passo para trás. Belo tinha aumentado muito o seu tamanho, eventualmente, e uma parte de sua juba leonina começara a crescer. Na presença de Alvo, balançou o seu rabo nacarado e soltou fagulhas pelas narinas.

— Hagrid, você precisa se livrar do Belo — disse Alvo, o medo latejando em seus ouvidos.

— Sim, sim, eu sei — respondeu Hagrid com a voz falha. — Não vai demorar muito, Alvo, eu prometo. Em breve o Sr. Copperfield vai ficar com ele.

Alvo, com extremo cuidado, tocou na cabeça de Belo e alisou-a, imaginando como Copperfield o usaria. De repente, uma pergunta veio à sua mente.

— Hagrid, você acredita em profecias?

Hagrid, que estava distraído aquecendo uma chaleira, virou-se para Alvo.

— Bem, eu acredito e não acredito, entende? — Hagrid deixou a chaleira no fogo e se sentou na mesa junto de Alvo. — Por que está preocupado com isso?

— Nada — mentiu Alvo.

Hagrid pareceu não engolir.

— Olha, Alvo, dizem por aí que adivinhação é uma coisa bem difícil de se explicar — contou Hagrid. — Existem videntes bons e videntes ruins. Merlim, por exemplo, era vidente, mas, você já conheceu a Profa. Trelawney?

Alvo sentiu o corpo congelar.

— Sim...

— Os alunos sempre falaram que ela não passava de uma charlatã que toma um pileque e fala um monte de bobagens — disse Hagrid gesticulando suas mãos. Alvo percebeu que haviam mais queimaduras. — Não fique se preocupando com profecias, entendeu?

Alvo fez que sim com a cabeça. Belo começou a emitir um som que lembrava uma guinchada.

— Ah! Belo está com fome. — Hagrid foi até um canto e tirou um balde de carne crua. — Alvo, pode dar um pouco de gnu ao Belo?

Hagrid entregou ao garoto o balde do tamanho de uma lata de lixo. Alvo olhou da carne para Belo, os olhos em arco-íris brilhando intensamente. Ele segurou a carne fria com uma camada pegajosa — e particularmente nojenta — e deixou-a suspensa; Belo empinou-se nos cascos traseiros e esticou os dentes afiados para abocanhá-la.

— Hagrid, você vai ao baile? — perguntou Alvo enquanto Belo destrinchava o pedaço de gnu.

Hagrid deu de ombros.

— Talvez eu dê uma passada mais tarde.

Hagrid serviu chá e pães para Alvo, que aceitou mais por educação do que fome. Hagrid puxou de dentro do armário uma enorme garrafa de conhaque e pousou na mesa.

— Ele adora conhaque... — justificou-se Hagrid, admirando a repugnante visão de Belo devorando a carne. — Sabe, eu sempre quis ter uma quimera de estimação...

— Mas é impossível, não é? — rebateu Alvo. — Pelo menos é assim que está classificado em Animais Fantásticos e Onde Habitam.

— Ah, bem, eu sei. — Hagrid remexeu os seus dedos grossos. — Eu acredito que todas as criaturas podem ser domesticadas, se forem tratadas com amor...

— ... Diga isso ao seu olho roxo — interpôs Alvo, preocupado.

— As criaturas, Alvo, são como nós — Hagrid insistiu. — Elas dão o que recebem.

Alvo balançou a cabeça, indignado. Se Hagrid estava dando amor e recebendo hematomas em troca, imagina se maltratasse Belo? Mais um mês e Hagrid estaria sendo despedaçado no lugar do gnu.

Depois de alimentar Belo com carne e conhaque, Hagrid vestiu seu agasalho de pele de toupeira e se armou com o arco.

— Alvo, preciso que você fique aqui — disse decididamente. — Eu preciso... dar uma palavrinha... com Grope.

— Quê! — exclamou Alvo, em pânico. — Você vai me deixar aqui com Belo?

Hagrid não lhe deu atenção; escancarou a porta e chamou por Noel.

— Não vou demorar muito. — Então bateu a porta com um estrondo.

Alvo, com o coração martelando no peito, olhou para Belo, que lambia um osso que restara do seu jantar.

— Bom menino... — Alvo tentou chegar um pouco mais perto da quimera. Belo ergueu os seus olhos para o menino, que sentiu uma gotícula de suor se formar no lábio inferior. Eles dão o que recebem, lembrou-se. Alvo deu uma pernada para frente e esticou uma mão trêmula contra Belo para fazer carícias atrás de sua orelha. Para seu espanto, a quimera curvou ligeiramente a cabeça e sacolejou a cauda draconiana. — Você gosta?... Espero que não precise me deixar com um olho roxo para retribuir o carinho... Pombas, será que Hagrid não percebe o quão perigoso é ter você por aqui?

Alvo olhou ao redor da cabana.

— Tomara que te levem antes que comece a expelir fogo de verdade...

Tic-tic-tic.

— Rápido, moleque!

O som de pés amassando a grama fez com que Alvo despertasse do seu devaneio. Foi até a janela e puxou um dedo da cortina para espionar do lado de fora. Seria Hagrid? Não, a voz era muito mais rouca, e o som dos passos eram defasados; logo atrás, um pouco mais distante, novos passos, desta vez mais velozes.

— O senhor não pode fazer isso!

Para infelicidade do garoto, ele conhecia aquela voz — a de Scorpius Malfoy. Ele e a segunda pessoa foram apropinquando cada vez mais do canteiro de abóboras de Hagrid, seguindo na direção da Floresta.

Alvo não tardou em apanhar a Capa da Invisibilidade e atirá-la em si. Fez um último carinho em Belo e disse, antes de sair:

— Comporte-se.

Inteligentemente, Alvo saiu de modo recatado pelas portas do fundo, deslizando junto da capa como um fantasma. Assim que a luz noturna o banhou por completo, ele saiu à procura de Malfoy, a sua voz morta à distância, embora ainda fosse possível ouvir o seu caminhar. Ele passou pela cabana, penetrou a Floresta Proibida e entrou em um trecho sossegado, onde saíam ruídos. Alvo vacilou entre a curiosidade e o juízo. Mais do que qualquer um, ele sabia que os sons poderiam ser tanto de um humano quanto o de uma criatura mortífera.

Resolveu arriscar e projetou-se adiante. À sombra das árvores, os sons foram se transformando em inglês e lentamente a imagem de Malfoy realçou-se aos seus olhos. Não só a de Malfoy, como também outra que fez com que Alvo perdesse o equilíbrio e cambaleasse para trás.

— Você tem de fazer tudo que eu mandar, Scorpius — dizia categoricamente o Prof. Godunov. — Só assim teremos êxito.

Malfoy, que vestia vestes de primeira linha, ergueu uma sobrancelha.

 — Eu já te dei a minha opinião sobre isso, professor — falou, sorrindo satisfatoriamente.

— Então faça valer a sua lealdade — rosnou o Prof. Godunov. — Copperfield está me perseguindo. Faça-o parar. Afinal de contas, você está do nosso lado ou do deles?

Alvo sentiu o ar de seus pulmões escaparem.

— Você não se importa comigo — respondeu Scorpius com grosseria. — Está interessado apenas em...

— ... Todos temos interesses particulares, não é mesmo? — Godunov devolveu o sorriso debochado.

— Receio que o senhor esteja indo longe demais, professor — disse Scorpius, lembrando mais um adulto do que uma criança de onze anos.

O Prof. Godunov fez intento que rebateria Scorpius, mas uma onda de passos fez com que eles se calassem.

— Deve ser aquele bobalhão do Hagrid — supôs Malfoy. Alvo teve de se conter para não o golpear.  — Imagino que seja melhor o senhor ficar de olhos bem abertos, professor, eles já começaram a desconfiar...

— Escute aqui, moleque — interpôs o Prof. Godunov. — Sou inteligente o bastante para saber o que está acontecendo! — Em um movimento rápido, Godunov estirou seus dedos magros e ossudos contra a gola das vestes de Malfoy, que fitou-o com os olhos saltados. — Eu que montei uma parte da defesa daquela maldita sala! E é melhor você fazer o que estou dizendo, ou...

— Não toque em mim! — gritou Scorpius. O Prof. Godunov atirou-o para trás, derrubando-o no gramado. Malfoy gemeu de dor. — Meu pai... vai ficar... sabendo... disso...

— Ah, é? — Godunov crispou os lábios. — E quem vai acreditar em um moleque senil?

Scorpius, com as pernas tremendo diante do peso do corpo, ergueu-se do chão, a varinha em punhos. Alvo ficou observando a cena sem tomar partido, despreparado para agir caso a situação fugisse do controle.

— Você precisa aprender os bons modos — crocitou o professor, o seu cajado imponente à frente do corpo.

— Esta discussão não vale o meu tempo — disse Scorpius, apertando a varinha. Por um instante Alvo imaginou que ele lançaria um feitiço contra o Prof. Godunov; entretanto, sorriu maliciosamente. — Assim como você, professor.

Então Malfoy rodopiou suas vestes e trilhou caminho de volta ao castelo, sem resquícios de dor, deixando para trás um homem cujas bolsas sob os olhos apertavam os aros dos óculos com ódio.

Sem pensar duas vezes, Alvo correu, os pensamentos a milhão, a capa enfunando com o vento. Tinha de encontrar os amigos, contar tudo a eles, contar que Malfoy fingiu durante todo esse tempo a sua insanidade mental, que o Prof. Godunov era o seu mentor, que eles estavam tendo um conflito e, principalmente, que o professor ajudara na proteção da Sala de Espelhos.

Quando Alvo alcançou os degraus de pedra do Saguão de Entrada, era visível que o aglomerado de pessoas tinha se dissipado e tomado rumo ao Salão Principal, de onde saía acordes de guitarra e uma voz escandalosa. Alvo derrapou na entrada do salão, um enorme tapete de veludo rosa estendido embaixo dos seus pés. Ele foi se introduzindo, passando pelos casais que davam amassos, até que finalmente obteve um vislumbre completo da decoração, que na opinião do garoto, não deixara a desejar em nenhum sentido. Haviam mesas com toalhas cheias de babados espalhadas por todos os cantos, velas perpétuas queimando nos suportes, flores rosa-berrante decorando as paredes e, mais ao fundo, uma pista de dança bem próxima à grande mesa onde os professores fazem as suas refeições. Uma plataforma grande estava montada ao longo da parede direita, onde uma banda de rock tocava enquanto os alunos os aplaudiam com entusiasmo. Pela maneira que eles estavam trajados em capas escuras e encapuzadas, Alvo os reconheceu na hora: Dementor’ Kiss, uma banda de rock adolescente.

Estava difícil passar no meio dos alunos, porque, além deles, haviam anões trajados em tutus, asinhas e arcos, carregando sacas cheias de cartinhas rosas; para Alvo, uma imitação horrível de cupidos. Aquilo só poderia ser ideia do Prof. Godunov...

O Prof. Godunov!, gritou a voz dentro dele.

Alvo estava tão absorto com o que vira até ali que até tinha se esquecido do que viera fazer. Mesmo com a lembrança, um nó em seu peito indicava que ele se esquecera de algo a mais, só que não conseguia se lembrar. O garoto apertou os olhos e saiu à procura dos amigos, esforçando-se ao máximo para esquivar dos anões de cara amarrada. Vez ou outra Alvo e os outros estudantes tinham de se abaixar com o mergulho viçoso que os querubins davam, derramando sobre eles uma chuva de confetes em feitio de coração.

Francamente — Alvo ouviu Rose resmungar. — Esses querubins estão sendo impertinentes.

Alvo girou para um lado e para outro e viu, há um canto à esquerda, a mesinha redonda onde estavam acomodados Wayne, Rose e Chloe. O garoto se arrastou até eles com um certo receio; ele conseguia ver nitidamente a expressão de desaprovação que Rose faria quando o visse. De toda a forma, a informação valia o risco de ouvir um sermão.

— Imagino que Alvo esteja se divertindo à beça no Salão Comunal — disse Wayne, infeliz, removendo confetes do seu gulache.

— Pode apostar que não.

Os três amigos se olharam, buscando entender quem teria dito aquilo. Alvo, rindo da cara de assustado deles, descobriu rapidamente a cabeça.

— Alô — cumprimentou-os, hesitante.

Foi como ele esperava — Rose, enfiada em um vestido lilás, começou a ficar escarlate, Wayne, que estava levando uma garfada de gulache à boca, derramou tudo nas vestes, e Chloe, com os olhos castanhos em destaque pelo delineador preto e o vestido azul-turquesa, começou a rir da situação.

— Eu não acredito! — Rose choramingou. — Eu realmente não acredito que você fez isso... Alvo... como... e se a McGonagall...

— Deixe de ser careta, Rose — disse Chloe com firmeza. — Já não é justo o que fizeram com o Alvo e você ainda quer impedi-lo de se divertir?

Alvo olhou para Chloe, que continuava a sorrir para ele. Uma sensação de conforto e alívio tomou conta do seu estômago.

— Mas... não... assim... — Rose gesticulava freneticamente com as mãos. — Cubra-se... já!

Wayne fez menção de gargalhar, mas o olhar penetrante de Rose o fez disfarçar com um acesso de tosses.

— Afinal de contas — Wayne falou a fim de desviar a atenção da amiga –, que está fazendo aqui, Alvo?

Alvo deslizou o manto novamente pela cabeça e contou detalhadamente sobre o encontro de Scorpius Malfoy com Prof. Godunov, tentando ser o mais claro possível, o que funcionou, ele pôde constatar ao final da história. Rose e Wayne, como de costume, se mantiveram calados, os olhos direcionados para baixo, a cabeça remoendo e maquinando cada palavra.

— Bom — disse Chloe depois de um tempo — mas o que você fazia na Floresta Proibida?

— Eu estava com Hagrid, cuidando... — Alvo olhou para Rose e Wayne, os olhos arregalados de desespero.

Os amigos fitaram o ponto que Alvo estava, esperançosos, apesar de terem notado o seu tom de emergência. Ele se esquecera totalmente de Belo. E se a quimera incendiasse a cabana? O que Hagrid deve ter pensado quando voltou e não encontrou ninguém lá?

Alvo perpassou os olhos pelos três rostos e tentou passar o máximo de tranquilidade.

— Estava cuidando de Noel — afirmou com convicção.

E tentou afastar os maus pensamentos pelo resto da noite. Hagrid entenderia que ele corria o risco de ser pego... Belo ficaria bem, não tinha chances de Malfoy encontrá-lo, muito menos o Prof. Godunov, que estava de volta sentado na grande mesa dos professores. Relaxe, disse a si mesmo.

Mesmo embaixo da Capa da Invisibilidade, Alvo pôde aproveitar um pouco do baile. Era realmente divertido observar os pares que iam e vinham da pista de dança: Fred e Roxanne dançavam com muita exuberância, Lucy e Dencourt bailavam coordenadamente; já Nolan Goyle e Adelaide Runcorn, para entretenimento deles, lembravam dois gorilas se atracando.

— Rose — Chloe acotovelou a amiga –, aquela não é a sua prima com o jogador da Sonserina?

Alvo e Rose olharam imediatamente para onde Chloe apontava. Dominique, a sua prima, estava agarrada nos braços maciços de Adam Buckner, o artilheiro da Sonserina. Alvo olhou demoradamente para eles, grato por ninguém poder ver a sua expressão acabrunhada. Pouco tempo depois, seu olhar recaiu pelo local onde os professores dançavam. Era engraçado ver a maneira que o Prof. Bagman — portado de vestes magenta — conduzia delicadamente a Profa. Monet, assim como era incrível ver a Profa. Aingremont dançar com o professor de Estudo dos Trouxas, cujo nome Alvo não recordava.

De onde ele estava era possível ver que os anões entregavam cartões e declamavam poesias aos presentes, muitas vezes chutando as canelas dos alunos ao passarem. Alvo contemplou que o destino deles era quase sempre o mesmo: a mesa onde Victoire e suas amigas do sétimo ano estavam sentadas. E não era de se esperar menos, pensou Alvo ao contemplar as meninas estonteantes com seus vestidos caros e penteados elaborados.

Quando a música do Dementor Kiss’ parou e as pessoas aplaudiram, Lucy veio na direção deles, o rosto esbraseado depois de tanto dançar.

— Alô — cumprimentou-os enquanto ajeitava os óculos. Ela fitou por um instante a cadeira que Alvo ocupava. — Tem alguém aí?

Antes que alguém pudesse responder, Lucy já estava esticando o braço para empurrar a cadeira, o que obrigou Alvo a mergulhar instintivamente para baixo da mesa com um estrondo.

— Deve ser algum fantasma... indesejável... — Rose explicou com um sorriso constrangido.

— E como vai o encontro com o Dencourt? — perguntou Chloe com um ar de ironia. — Eu me pergunto quantas vezes ele já chorou por ter perdido a posição para um pirralho no quadribol. — E deu um chute em Alvo por baixo da mesa.

— Ora, ele não me falou nada sobre o Al! — exclamou Lucy, com ar de indignação. — Pelo contrário, Daniel me disse que acha o máximo o fato de alguém tão jovem ser selecionado para o time, ainda mais em um cargo tão importante, sabem, toda a pressão e coisa e tal...

Alvo sentiu como se tivesse sido esbofeteado. Nem mesmo ele parara para refletir isso: a pressão que o envolvia. Jogador de quadribol, filho de Harry Potter com uma das melhores artilheiras de sua época, seguindo o legado de tio Carlinhos, tio Jorge, tio Rony... Ele puxou a gola de seu pijama, nervoso.

— Nós dois temos o mesmo sonho de ser monitor — continuou Lucy cheio de importância. — Eu não daria moleza para esses meninos levados — ela lançou um olhar de repugnância a Carl e Alaric no outro lado da pista. — Pessoas assim são má influência. Ah, sim! Espere um minutinho... Bom, eu preciso ir, vejo vocês depois...

Lucy saiu da cadeira, rindo, e foi se juntar a Dencourt, que segurava duas garrafas de suco de abóbora. Alvo se içou de novo. O Dementor Kiss’ começou a tocar novamente, reunindo os alunos de volta à pista de dança.

— Que tal tomarmos um pouco de ar fresco? — sugeriu Wayne.

— Essa é realmente boa! — Chloe se levantou de repente e puxou Rose pelo pulso. — Vamos dançar.

Poderia ser melhor, pensou Alvo sobre o baile. Não que algo de anormal ou entediante estivesse acontecendo, mas era indubitavelmente desconfortável ficar embaixo da capa enquanto Wayne lhe empurrava quitutes. Além de que eles estavam atentos aos voos dos querubins — alguns colegas olhavam com estranheza os confetes flutuando perto de Wayne.

Os primeiranistas eram os que mais desfrutavam de uma genuína diversão. Phil Tyler, Arnold Finch-Fletchey, Doug Goldstein, Rufo Hopkins, as gêmeas Goshawk, os McGonagall, todos estavam com sorrisos nos rostos e acompanhando o ritmo da banda. Outros alunos, como Velma Montague, Clementina Higgs, os Crawford observavam com amargura a pista de dança. E Alvo soube o porquê. Scorpius Malfoy tinha abandonado-os pelo seu par, Emily Aingremont.

Fred e Roxanne passaram por eles, os bolsos com enormes calombos que tilintavam a cada passo.

— A-HÁ! — Argo Filch, que estava enfiado num trapo horrível, apareceu acompanhado de Dwerryhouse e Madame Nora. — Eu sabia... agora eu peguei vocês... contrabandeando poções do amor ilegais... Ah, isso vai dar uma encrenca.

 Os olhos saltados do zelador estavam cintilando, os músculos das bochechas de buldogue tremendo. Um dos anões serpenteou por baixo deles.

— Vanessa Creevey! Estamos procurando Vanessa Creevey!

Roxanne rolou os olhos para baixo, sorrindo.

— Aqui! — Ela acenou intermitentemente. — Ele é Vanessa!

Tanto Filch quanto Dwerryhouse olharam-na sem entender nada. O anão chutou algumas canelas até abrir caminho.

— Eis — Roxanne apontou as mãos em direção de Filch — Vanessa Creevey!

O anão mirou Filch, depois Roxanne, uma ruga entre as sobrancelhas.

— Ele é da Birmânia — Fred tentou explicar gesticulando. — É um nome comum para capivaras velhas... Vanessa!

Filch abriu a boca para retrucar, mas o anão desviou sua atenção.

— Ora, tenho um cartão musical para você, Vanessa! — grunhiu enquanto puxava uma harpa.

— Vá lamber bosta, seu macaquinho inútil! — Filch empurrou o anão com o pé.

Mal-encarado, o anão voltou a se meter no meio da garotada, ganhando espaço às cotoveladas. Fred e Roxanne aproveitaram para começarem a correr, apertando os bolsos para que nenhum nuque fosse perdido. Filch botou o primeiro pé na frente para tentar correr, só que ele não contava com a insistência do anão, que se agarrara no seu tornozelo com tanta firmeza que ele e Dwerryhouse foram lançados ao chão. Filch erguera um punho nodoso e trêmulo de fúria.

— Weasley, eu pego voc...

— Quieto, Vanessa! — O anão arrolhou sua boca com um chumaço de lenço. — Agora, escute esta canção...

Por sorte, mais uma música começou e abafou a canção do anão. Alvo acompanhou com os olhos a passagem de Fred e Roxanne, fazendo força para não rir alto e chamar a atenção. Ele se ergueu um pouco de sua cadeira, ficando na ponta dos pés para ver o que acontecia na pista de dança; seu estômago deu uma cambalhota. No centro da pista, um casal dançava com extravagância, o que atraía olhares curiosos e até mesmo alguns incentivos. Apesar de não enxergar tudo, Alvo notou imediatamente quem era pelos cachos que cascateavam aos ombros — Tiago.

— Eu não sabia que ele dançava tão bem — admirou-se Alvo.

Wayne, que estava distraído com os confetes na sua comida, não prestou atenção.

— Tá falando de quem? — perguntou antes de desgrudar mais um confete da língua com cara de nojo.

— De Fábio — Alvo respondeu com simplicidade.

 Wayne ia abrir a boca para contestar o amigo, porém mais uma rodada de gritos estrepitosos o interrompeu. Alvo achou aquilo tudo muito esquisito, afinal de contas, a música nem tinha terminado, ou melhor, os berros nem vieram das proximidades do palco. Instantaneamente as cabeças se viraram, todos focados naquilo que acabara de entrar no salão: Belo, a quimera.

Um corre-corre se formou em seguida, os alunos encurralados contra a mesa dos professores. A Profa. McGonagall liderava o grupo, indicando um local seguro, enquanto Belo revirava a mesa de aperitivos, absorto. O Prof. Scamander, então, saiu do meio do deles e puxou a sua varinha, iniciando uma aproximação cordata. Se teria dado certo ou não, Alvo não soube, porque, assim que localizou Tiago, deslocou-o para baixo da Capa da Invisibilidade e saiu em direção do Saguão de Entrada, acompanhado dos gritos de terror.

— O que foi aquilo? — interpelou Tiago esbaforido. — Era uma...

— ... sim, uma quimera — disse Alvo com displicência. — É do Hagrid.

Eles imergiram no corredor do sétimo andar e fizeram uma curva.

— Como assim é do Hagrid? — bafejou Tiago na nuca do irmão.

— É do Hagrid, ora — replicou Alvo controladamente. — Ele conseguiu na noite em que Carver esteve em Hogwarts, aquele ovo, lembra?

Tiago demorou a responder.

— Lembro — disse, vacilante. — Significa que Hagrid estava criando uma quimera bem embaixo do nariz do Ministério e da McGonagall sem que eles soubessem?

Alvo encolheu os ombros.

— Bem... sim.

Tiago começou a rir, ambos dando as últimas passadas até o retrato da Mulher Gorda. Antes de arrancar a capa, ele guardou a Medalha-Metamórfica no bolso.

— Hagrid é um cara irado, não é mesmo? —  A Mulher Gorda pediu a senha. — Beijo babado, por favor.

— Pode apostar que teve — engraçou-se a Mulher Gorda, girando para frente. Os irmãos Potter entraram na sala comunal e correram para os dormitórios.

— Esconda a capa! — chiou Tiago. — Preciso me trocar o mais rápido possível!

Alvo parou derrapando na sua cama, as mãos apalpando o chão, agarrando o malão e enfiando um manto emaranhado no seu fundo. Ele empurrou a mala de madeira e deitou de barriga para cima na cama, o peito subindo e descendo, o corpo afogueado. Ele sabia que Belo não faria mal a nenhum estudante, a não ser que o açulassem.  Porém, tratando-se do Prof. Scamander, tudo poderia correr bem. Apanhando o seu robe, Alvo desceu rapidamente, afundando numa das poltronas. Tiago também não demorou a voltar, os braços cheios de figuras de Sapos de Chocolate.

— Precisamos parecer que estávamos fazendo algo entediante por aqui — explicou Tiago, deitando no tapete da lareira. Visto que Alvo não se movera, ele rosnou: — Algo entediante, Sonserino.

Alvo torceu o nariz e fechou os dedos sobre uma edição do Profeta Diário.  O som dos grifinórios foi adensando e, menos de cinco minutos depois, McLaggen passou pela entrada da Casa.

— Certo, certo, todos são e salvos, não é mesmo? — exortou o monitor. Em resposta recebeu muxoxos de desagrado dos colegas. — Ora, poderia ter sido pior, alguém poderia ter morrido!

— Você não está ajudando em nada, sabia, cara? — resmungou Alaric, passando por ele e se sentando com Tiago. Carl veio logo atrás. — Por que não ficou até o final? Perdeu a melhor parte.

— É mesmo — concordou Carl, erguendo as sobrancelhas. — Foi muito excitante ver como o Bagman se borrava quando a quimera dava um passo para frente. Sorte ninguém ter saído ferido.

— Duvido muito — debochou Tiago. — Se eu estivesse lá, aí sim teríamos um grande problema, pois eu não tardaria em partir para cima daquela criatura.

No meio da bajulação de Tiago, Rose veio intempestiva e se sentou com raiva na cadeira ao lado de Alvo. Wayne também se sentou, tenso, sabendo da confusão que aconteceria.

— O que foi que aconteceu? — perguntou Rose ao primo, os braços e as pernas cruzadas.

Alvo sentiu uma enorme culpa nos ombros.

— Ãh... eu não sei explicar... — disse sem desgrudar os olhos das páginas do Profeta Diário. — Hagrid estava lá, depois me falou que iria ver Grope e aí aconteceu o que eu contei a vocês.

Rose arrancou o jornal das mãos de Alvo e começou a rasgá-lo enquanto ditava:

— Como-você-esqueceu-do-Belo?

— Chhh! — resmungou Wayne. — Dá para você se acalmar?

— Calma! — Rose riu ironicamente. — Agora você me pede calma!

— É, calma — repetiu Wayne, amargurado. — Não foi culpa do Alvo. Para começar, Hagrid nem deveria estar com aquele ovo, não é mesmo? Uma hora ou outra, nós sabíamos que a situação se tornaria insustentável.

Rose bufou.

— Você está certo — disse brandamente. — Desculpem. Só que agora está tudo por um fio.

— O que está por um fio? — questionou Alvo, temeroso.

— O plano de Copperfield — murmurou Rose. — Se for verdade tudo aquilo você disse sobre Malfoy e Godunov, significa que ele sabe como passar pela Sala. Ou pior, agora ele também sabe que Belo era a armadilha de Copperfield contra os invasores, o que o coloca mais um passo à frente do Ministério.

— E quanto ao Hagrid? — preocupou-se Wayne.

Rose meneou a cabeça.

— A Profa. McGonagall não vai ficar nada feliz em descobrir que ele escondeu uma criatura dessas sem avisá-la — disse Rose veemente. Ela acrescentou ao ver a expressão de pavor dos garotos: — Não acho que ele vai ser expulso, não. De qualquer jeito — Rose olhou severamente para Alvo — temos que nos preocupar com outra coisa mais importante.

— E o que poderia ser mais importante que isso? — rebateu Alvo, aborrecido.

Rose massageou a testa, impaciente. Suas orelhas estavam rubras.

— Pelo amor de Deus, Alvo! — exclamou. — A sua contraprova é na próxima terça-feira!


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