A Redenção do Tordo escrita por IsabelaThorntonDarcyMellark


Capítulo 27
27. Nessa noite, não tenho pesadelos




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Por Katniss

As portas do vagão se fecham atrás de Peeta, logo depois de ele acenar um adeus, com dor e saudade transparecendo no azul de seus olhos.

O trem não demora a sair da estação e, em poucos minutos, desaparece de minha vista embaçada pelas lágrimas, confundindo-se ao longe com a paisagem.

Haymitch, que está de pé ao meu lado, vira-se em minha direção e abre os braços. Eu me jogo neles como uma criança.

— Também senti saudades, docinho. — Ele fecha seus braços ao redor dos meus ombros. — E sei que você já está sentindo falta do garoto, não é mesmo? Também queria continuar ao lado da minha garota.

Aproveito o abraço, que tem um toque paternal, por mais alguns instantes. Em seguida, limpo meus olhos, enquanto Haymitch pega sua pouca bagagem para irmos para a Aldeia dos Vitoriosos.

— Obrigada, Haymitch. — Tomo um pouco de distância, reparando em como sua aparência melhorou em tão poucos dias, e esboço um meio sorriso. — A Effie está de parabéns. Você está alinhado, perfumado e romântico.

— Vamos ver até quando — diz ele, desanimado. — Nesse tempo com ela, não troquei a noite pelo dia e diminui a quantidade de bebida. No entanto, não sei se consigo continuar com essa rotina por conta própria.

— Você vai ao menos tentar, não vai? — indago e Haymitch apenas olha para o chão.

Percebo que seu humor muda um pouco. Então, não insisto por uma resposta e busco outro tema para a conversa:

— Como foi a viagem?

— Como era de se esperar — responde Haymitch secamente. — Sentimos o gostinho de uma vida a dois.

— E o que pretendem fazer daqui pra frente? Vocês estão considerando morar na mesma cidade pelo menos?

— Effie precisa analisar as opções que ela tem e, ao que tudo indica, viver no Distrito 12 não é uma delas. Pelo menos, não nesse momento. — Ele suspira antes de me encarar novamente.

— Mas, se ela gosta de você...

— Não é só por Effie! — Haymitch me interrompe. — É por minha causa também. Ainda preciso arrumar muita coisa para que ela possa se encaixar aqui, sem que eu ponha tudo a perder.

— Por isso, volto a dizer: se ela gosta de você...

— Lindinha — Haymitch me corta mais uma vez —, quem a ouve falar assim pode até pensar que você não tem esse medo também. No entanto, conheço você, como conheço a mim mesmo.

— Eu entendo — digo e me calo pelo restante do percurso.

Não posso negar que me aborreci com toda a acidez de Haymitch, ainda mais depois de um reencontro até carinhoso da parte dele.

O silêncio é quebrado por ele somente quando já estamos próximos à entrada da Aldeia.

— Pensei muito em você no Distrito 7... Belíssimas florestas.

— É uma pena que eu esteja proibida de ir até lá — menciono vagamente, sem querer prolongar qualquer assunto, e me dirijo à minha casa. — A gente se vê, Haymitch. Bem-vindo de volta... Você não perguntou, mas seus gansos sobreviveram à sua ausência.

Ele segue seu caminho sem se dar ao trabalho de me agradecer.

Nem é preciso empurrar minha porta. Greasy Sae a abre, dando passagem para Daisy sair, carregando o pequeno regador que Peeta lhe deu de presente.

Na semana passada, ele e Daisy plantaram juntos algumas mudas de margaridas num canteiro ao lado das prímulas noturnas. Peeta explicou a ela que daisy é o nome dessas flores e a menina ficou encantada.

Então, quando Peeta pediu para que ela regasse as plantas dos canteiros enquanto ele estivesse no Distrito 4, Daisy prontamente balançou a cabeça concordando. Depois, pulou de alegria ao ver Peeta lhe trazer o regador com o nome dela pintado em letras vermelhas.

Agora, ela está regando todas as flores com presteza. Greasy Sae segura a porta para que eu entre, olhando bem para mim.

— Dei um sumiço na cadeira de balanço que ficava perto do fogo. Espero que não vá atrás dela — avisa a velha senhora, antes de voltar à cozinha.

A mesa do café da manhã já está posta para duas pessoas.

— Onde está o Haymitch? — pergunta ela.

— Ele está mais amargo que esse café — resmungo, acrescentando açúcar à minha xícara. — E foi direto para a casa dele.

— Acho que foi bom mesmo você ter vindo sozinha. A Effie telefonou, querendo conversar com você.

— Comigo?

— Ela disse que ligaria depois.

Nem tenho tempo de processar a informação. Nesse momento, Daisy entra correndo pela sala, com o vestido e os sapatos ensopados de água, e estende o regador para a avó, como se pedisse para ela encher mais uma vez o recipiente. Não posso evitar um sorriso.

— Assim você vai afogar as flores. Lembra que o Peeta falou que basta colocar um pouquinho d'água, quando o sol não estiver tão quente? — Greasy Sae recorda.

A menina assente, porém faz um ar triste.

— Vem comigo, Daisy. Você pode regar a grama do quintal lá de trás — sugiro e o rosto dela se ilumina.

Pego o regador e levo-a pela mão. Seus dedinhos apertam os meus com um pouco mais de força e ouço sua voz suave mais uma vez, ainda um pouco vacilante:

— Kat-niss. — Ela olha pra cima, sorri e emenda, pondo a mão livre sobre o lado esquerdo do peito. — Pee-ta.

— Você tirou o dia para me desarmar, não é? — Dou um beijo em sua bochecha e, de fato, sinto meu coração mais leve. — O Peeta vai adorar saber dessa sua declaração de amor.

Ela solta uma risada gostosa. Encho o regador na torneira do tanque e me abaixo para entregá-lo à Daisy, que acaricia meu rosto e depois corre para regar a grama, molhando mais a si mesma do que qualquer outra coisa.

Passo o resto da manhã abastecendo o regador de Daisy, observando-a se divertir com algo tão simples. No final, acabo encharcada também.

Eu me distraio e nem reparo que Greasy Sae ficou em minha casa até a hora do almoço. Só me dou conta quando ela vem buscar a neta.

— Sae! — chamo quando ela aparece na porta. — Você não costuma ficar por aqui nesse horário. O que houve?

— Peeta pediu para cuidar da casa e de todas as suas refeições — explica, enquanto torce a barra do vestido empapado de Daisy. — Vejo você mais tarde, na hora do jantar.

Antes que eu fizesse qualquer objeção, dizendo que isso não é necessário, o telefone toca e entro em casa para atender, enquanto as duas atravessam o quintal em direção à rua.

— Alô?

— Katniss, é a Effie! Que bom que consegui falar com você, pois tenho uma agenda de horários a cumprir!

— Oi, Effie. Que bom falar com você também.

— O Haymitch chegou bem em casa?

— Ele chegou inteiro. — Limito-me a uma informação objetiva, para não correr o risco de dizer que ele conseguiu, num minuto, ser muito atencioso, e, no instante seguinte, assumir sua faceta mais do que desagradável.

— Muito bem, Katniss! Sua voz não está muito animada, mas... enfim... tenho uma grande, grande, grande notícia para dar. Você está sozinha?

— Sim. Por quê?

— Preciso da sua ajuda. No entanto, não se preocupe antes da hora. É por um excelente motivo! — exclama ela e posso imaginá-la agitando as mãos devido ao seu entusiasmo.

— O que preciso fazer?

— Como sempre, indo direto ao ponto... Katniss, Katniss... Pois bem, acabei de ser comunicada de que a Presidente Paylor dispensará os meus serviços de escolta na visita dela ao Distrito 8. Afinal, é a casa dela. Paylor deve ficar por lá um tempo a mais que nos outros distritos. Então... — Ela faz uma pausa prolongada.

— Pode prosseguir, Effie. Você tem um horário a cumprir. — Uso seu ponto fraco para que ela não me deixe tão curiosa.

— Bem lembrado, minha querida! Então, eu gostaria de ficar no Distrito 12 nesse período. No entanto, Haymitch me deixou sem saber se eu seria bem-vinda na casa dele. — Sua voz alegre adquire um tom de seriedade. — Preciso mostrar a ele que nossa relação pode dar certo. Você me ajuda?

— Você quer saber se pode ficar em minha casa, se ele não concordar em receber você, é isso?

— Resumindo bem, é isso.

— Quando você chega?

— Depois de amanhã, quando nossos compromissos no Distrito 7 acabarem, um aerodeslizador levará toda a equipe para a Capital. No entanto, eu ficaria no Distrito 12, se você concordar em me ajudar.

— Pode contar comigo. Se Haymitch achar que é cedo demais para que você se instale na casa dele, não ficará desabrigada.

Ouço o som das palmas do outro lado da linha.

— Katniss, não tenho palavras para agradecer! — Seu jeito animado de falar já está de volta.

— Então, nós nos vemos daqui a alguns dias, Effie.

— Sim, sim, sim! — vibra ela. — Até breve, docinho!

Rio do modo como ela se refere a mim e desligo o telefone.

Respiro fundo e tomo coragem para ir à casa de Haymitch contar a grande, grande, grande novidade. Arrumo em dois pratos um pouco da comida que Greasy Sae preparou e levo até lá.

A porta está aberta e encontro Haymitch sentado numa cadeira, enfileirando algumas garrafas sobre a mesa da sala.

— Achei que não fosse ver você tão cedo — comenta ele irônico.

— Eu também achava isso. O que você está fazendo?

— Analisando as minhas opções — esclarece, arrastando um pouco a voz, sinal de que já bebeu.

— Espero que essas opções tenham a ver, na verdade, com a sua situação com a Effie, e não com relação a essas garrafas à sua frente. — Observo seu semblante com atenção. — Você já falou com ela depois que chegou?

— Ainda não. Os dias dela são tomados de compromissos e ela costuma voltar para o hotel somente à noite. Hoje, ainda por cima, haveria uma longa reunião com a Paylor. — diz ele, examinando os rótulos das bebidas.

— Essa reunião já terminou — afirmo e agora tenho toda a atenção de Haymitch. — Effie ligou pra mim.

— Pra você? — duvida ele e parece ainda mais irritado do que antes.

— Ela será dispensada durante a ida da Presidente Paylor ao Distrito 8 e decidiu vir para o Distrito 12.

— Effie vem para o Distrito 12? — Haymitch salta da cadeira e se põe à minha frente, completamente transformado, com o maior sorriso que já vi em seu rosto. — Ela está vindo pra cá?

— Sim. Ela ligou pra mim, e não pra você, pois não sabia se você a receberia aqui em sua casa.

— Mas é lógico que ela vai ficar na minha casa! — Haymitch declara animado.

— Effie chega depois de amanhã — informo e Haymitch me faz rodopiar, segurando em uma de minhas mãos.

— Eu proporia um brinde, mas a minha intenção é tentar diminuir a bebida.

— Então, vamos almoçar e, depois, dar um jeito nessa casa — decido por nós dois.

Assim, passamos o restante da tarde ocupados. Quando estou saindo para voltar para casa, Delly se aproxima da porta de Haymitch com dois pequenos embrulhos:

— Oi, Katniss! Fui até a sua casa, mas não havia ninguém. Greasy Sae acabou de sair de lá. — Ela ergue os pacotes que estão em suas mãos. — Fiz alguns biscoitos. Peeta me ensinou. Só não sei se fui uma boa aluna. Vim trazer para o Haymitch e, já que você está aqui, posso entregar os seus também.

Pego o embrulho que ela me oferece.

— Haymitch está lá em cima, mas acho que podemos deixar os biscoitos dele sobre a mesa. — Entro novamente na sala dele e grito. — Haymitch, Delly trouxe biscoitos pra você! Vou deixar aqui em baixo e já vamos indo!

— Acho que ele escutou. — Delly ergue os ombros.

— Ok! — A voz distante de Haymitch confirma que sim.

Encosto a porta e vamos caminhando juntas pela rua.

— Está tudo bem? — Delly pergunta.

— Está sim.

— Se precisar de qualquer coisa, Katniss...

— Sei que posso pedir sua ajuda — completo.

— E a ajuda de Blaine... e a de Thom também — acrescenta Delly.

— Estou mesmo cercada de apoio — constato, sorrindo em sua direção. — Obrigada mais uma vez.

— É o mínimo que posso fazer por você e... pelo Peeta.

— Também estou aqui, se precisarem.

— Eu sei. Até uma próxima vez, Katniss.

— Adeus, Delly.

Ela começa a andar em direção à casa de Peeta. Meus olhos a acompanham até ela atravessar a porta de entrada e, depois, fixam-se nos canteiros de flores da lateral da minha casa.

Num lampejo, repasso em minha mente o que aconteceu no dia de hoje e percebo a ação de Peeta em tudo, ou quase tudo. Ele sutilmente tentou cobrir todas as áreas do meu cotidiano que necessitam de cuidados constantes... Greasy Sae se ocupando da casa e da alimentação... Daisy tratando das flores... Delly, Thom e Blaine tomando conta de mim e de Haymitch.

Eu poderia ficar chateada por ele não acreditar que seria capaz de cuidar de mim sozinha. No entanto, fico mesmo é lisonjeada com sua preocupação.

Peeta deixou apenas algo descoberto, o que era inevitável, pois ninguém pode substituí-lo nesse exato momento, em que quero apenas ele ao meu lado.

Fecho a porta atrás de mim e me deparo com o que mais temi desde que soube da viagem de Peeta. Aqui estou eu, novamente sozinha.

Mesmo nos períodos em que me afastei dele, havia o conforto de saber que poderia encontrá-lo do outro lado da rua.

Não estou com muito apetite, porém como o que Greasy Sae deixou para a janta. Demoro um século para terminar a refeição. Não tenho ânimo. Nessa noite, não terei Peeta comigo.

Agora, resta apenas a certeza de que não consigo mais ficar separada dele. No entanto, de alguma forma, terei de reaprender a conviver com a solidão.

Menos mal que tenho a companhia de Buttercup. O gato me espera no último degrau da escada e me acompanha ao banheiro e de volta ao meu quarto.

Como Finnick disse, é dez vezes mais demorado se recuperar da crise do que entrar nela. Então, preciso ser forte.

Acontece que, diversamente dos dias de angústia que passei no Distrito 13 ao lado do meu amigo, à espera de notícias de Peeta e Annie, não vou fazer e desfazer nós numa corda. Vou ler o que Peeta escreveu sobre mim.

Pego os seus manuscritos e encontro uma posição confortável na cama. Buttercup se aconchega ao meu lado.

Percorro os dedos rapidamente pelas folhas e vejo que estão permeadas de desenhos. Na primeira página, há uma figura da planta que leva o meu nome, com suas flores, folhas e raízes, e um título bem destacado: Katniss. 

No canto dela, há um bilhetinho colado, onde está escrito:

"Não se preocupe. Não confundi este capítulo com o Livro de Plantas".

Sorrio e viro a página para ver o que ele reservou sobre mim, para ficar guardado em nosso livro de memórias.

"Katniss é um nome forte e inspirador. Ao mesmo tempo, belo e doce. Descreve a sua dona com perfeição.

Quando penso nesse nome, vem à minha mente a menina que não faz ideia do efeito que causa.

A garota cujos olhos se iluminam quando está caçando, com passos silenciosos — diferentes dos meus — enquanto caminha pela floresta.

A menina que canta tão lindamente que até os pássaros param para ouvi-la.

A jovem que possui a coragem para liderar uma rebelião e, ao mesmo tempo, a delicadeza de cuidar de todos ao seu redor, tanto através de pequenos gestos, quanto por meio de atos grandiosos.

Katniss Everdeen, a tributo que não recebeu uma salva de palmas no dia da Colheita, quando Effie pediu.

Ao contrário disso, ela recebeu o silêncio da multidão e, depois de alguns minutos, uma a uma, as pessoas a saudaram, pressionando os três dedos centrais da mão esquerda nos lábios e os erguendo em sinal de admiração, despedida e respeito.

A filha de um mineiro do distrito mais pobre de Panem, que sobreviveu aos Jogos Vorazes e transformou uma nação de oprimidos em um exército.

Tudo nela é absolutamente precioso. Katniss me conquistou por completo, não somente por sua beleza, mas por suas qualidades e virtudes.

Por suas opiniões firmes, seu caráter e seus valores. Pela bondade do seu coração, por sua preocupação com os demais. Pela pureza de seus gestos e por sua autenticidade.

Ela me cativou também por seus defeitos, seu temperamento arredio, sua impulsividade e sua teimosia, mas, sobretudo, ela roubou meu coração pelo que me proporciona: felicidade e esperança.

Apesar de tudo o que tivemos que passar para chegarmos a este ponto, fico agradecido por estar finalmente a seu lado, algo com o que sonhei desde que éramos apenas crianças.

Katniss é o amor da minha vida desde que tenho cinco anos de idade.

Não é como se eu soubesse de muita coisa aos cinco anos. Era apenas um menino, uma tela em branco.

Eu não estava procurando por amor, nem sabia o que era o amor, porém foi o que encontrei no meu primeiro dia de aula.

Assim que cheguei à escola, levado por meu pai, ele me contou sobre sua vontade de se casar com a mãe de Katniss quando ambos eram mais jovens.

Era bem possível que essa história caísse no esquecimento, afinal era o meu primeiro dia no colégio e eu estava envolvido com a alegria das novidades e com o medo do desconhecido.

No entanto, meu pai me disse também que sua pretendente havia fugido com um mineiro que, quando cantava, até os pássaros paravam pra escutar.

Assim, meu pai despertou em meu coração de criança uma grande curiosidade. Logo minha atenção ficou presa na garotinha de olhos cinzentos e pele cor de oliva, que usava um vestido vermelho e os cabelos escuros presos em duas tranças. E reparei em como ela era linda!

Para minha felicidade, naquele mesmo dia, a curiosidade deu lugar à admiração.

Na aula de música, a professora perguntou quem sabia a canção do vale. A mão de Katniss levantou rapidamente no ar e me encantei com sua espontaneidade.

A professora a colocou de pé num banco e fez com que cantasse a música para todos da turma. Prestei a máxima atenção, depois do que o meu pai havia falado, e testemunhei que todos os pássaros do lado de fora silenciaram.

Foi quando me apaixonei pela voz dela. Sua voz era tão bonita, alta e clara, e tão cheia de vida que me fazia querer rir e chorar ao mesmo tempo. A canção nem havia acabado e eu já havia sido irremediavelmente conquistado por aquela menina da Costura.

Desde então, reunia coragem para falar com Katniss, mas sequer conseguia me aproximar dela.

Antes da colheita que mudou nossas vidas, houve entre nós uma única ocasião em que interagimos verdadeiramente, quando tínhamos apenas onze anos.

Foi numa época difícil para ela e sua família, alguns meses após a morte de seu pai. Ela havia perdido o seu pai e, de certa forma, sua mãe também, quando ela entrou em depressão.

Chovia naquela tarde de abril. O cheiro dos pães no forno era delicioso e eu estava incumbido de retirá-los quando estivessem no ponto.

Pela porta dos fundos, vi Katniss tropeçando ao longo da pista enlameada atrás das lojas dos comerciantes, revirando as lixeiras. Minha mãe também viu sua figura franzina e começou a gritar para enxotá-la.

Decidi que deveria fazer alguma coisa para ajudá-la, pois não suportava vê-la daquele jeito. Voltei para o forno da padaria e, de propósito, deixei cair diretamente no fogo alguns dos pães mais nutritivos daquela fornada, recheados com passas e nozes.

Como eu pretendia, eles queimaram por fora, mas não por dentro, e ficaram imprestáveis para a venda.

Eu já previa os gritos e a punição vindos da minha mãe e, de fato, eles vieram rapidamente. Além disso, ela mandou que eu jogasse o pão queimado para os porcos.

Todavia, isso não atrapalhou meus planos, apenas me deixou muito envergonhado. Por isso, consegui jogar discretamente os pães na direção de Katniss, porém não tive coragem nem mesmo de olhar pra ela.

Quando fechei a porta da padaria atrás de mim, meu rosto ardia muito pela pancada que recebi, mas havia valido a pena.

No dia seguinte, vi Katniss no corredor da escola e, mais uma vez, não consegui falar com ela. Ao término das aulas, quando Katniss foi buscar Prim, ela me pegou a observando através do campo do colégio. Nossos olhos se cruzaram por um segundo, entretanto logo desviei os meus para longe, como sempre acontecia.

Eu não fui capaz de lhe dirigir nem mesmo uma palavra ou um olhar, mas torcia para que aqueles pães tivessem sido um sinal do quanto ela era importante para mim e do quanto eu queria confortá-la.

Um sinal do meu amor, que aumentava a cada dia, mesmo depois que ela passou a usar uma trança em vez de duas, mesmo depois que ela trocou a música pelo silêncio, mesmo depois que sua infância foi substituída por responsabilidade, arcos e flechas.

Se me apaixonei por sua beleza e sua voz, após aquele dia, continuei amando a minha linda caçadora por diversos motivos.

Seu desprendimento... Ela sempre foi capaz de renunciar a qualquer coisa por Primrose.

Sua força... Katniss não pôde contar com o apoio de sua mãe para manter a ela e a sua irmã e, mesmo sendo tão nova, encarregou-se de alimentar e sustentar sua família.

Sua coragem... Ela se voluntariou como tributo para enfrentar os Jogos Vorazes no lugar de Prim, originalmente sorteada na colheita.

Seu atrevimento... Katniss foi capaz de disparar uma flecha na direção dos idealizadores dos Jogos na sessão de treinamento privada e, com isso, recebeu a maior nota dentre todos os tributos.

Sua valentia... Mesmo na arena, o lugar projetado para despertar o que há de pior em nós, Katniss acolheu a pequena Rue, dividindo com ela sua comida, suas roupas e seu carinho, honrando a morte da menina e afrontando a Capital ao cobrir seu corpo com flores, num ato que misturava singeleza, compaixão e rebeldia.

Suas atitudes são assim generosas e heroicas. Seu modo de amar é único e visceral.

Quando fui sorteado para a 74ª edição dos Jogos Vorazes, meu pai sabia que eu daria a vida para salvar Katniss e não retornaria vivo daquela arena. Meu pai sabia que eu a amava, mas eu não fazia ideia de que ele tinha noção de toda a dimensão. No entanto, ele me conhecia tão bem que sabia do que eu seria capaz.

Acontece que meu pai não sabia que a sorte estava a meu favor quando Effie recolheu o meu nome naquela colheita.

Só assim, pude segurar a mão de Katniss e trocar as primeiras palavras com ela.

Só assim, tive forças para conquistar uma improvável parceira para fazer com que Haymitch nos ajudasse.

Só assim pude ver de perto a sua descoberta como a Garota em Chamas.

É engraçado me lembrar de como estávamos com medo de sermos queimados vivos durante aquele desfile. Nosso nervosismo era tanto que acabamos nos aproximando e prometemos ajudar um ao outro com as roupas pegando fogo, rindo da nossa situação surreal.

Até que Cinna acendeu nossos trajes e nós dois ficamos aliviados quando percebemos que o fogo era falso. O que queimava mesmo era a minha mão esquerda presa à mão direita dela, depois que Cinna sugeriu que ficássemos de mãos dadas. O meu peito também flamejava, com a visão esplendorosa de Katniss envolvida em chamas.

Pelas mãos de Cinna, a Garota em Chamas veio à tona, porém não foi o talento dele que criou esse traço de Katniss. Cinna, numa feliz coincidência, casou perfeitamente o visual dela com a sua personalidade inflamada, que ainda estava escondida pelo jeito reservado de Katniss, mas que, no momento certo, incendiou uma nação.

Na entrevista antes do Massacre Quaternário, foi diferente, pois a criação de Cinna não foi mera coincidência. Num ato de bravura e resistência, ele transformou Katniss no Tordo, o símbolo do broche que Madge deu a ela, o pássaro que a Capital nunca quis que existisse, mas cujo surgimento não pôde evitar.

A sorte também estava a meu favor quando consegui declarar meu amor por ela apenas na entrevista da véspera dos primeiros Jogos.

Definitivamente, não foi o melhor momento ou a melhor forma de abrir meu coração — em rede nacional, expondo publicamente um assunto tão íntimo e colocando Katniss numa situação embaraçosa.

Logo depois da entrevista, ela deixou bem claro para mim que não havia sido uma boa ideia. Num rompante de raiva, Katniss fez minhas mãos e meu coração sangrarem.

Completamente frustrado, eu a acusei de ter feito aquilo por imaginar que poderia magoar o seu suposto namorado e melhor amigo, Gale. Confirmei nos olhos dela essa preocupação e, em vez de ficar aborrecido por ela ter me machucado de várias formas, eu estava realmente admirado por constatar que, nem mesmo em situações extremas, Katniss deixa de proteger as pessoas que ela ama.

No entanto, eu tinha que me declarar, eu precisava fazer aquilo. Afinal, teoricamente, eu morreria em poucos dias.

Além disso, as consequências dos meus atos não foram tão ruins, pois, com essa novidade em mãos, os idealizadores dos Jogos imaginaram uma forma diferente de entretenimento, fazendo promessas de sobrevivência às duplas dos distritos, principalmente para incentivar nosso envolvimento.

Assim, ainda conquistamos alguns patrocinadores por causa de nossa história de amor impossível.

Eu me associei aos tributos carreiristas para protegê-la enquanto pudesse. Seu olhar de decepção quase me fez desistir.

No entanto, foi sacrificando o que quer que ela sentisse de bom por mim que consegui ajudá-la a fugir da perseguição de Cato, logo depois do ataque das teleguiadas.

Eu já me considerava morto, quando a mudança nas regras foi anunciada.

Katniss me encontrou, cuidou das minhas feridas e arriscou sua vida para buscar o remédio que impediu o meu fim.

Nos dias em que nos refugiamos na caverna, também vivenciei o que sempre pareceu algo improvável para mim. Senti seu toque, beijei seus lábios e sonhei com uma vida a seu lado.

Todavia, como era de se esperar, os idealizadores dos Jogos estavam nos enganando. No entanto, Katniss os prendeu na armadilha que eles próprios criaram.

Quando eles tentaram frustrar nossa esperança de que nós dois sairíamos vivos da arena, Katniss respondeu com a ameaça de que nenhum de nós sobreviveria, por escolha nossa.

Então, para não ficar sem um vitorioso, a Capital se viu obrigada a voltar atrás e a poupar os amantes desafortunados.

Ocorre que esse seu gesto desafiador não teve por consequência apenas a nossa sobrevivência.

Quando a Turnê da Vitória teve início, ficou claro que os habitantes dos distritos não tinham tanto receio de demonstrar sua insatisfação com o governo e que levantes estavam prestes a acontecer.

Foi então que Katniss e Haymitch me contaram sobre a necessidade de Katniss convencer Panem — e o Presidente Snow — de que nossa ameaça de suicídio na arena foi um ato de amor, e não uma insubordinação.

Ironicamente, a sugestão de Katniss de um pedido de casamento em público foi uma das coisas mais dolorosas que já ouvi de seus lábios.

Ficamos noivos durante a Turnê da Vitória, mas não foi algo verdadeiro. Para mim, nesse período em que convivemos tão proximamente, o fato mais importante foi descobrir que Katniss tinha pesadelos como eu e que conseguíamos nos acalmar mutuamente.

Como naquela época, os pesadelos que ainda me deixam paralisado geralmente são sobre perdê-la. E, como naquela época, eu desejo poder velar seu sono em todas as oportunidades.

Naquelas noites no trem, acreditava que, quando estávamos a sós e precisando um do outro, não havia nenhuma encenação de Katniss.

O nosso romance foi apenas uma atuação da parte dela? Somente Katniss pode responder a essa pergunta.

Cheguei a definir como fingimento, injustamente, o que Katniss fez por nós. No entanto, ela não sabia que o meu amor nunca foi parte dos Jogos e sempre foi parte de mim.

Atualmente, prefiro pensar que o modo como ela agiu foi uma estratégia da qual participei, ainda que sem ter plena consciência. Eu mesmo a induzi a interpretar esse papel.

Além disso, sei que, no fundo, algumas coisas que vivenciamos foram reais e despertaram algum sentimento nela.

Foi o que confirmei no Massacre Quaternário, nas ocasiões em que, sob o céu da arena, éramos somente nós dois.

Mesmo sabendo que um de nós poderia morrer a qualquer momento, nunca havia sido mais feliz do que naqueles instantes com Katniss, especialmente quando ela confessou que precisava de mim e me beijou, interrompendo minhas objeções, fazendo minhas palavras desaparecerem.

Finalmente, percebi que, de fato, não havia mais nada a se dizer. Foi quando tive certeza de que ela sentia algo por mim também... No entanto, pouco depois, até essa certeza me foi arrancada.

Nós nos separamos na arena-relógio. Katniss destruiu o campo de força que cobria a arena, foi retirada de lá pelos rebeldes e levada para o Distrito 13. Katniss se tornou o símbolo de uma revolta contra a opressão de Snow.

O Distrito 12 sofreu um bombardeio e foi destruído. Perdi minha família e alguns de meus amigos.

Fui capturado pela Capital.

Amor não é algo que caiba dentro de qualquer arena. A minha maior subversão foi amar Katniss e fui punido por isso.

Foi por esse motivo que sofri o telessequestro.

Odiei Katniss e tive pavor dela. Tentei matá-la e pedi para ela me matar. Eu a magoei profundamente. Não deixei que Katniss tirasse a própria vida.

Sobrevivi à Rebelião, mas ainda era o quadro borrado e descolorido em que me transformaram.

No entanto, eu amava tanto Katniss, sempre amei, e esse amor ardia tão intensamente em meu peito que, mesmo durante os dias mais obscuros da minha vida, a chama dele não se extinguiu.

Tudo isso que passou... Apenas passou.

O que ficou foi o meu amor e a intensidade desse sentimento me deu forças para que uma parte escondida de mim restaurasse com cores vivas o quadro manchado no qual me tornei.

Descobri que o amor pode nos destruir, mas pode também nos reconstruir.

Eu retornei para o Distrito 12 e constatei que Katniss havia parado de lutar. Foi algo perturbador, porque ela sempre foi uma das minhas referências de força e determinação.

Mas compreendi que, como eu, Katniss é uma sobrevivente e ainda está se curando de muitas feridas. Afinal, tudo o que ela tinha se foi. Sua irmã, seus amigos, seu lar, tudo lhe foi tirado.

No entanto, pedi e Katniss me permitiu cuidar dela.

Gostaria de dar a ela a vontade de prosseguir, porque Katniss é a razão pela qual continuo lutando.

Não temos o direito de cobrar nada um do outro. Nossas dívidas já foram pagas. Se decidi permanecer ao seu lado, é porque a amo.

Eu prometo amá-la, simplesmente amá-la, com todo o meu ser.

E ficar com ela... Sempre.

Essa última palavra ecoa em minha mente como se o próprio Peeta a estivesse sussurrando em meu ouvido.

A força de tudo o que ele escreveu me agita por dentro, porém, ao mesmo tempo, é fonte de calma.

Fecho os olhos e durmo, sem o conforto dos seus braços, mas com a energia e a serenidade que suas palavras me trazem.

E, nessa noite, não tenho pesadelos.


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Notas finais do capítulo

Olá, pessoal!
Outro texto difícil de escrever, com um "capítulo" dentro do capítulo e esse "capítulo" trata de ninguém mais, ninguém menos que da Katniss!
Espero que tenham gostado!
Aguardo as opiniões e sugestões para melhorar também...
Pra quem leu o capítulo passado assim que publiquei, eu fiz uma alteração no início da carta da Katniss, graças à sugestão da AnnieWalker, que me alertou para o fato de que a Katniss não tem tanta facilidade para se expressar. Confere lá!
Beijos!