Casa de Bonecas escrita por Ravenna Quagliarelli


Capítulo 6
• Ruínas •


Notas iniciais do capítulo

Depois de um ano, finalmente concluí sz.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/690959/chapter/6

Janeiro, 2014.

Aquilo era loucura. Ela soube a partir do momento que pisou no estúdio e viu o sorrisinho falso de uma das produtoras daquele programa ridículo. Ela estaria ficando louca? Esse questionamento passou pela sua cabeça enquanto um esquadrão de maquiadoras, cabeleireiras e figurinistas a cercaram. Enquanto fitava o teto se lembrou que ninguém a forçara fazer aquilo, lembrou que talvez a morte de Richard havia afetado mesmo sua mente, como ela temia. Seria mesmo tudo isso real? Novamente essa pergunta cruzou sua mente, a mesmíssima de quando viu a mensagem da diretora do programa a convidando a participar; a mesma de quando viu o caixão de Richard sendo abaixado; a mesma de quando recebeu a ligação da diretora do colégio de Anabel quando a encontraram inconsciente no chão; a mesma de quando fugiu para viver com Richard; a mesma de quando foi espancada; de quando se viu vestida de noiva; de quando foi pedida em casamento; quando conheceu seu marido e, por fim, quando sua mãe anunciou que ela casaria. Enquanto analisava o cenário do programa percebeu que sua vida, na realidade, parecia uma ficção, um daqueles filmes que quando alguém assiste murmura inconscientemente que aquilo é impossível de se acontecer, de que ninguém na face da Terra seria tão azarado. Ela sentia vontade de rir. Não, não só rir. Ela queria gargalhar. Seu maior desejo era gargalhar enquanto sentia a garganta ardendo e o mundo girando e o sangue escorrendo e a morte chegando. Ela sentiu vontade de gargalhar ao perceber que rimava; ao perceber que sua vida podia ser uma obra de arte; que alguém podia ganhar muito, muito dinheiro com ela. Ou melhor, podiam ganhar mais dinheiro com ela; já haviam feito isso, certo? Ah, sim, se ela estava lá agora era por causa do dinheiro. “Maldito sistema”, pensou, enquanto via o exército de conduzir massas se posicionando atrás de câmeras, pranchetas e microfones. Ela era só uma vítima dele também, não havia a quem culpar, não havia rostos. Se ela estava naquela fatídica – e cômica – situação era por causa dele; se Richard estava enterrado agora o culpado era ele. Espere; não, ele não era o único culpado. “Anabel”, uma vozinha tristonha sussurrou. Sua filha era, certamente, só mais uma vítima do maldito sistema; mas ela havia ido longe demais, mais longe do que ela mesma fora. E merecia pagar.

Quando as luzinhas vermelhas começaram a piscar, Consuelo – a apresentadora daquele ridículo programa –, abriu um sorriso de dar inveja em qualquer criatura que tivesse o mínimo de consciência, ela varreu os pensamentos para o porão, onde só ela tinha acesso e ativou o modo boneca que todos estavam acostumados.

Era meio impossível não ver o comercial anunciando que sua mãe estaria participando daquele circo – ou, como as pessoas gostavam de chamar, A verdade com Consuelo. A qualquer momento que ela fosse a cozinha, onde o televisor ficava frequentemente ligado por causa das empregadas, o comercial passava, com todas aquelas frases de impactos ridículas e a apresentadora no final anunciando o tema e a convidada da semana.

— Nessa semana teremos a polêmica socialite Aurélia D’Cruz Loyola, que irá discutir conosco os perigos e dificuldades de criar um filho nesse mundo moderno. — Ela pronunciava com o mesmo sorriso avassalador de sempre.

Quando Anabel ficou sabendo do tema teve vontade de rir. Por que sua mãe não sugeriu o tema Como ser uma mãe merda quando sua filha suplica seu carinho? Com toda certeza ela se daria bem com esse tema.

Quando a mulher ruiva anunciou a convidada da semana Anabel bufou, revirando os olhos. Ao ver sua mãe entrando, sorridente, na frente das câmeras, a loura apertou com força o seu copo, dando um longo gole na água em seguida.

— Creio que a primeira coisa que tenho que perguntar é: a relação com as drogas do seu filho mais velho tem alguma relação com o período que permaneceu afastada? Será que o seu sumiço foi o motivo para o seu envolvimento com as drogas? — Consuelo perguntou sem pestanejar.

— Bom, talvez o meu “sumiço” — Ela fez aspas ao pronunciar a última palavra —, como você disse, tenha sim, uma pequena relação. Mas, acima de tudo, foram as más amizades, afinal mesmo distante sempre fui presente na vida dos meus filhos, mesmo que pouca. — Mentiu. — Mas, de uma hora para a outra, ele e minha filha mais nova se afastaram de mim, talvez fosse a adolescência, eu realmente não sei. Não entendi quando começaram a ser frios comigo nas ligações e, quando pararam de ligar, doeu, me senti rejeitada, sabe? E quando eu voltei por causa deles recebi a trágica notícia de que ele havia virado escravo dessas malditas drogas.

Seus olhos se encheram de água, seu corpo miúdo tremeu quando um soluço irrompeu de sua garganta. Anabel bateu o copo na bancada, nervosa.

— Mentirosa! — Gritou, sentindo as lágrimas quentes escorrendo por suas bochechas.

Não entendia como alguém podia ser tão manipuladora, tão mentirosa, tão falsa! Não entendia como Aurélia conseguia chorar ao proferir tais calúnias. Não entendia como podiam existir pessoas tão más. Tudo o que Aurélia fazia era para o seu bem e, daquela vez, não foi diferente. Era bem mais fácil falar mal dos filhos, colocar toda a culpa num morto e numa suicida do que em si, não é mesmo? Ninguém iria procurar saber se era verdade, afinal. E Ernesto – o único que sabia a verdade – não moveria um dedo para livrar os filhos, contanto que seu nome não fosse citado. Anabel desnuviou a cabeça, focando novamente no que sua mãe falava.

— E o atual caso da sua filha mais nova, a Anabel? Você acha que ela foi seduzida por más influencias também? Ou crê que, dessa vez, a culpa recaia sobre você? Ou acha que ela sofre de alguma doença psicológica para tentar o suicídio?

— Anabel nunca gostou de mim, desde que era muito, muito nova. Eu fazia de tudo para satisfaze-la, mas, ainda assim, ela me ignorava, tanto que, quando resolvi dar um tempo em meu casamento, ela era a mais fria comigo, enquanto eu e Marcos ficávamos horas a fio conversando no telefone, ela fazia de tudo para encurtar nossa conversa.

A menina quase soltou um grito ao ouvir tal revelação. Ela se lembrava de como Aurélia a rejeitava, inclusive quando elas conversavam no telefone. Enquanto a menina ficava criando assuntos aleatórios, a mulher vivia cortando suas falas, dizendo que estava atrasada para algum compromisso que não existia ou perguntava de Marcos. Aquelas lembranças eram tão vividas para Anabel que ela podia sentir o telefone pendurado no ombro, podia ver suas pernas cobertas pelas frequentes meias-calças, balançando enquanto ela estava sentada na ponta da poltrona de seu pai, tentando alcançar o chão. Ela lembrava da voz fria e monótona de Aurélia. Também lembrava de quando sua mãe ainda não tinha fugido, da raiva que ela transpassava para a garota, de como a ignorava por simplesmente “lembrar tanto a ele que até doía”. Na época, ela não compreendia, mas, agora, após tanto tempo, Anabel entendia; entendia que Aurélia sempre se referiu a Ernesto, sempre se referiu ao casamento fracassado dos dois. Caso a menina fosse parecida com Richard – ou até mesmo com ela – tudo seria bem mais fácil, mas infelizmente, a vida não era assim. Porém, aparentemente, não era assim que Aurélia pensava. Para Aurélia, a culpa sempre seria de Anabel e Ernesto, mesmo que, na época, o único erro de Anabel fora nascer.

— Mas ela era muito nova na época, não? É claro que a tendência de uma criança quando a mãe se ausenta é se afastar, você deveria ter compreendido. — Consuelo retrucou, ganhando novamente a atenção da menina para o programa. Ao ouvir a ruiva defendendo-a, sorriu, sentindo-se compreendida por alguém finalmente.

— O problema é ela nunca gostou de mim. Ela preferia a presença das babás a minha quando era bebê. Recusava meus brinquedos... Sempre foi uma criança complicada, no mínimo.

— Não! — Anabel gritou, levantando-se da cadeira num sobressalto, derrubando-a.

Mentiras, mentiras e mentiras. Ela lembrava. Lembrava da maioria das coisas. Tudo ficou como uma cicatriz na mente da menina. Algumas só podiam ser vistas quando prestava muita, muita atenção; outras ficavam lá, evidentes, como um lembrete do quão cruel Aurélia é. Anabel lembrava de quando a empurrava para as babás e, quando dava um brinquedo para ela, momentos raros, tirava-os da garota, por dizer que ela não merecia.

— Só depois que eu voltei que ela tentou recuperar o tempo perdido, mas ela se tornou possessiva, achou que eu iria abandoná-la a qualquer momento. Há pouco tempo, me envolvi num programa de caridade que a escola dela estava oferecendo e acho que ela ficou com ciúmes, então, para chamar minha atenção, tentou se matar.

— Não! — Gritou mais uma vez, repetindo a palavra, em sussurros, repetidas vezes, enquanto balançava a cabeça freneticamente.

— Então por que, invés dela ter ido para a sua casa, foi para a de um amigo? Se ela queria tanto chamar sua atenção, por que não deu a devida atenção a garota? — Consuelo perguntou novamente, arqueando as sobrancelhas, curiosa.

— Não é óbvio? — Aurélia questionou, revirando os olhos. — Ela está com ressentimento e resolveu morar com o namorado.

— Namorado? — Consuelo questionou, surpresa.

— Sim, o filho do deputado é namorado da Anabel. O Victor Messerli. — Pronunciou devagar, deliciando-se com as palavras que saiam de sua boca.

— Não, não, não, não, não... — Repetia entre gritos, sentindo seu corpo tremer, sua mente escurecer.

As coisas giravam. Mentiras. Por que doía tanto? Ela só queria seu amor. Seria pedir demais? Sem pensar, Anabel jogou o copo contra a televisão, ouvindo-o espatifar no chão. Pegou a banqueta e jogou-a no chão, chutando-a até sentir-se fraca demais para continuar. Por fim, se arrastou até os cacos de vidro, deitando sobre eles, sentindo as lágrimas se misturarem com o sangue que jorrava do mínimo corte que um dos cacos fizera em seu rosto. No momento, ela só queria descansar pela eternidade.

Uma das empregadas chegou correndo, arfando ao encontrar a menina deitada sobre os cacos de vidro, os pequenos cortes ainda jorrando pequenos riachos de sangue, formando mínimos lagos no chão de mármore. Chamou Victor aos berros quando colocou-a no sofá, depois limpou toda a bagunça que a menina fizera, enquanto observava, silenciosamente, o menino cuidar dela com o Amor que nenhum dos dois nunca recebeu.

Todos estavam reunidos ao redor da mesa de jantar luxuosa de Marcelo, os empregados circulando-os, colocando as comidas em seus pratos como se eles fossem crianças que não podiam se servir sozinhos. Ela se lembrava que, quando adolescente, odiava aquilo. Ela sempre teve uma vontade incontrolável de ser independente e, agora, era só uma escrava das vontades dos outros; agora, ela estava prestes a retirar o direito da escolha de sua filha também.

 “Hipócrita”, a vozinha que, com esforço, permanecia em sua mente desde a adolescência gritou. Ela era a responsável por deixar a Aurélia se sentindo um lixo por causa das suas ações. “A Anabel matou o Richard, ela merece isso!”, a outra voz, mais recente, exclamou. Essa, por sua vez, era responsável pelas merdas que Aurélia estava fazendo; era a responsável pela perda da essência. “Calem-se!”, Aurélia ordenou, batendo o pé no chão com força, o que assustou Tânia – a esposa de Marcelo –, Ernesto e o próprio deputado.

— Desculpem. — Murmurou, dando a primeira garfada em sua salada.

— Não precisa se desculpar, querida. Entendemos que toda essa situação está te incomodando. Também está nos deixando muito confusos. — Tânia revelou, calma, lançando uma piscadela para a matriarca. — E é por isso que vocês estão aqui, certo? Para resolver tudo isso.

— Creio que o melhor a fazer é criar um namoro de fachada, ninguém saíra prejudicado. — Ernesto propôs, dando um gole em seu suco de abacaxi com menta. — A morte de Marcos e da overdose de Anabel sairá de foco, assim como a homossexualidade de Victor. — Depositou o copo na mesa cuidadosamente, abaixando os olhos para a salada e fazendo uma careta. — Cinco anos seria o suficiente. — Completou, pegando o garfo e começando a brincar com a comida discretamente.

— Mas um namoro não seria curto demais? Quando acabar, a hipótese de que meu filho seja gay pode voltar. — Contrapôs Marcelo. — Creio que a ideia do namoro pode se estender até os dezenove anos, depois eles se casam. Assim todo mundo sairia ganhando de verdade. — Ele encarou Ernesto, com um sorriso maroto.

É claro que havia algo mais naquela situação toda: dinheiro. Aurélia respirou fundo, sentindo, pela primeira vez, as duas vozinhas entrando num acordo: Anabel podia ser a pior pessoa do mundo, mas ela não estava a venda.

— Não. — Aurélia murmurou, erguendo seus olhos para encará-lo. — Posso até concordar com o namoro, sei que pode nos ajudar de muitas formas, inclusive financeiramente. — Falou lentamente, se deliciando com a expressão assustada do deputado. — Mas o casamento é pesado demais, estamos no século XXI, não podemos simplesmente tirar o direito de escolhas deles. E se ela não quiser casar? Ou se for lésbica? Eu, como mãe, não tenho nada contra. E, acredito que meu marido também não, certo, Ernesto? — Ela inclinou levemente a cabeça ao encará-lo, em seus olhos podia-se ler apenas uma coisa: não estrague a vida da nossa filha como estragaram as nossas.

— Sim. — Respondeu seco, após alguns segundos em silêncio, enquanto ponderava se devia abandonar aquela proposta.

— Mas uma mulher deve casar! — Marcelo exclamou, dando um soco na mesa, fazendo sua mulher tremer de medo. — E outra: devemos nos unir para acabar com esse homossexualismo, isso é uma abominação. Deus não deixou isso.

— Novamente, estamos no século XXI, ela deve escolher o que quer. E eu respeito a opção sexual das pessoas, assim como respeito sua opinião de que é uma abominação. — Espetou a última rúcula de seu prato, mastigando-o vagarosamente.

— Se quer tanto que sua filha tenha esse direito de escolha, por que concorda com o namoro? Você não está sendo um pouco hipócrita? — O deputado perguntou, exibindo um sorriso de escárnio.

Aurélia engoliu a folha, deu um gole em seu suco de laranja, secando o canto da boca com o guardanapo de tecido sem parar de encará-lo, por fim, revelou, calmamente:

— Só quero castiga-la com um pequeno choque de realidade, caso continue fazendo as coisas que faz terei que tomar uma atitude drástica.

— Qual? — Tânia questionou, arregalando os olhos.

— Nem eu sei, minha cara. Nem eu sei...

O carro branco parou em frente de sua casa, o motorista desceu, abriu sua porta e ofereceu a mão. Anabel o olhou com um ponto de interrogação evidente na cara, franzindo a sobrancelha.

— O senhor sabe que não estou mais morando aqui.

— Ordens de dona Tânia, senhorita Anabel. — Respondeu simplista, quase se desculpando.

Ela girou a cabeça e encarou Victor, que estava tão confuso quanto a garota. O moreno deu de ombros, pronunciando um “Eu não sei de nada. Juro”, sem emitir som algum.

— Ah, entendi. — Murmurou, tristonha, assentindo lentamente. Foi por causa do copo e da cadeira, com toda a certeza. Ela não a queria mais lá, estava cansada da garota. Não que aquilo fosse novidade.

Anabel pegou sua mochila, lançou um sorriso sem graça em direção a Victor e desceu, recusando a mão do motorista. Felizmente ela sabia descer sozinha – ao contrário da maioria das dondocas que ela era obrigada a conviver. Puxou o portão preto de metal adornado, que estava entreaberto, como se estivesse a aguardando, e subiu a trilha de pedras que a levava até a imponente mansão dos D’Cruz Loyola. Subiu os degraus de mármore e abriu a porta branca de madeira, como costumava fazer antes. Gritou o nome de sua verdadeira mãe – a mulher que a criou desde a infância – e, automaticamente, a mulher gordinha veio correndo em sua direção, com as lágrimas nos olhos e secando as mãos no avental.

— Bel, minha menininha, finalmente você voltou! — Exclamou, enquanto a envolvia com seu abraço.

— É, Cris, voltei. — “Contra minha vontade, mas voltei”, pensou, apoiando sua cabeça no ombro de Cristina. — Fico feliz que não tenha morrido de saudades. — Brincou, se afastando para olhar o rosto dela.

— Quando soube que tentou... — Ela parou de falar, engolindo em seco. — Pensei que ia. Juro que pensei.

— Mas agora tô aqui bem e viva e, aparentemente, nunca mais vou sair daqui. — Disse, amarga.

— Graças a Deus, Bel. Graças a Deus. — Murmurou, se afastando dela. — Agora, suba, vá descansar. — Ordenou, dando tapinhas no braço da loura.

Anabel assentiu e girou os calcanhares, caminhando em direção a escadaria que se estendia ao seu lado. Subiu degrau por degrau lentamente, passando a mão pelo corrimão. Depois seguiu pelo extenso e claro corredor, parando em frente a porta cor-de-rosa com bolinhas amarelas de seu quarto, analisando a porta há muito não vista. Se lembrava de tê-la pintado um mês depois de Aurélia voltar para casa, junto com ela. Foi uma das primeiras coisas que elas fizeram juntas. A garota passou a mão pela porta, descendo-a até a maçaneta, abrindo, por fim, a porta. Quando viu sua mãe sentada em sua cama, seu pai na sua cadeira giratória e sua mala entre os dois arfou, assustada.

— O que vocês estão fazendo no meu quarto? — Rugiu, entrando neste apressadamente e abrindo ainda mais a porta. Caso alguém tentasse matá-la, poderia, ao menos, fugir.

— Temos que conversar. — Ernesto falou, erguendo a cabeça para encará-la. Anabel fitou seus olhos castanhos claros e os odiou, por que tinham que ser tão parecidos com os seus? Se não fosse por eles, com toda certeza Aurélia poderia, ao menos, tentar amá-la.

— Sobre o que? Convenção de quem é mais mentiroso? Por que a dona Aurélia aqui ganha de todo mundo, acho melhor você até desistir. — Resmungou cruzando os braços na frente do corpo, se protegendo. — Não sei se você sabe, mas o Victor é gay. Nós nunca vamos namorar. Nunca! — Falou, descruzando os braços, e gesticulando com as mãos, enquanto fitava a matriarca. — Estou sendo zoada na escola por ter uma mãe tão mentirosa, sabia? Você só estraga minha vida, Aurélia. — Completou, mais baixo dessa vez, jogando a mochila sobre seu puff.

— A partir de agora você está namorando, sim. — Aurélia disse, abrindo um pequeno sorriso sarcástico.

“Como ela consegue sorrir ao me ver nervosa assim? Só pode ser psicopata mesmo.”, pensou, enquanto digeria a frase. Ao perceber o que a matriarca falara, arregalara os olhos.

— Pera, o que? Não. Tô não. Ah não ser que... — Ela parou, balançando a cabeça. — Vocês não fariam isso, certo? Estamos no século XXI.

— O contrato é de três anos, no mínimo. Vão ter que comparecer a todos os eventos juntos, com direito a fotinhas dando um beijo e com olhares apaixonados para as câmeras. — Aurélia disse, confirmando todas as dúvidas da caçula. — E nem adianta reclamar, estamos fazendo isso por você, para que sua imagem seja limpa.

— A minha imagem? Tem certeza? — Ela respondeu, apontando para si mesma, claramente ofendida. — Quando vocês vão entender que são responsáveis pelo caos que nos cerca? Quando vocês vão ser maduros o suficiente para assumir, finalmente, a culpa invés de jogar tudo nas costas de quem não tem nada haver com isso? — Cuspiu as perguntas rapidamente, secando as lágrimas que escorriam por suas bochechas com rispidez. — Se vocês tivessem pensado em suas ações há alguns anos talvez nossa vida não estaria essa merda e nossa imagem estaria intacta, perfeita. — Completou, baixinho. Se jogando no puff e cobrindo os olhos com as mãos. Estava cansada daquilo tudo; estava cansada de brigar em uma guerra que nunca teria fim. — Aliás, por que a imagem importa tanto assim? — Questionou, minutos depois, porém não obteve respostas. Ao abrir os olhos, percebeu que já tinham ido embora. E, sem querer, começou a chorar.

Seu celular apitou, acordando-a. Lentamente, se sentou no puff, esfregando os olhos. Após alguns minutos, percebeu que ainda estava no puff, com o uniforme da escola, a mochila servindo como travesseiro. Olhou para a janela, absorvendo a negritude que tomava conta do céu. Ainda grogue, procurou seu celular dentro da mochila e o desbloqueou, piscando algumas vezes ao ser atingida pela luz que emanava dela. 20:34. Ela dormira por oito horas seguidas, o que faria no resto da noite? Afastou esse pensamento da cabeça, olhando as notificações que apareciam na tela de inicio.

Rei Victor u-u: Bom tarde, namoradinha .qqq

Viu que palhaçada? Sou claramente viado e querem me forçar mulher. Affzão -.-

O que vamos fazer? Revolução? Tacar fogo? Fugir

Fugir é good

Mas para um lugar menos óbvio do que minha casa, porque né

ME RESPONDEEEEEEEEEEEEEEEEE, COMO VOU NAMORAR ALGUÉM QUE ME DÁ VÁCUO? TAVA ATÉ PENSANDO EM ACEITAR, MAS ASSIM NÃO DÁ.

Anabel soltou uma gargalhada, digitando a resposta com rapidez:

Belzinha sz: ME PERDOA, BOYFRIEND. TAVA DORMINDO

Afinal você não merece uma namoradinha acabada, né?

Sei não o que vamos  fazer

Tô cansada

Parece que quanto mais eu faço, mais coisas eles encontram para me ferrar >-

Rei Victor u-u: FINALMENTE, JÁ TAVA PENSANDO QUE FIQUEI VIÚVO ANTES DA HORA

Desistir? Q? Não

Tá louca? VAMOS CONTRA—ATACAR SIIIIIIM

Belzinha sz: Preguiça Zzzzzz

Rei Victor u-u: Para com isso, não podemos desistir do nada...

Anabel suspirou, levantando do puff e se jogando na cama, apoiando o celular na barriga. Não queria fazer nada. Não podia fazer nada. E, principalmente, não adiantava fazer alguma coisa. Ela estava prestes a terminar sua explicação o porquê da desistência quando uma frase apareceu em sua mente:

“Quando vocês vão entender que são responsáveis pelo caos que nos cerca?”. Era essa a resposta para todos os seus problemas. Deixar o circo pegar fogo, não interferir em nada e, mais cedo ou mais tarde, eles se destruiriam automaticamente.

Apagou a mensagem, escrevendo outra no lugar:

Belzinha sz: Já pensou que se eles estão e nós vivemos nesse caos é porque, em algum momento, eles fizeram uma merda grande o suficiente para ferrar com todo mundo?

Rei Victor u-u: Ss, mas e daí?

Belzinha sz: Mas eles nunca conseguiram se ferrar completamente porque SEMPRE interferimos, aí eles vão e se unem, param de fazer merda para nos ferrar. E se nós seguirmos o teatrinho que eles estão montando, sermos os melhores filhos do mundo e deixar tudo nas mãos deles? A merda vai acontecer e, tanã, nossa vingança vai acontecer c:

Ela fitou a tela do celular, observando que sempre ele sempre digitava, mas parava e, depois de alguns minutos, recomeçava. Por fim, ele enviou:

Rei Victor u-u: Bom plano. Não vamos nos sujar e eles vão se destruir sozinhos.

Rei Victor u-u: Mas, Bel, contra o que estamos lutando mesmo?

Ela fitou a tela por alguns minutos, com as sobrancelhas franzidas. Começou o mesmo processo que seu amigo fizera a minutos atrás, começava a escrever, apagava, recomeçava a mesma coisa, apagava... Por fim, enviou:

Belzinha sz: Queremos acabar com esse teatrinho deles

Não faz sentido, eu sei

Mas quem disse que precisa ser lógico?

Δ•Δ

Maio, 2015.

Ele juraria que ela teria fugido. Ou que Aurélia a ajudaria a fugir. Talvez ele fugiria. Mas, contrariando todas as expectativas, Anabel permaneceu. Não, ela não só permaneceu. Ela se calou; aceitou; parou de chorar; parou de pedir atenção. Aquilo o assustava. A menina sempre o assustou, mas, depois da transformação, o medo que sentia pela filha se multiplicou. Ernesto tinha a impressão de que a qualquer momento ela daria o bote, atacaria a todos pelas costas, apareceria num programa de televisão ou simplesmente jogaria tudo na internet. Mas um ano já havia passado e nada aconteceu. Ou ela era muito sonsa ou havia desistido. E aquela ideia aterrorizava Aurélia.

— Desistência não. Tudo menos isso. — Ela sussurrava todas as noites, enquanto dormia. — Minha filha vai desistir e a culpa é minha. A culpa é nossa, Richard. — Completava, soltando um soluço em seguida.

Enquanto não estava dormindo ou não estava bêbada demais para pronunciar uma sentença inteira, a matriarca questionava a filha de suas ações, se ela estava mesmo feliz, se ela achava certo o rumo das coisas. Talvez sentisse remorso por estar fazendo a mesma coisa que sua mãe fez com ela; talvez só quisesse que a filha gritasse aos sete mares que não desejava aquilo, que todo mundo era falso e hipócrita. Ernesto, no fundo, também desejava aquilo. No fundo, queria que tudo explodisse e só ficasse ele e sua amada Aline. Mas, infelizmente, a proposta que Marcelo fizera era mais interessante. “A dor de uns para a glória de outros”, era o que repetia todas as vezes que via sua filha interpretar o namoro.

Ela interpretava bem demais, inclusive. Bem o suficiente para, talvez, ter feito com que o garoto virasse macho. Ernesto podia jurar que eles começaram a ter um caso real de tão intensa que era a relação dos dois. E aquilo também o amedrontava. Talvez não estivesse preparado para ver sua garotinha ter um relacionamento e amadurecer. “Garotinha? Faz-me rir! Você a ignorou durante anos, esqueceu que ela era sua filha para, agora que estragou a vida dela, a chamar de sua garotinha? Menos, meu bem”, a vozinha da razão berrava irada toda vez que ele ousava ter esse pensamento.

Anabel se mantinha passiva; Aurélia surtava ao ver a situação da filha e Aline se mantinha calada. A’s de mais. Talvez, fosse uma maldição.

Ela estava estranhamente carinhosa. Para alguns, aquele podia ser um bom presságio, mas quando envolvia Aline não era. Depois de tudo, ela usou da grosseria, ironia e rispidez que sempre foi privada. “Isso assusta os homens”, Paulo dizia enquanto a surrava quando demonstrava qualquer ato que fugisse minimamente da linha. Então, depois de tudo, ela se tornou tudo menos agradável. Não que isso fizesse com que o amor que Ernesto sentia por ela diminuísse, na verdade ele se sentia estranhamente orgulhoso. Aline era a demonstração de seu único ato positivo. Mas, de uma hora para a outra, ela se mostrou amorosa.

Levava café na mesa dele todas as manhãs – coisa que havia parado de fazer há éons –, fazia massagem, perguntava se estava bem toda hora que se encontravam, o abraçava, o beijava, marcava jantares românticos todo fim do mês... Até sua voz havia mudado, se tornou mais mansa. Por um momento, Ernesto pensou que ela estava grávida, mas, com o passar dos meses, sua barriga não aumentava. Também cogitou se alguém de seu passado havia voltado; se ela estava recebendo ameaças. Mas, no fim, também não era isso. Ela estava calma demais. Ernesto pensava que ninguém ficaria calmo daquele jeito quando o passado voltasse a tona. Mas então, tragicamente, ele descobriu.

Falidos. Quando ele pronunciou a palavra, sua boca não conseguiu acompanhar a palavra. Soava estranho. Mas, depois de muito treino, ela saiu de uma maneira audível. Ela sabia o tempo todo, todos daquela empresa sabiam.

— Por que não me contaram? — Ele questionou, na penúltima reunião da empresa. — Não. A primeira pergunta é: a quanto tempo vocês esconderam isso de mim?

— O senhor estava tão preocupado com a família, que achamos melhor dar um tempo. Talvez as coisas voltassem ao normal. — Joaquim, um dos seus braços direitos começou a falar.

— Não me ouviu? Quero saber por quanto tempo? — Repetiu, calmamente.

— Desde o fim do semestre passado. — Aline respondeu. Ela era a única mulher na sala. Era a única que ousava manter contato visual com Ernesto. A única que não abaixou a cabeça. Cadê todo aquele doce quando era a hora certa? Ela não tinha medo da morte?

Ele respirou fundo, assentindo lentamente. Os números estavam negativos. Ele deixou o legado da família acabar. Por algum motivo, se sentia satisfeito.

— E por que não me contou? — Aquela pergunta era diretamente para ela. Diretamente para a pessoa que ele mais tinha relação naquela sala; e todos sabiam.

— Porque não deixaram, eu até quis, mas... — Ela olhou para os lados, cerrando os olhos.

— Mas...? — Ele ergueu a sobrancelha, aguardando o complemento, por mais que já soubesse como a história iria acabar.

— Mas nós não deixamos. Pedimos para ela te amolecer, talvez, assim, você não focaria tanto na empresa, aí as coisas iam voltar ao normal. — Afonso, outro braço direito, completou.

Ernesto se recostou na poltrona, os dedos tamborilando no tampo da mesa. Um sorriso inapropriado desenhava seus lábios.

— Como isso foi acontecer?

— Baixo de funcionários, alguns sócios caíram fora por não terem mais dinheiro, o capital estava mais saindo do que entrando, o mercado consumidor não se interessa mais por nossos produtos... — Enrico, o último braço direito, nomeou. A cada item, ficava mais tenso.

— O dinheiro que o Marcelo tem me dado pode nos ajudar?

— Mas é ilegal, se pegarem... — Aline começou, cerrando o punho. Depois de tudo, ela também havia se tornado uma defensora do que era certo.

— Não vão me pegar. Estamos no Brasil, esqueceu?

— De qualquer forma, não dá. O buraco é muito, muito maior. — Enrico respondeu, enquanto fitava a tela do smartphone.

Ernesto assentiu vagarosamente novamente. Os dedos tamborilavam. Um sorriso se formava. A resposta para aquele problema era tão óbvia, tão fácil... Seu pai se reviraria no caixão quando ele a pronunciasse. Respirou fundo, pegando seu celular. O desbloqueou, procurando o contato do deputado. Voltou novamente seus olhos para os quatro rostos nada ansiosos na sua frente. Naquele instante, tudo era transparente como água.

— Encerrem os serviços, fechem a empresa. Distribuam o que sobrou para quem sobrou ou peguem para vocês, não me importa. A única coisa que ordeno é: saiam da minha sala, agora.

Rapidamente, cada um dos homens saiu da sala, só permanecendo ele e Aline na sala. Com um simples movimento, ligou para o deputado. Ao ouvir sua voz, fez logo a pergunta sem maiores rodeios.

— Tem vaga no partido? Quero entrar.

— Falidos?! — Ela rugiu, apertando o copo o suficiente para os nós de seus dedos ficarem brancos. Deu um gole na bebida alcoólica, sentindo-a deslizar pela garganta. Costumava arder; agora só gelava. — Como isso pôde acontecer?

— Crise, demissão de funcionários, ninguém mais compra telefones fixos, reforma na casa, uma mulher gananciosa me sugando... — Ele respondeu, dando de ombros.

Ernesto costumava irritá-la, mas, naquele momento, enquanto o mundo caía na cabeça dos dois e ele demonstrava uma calmaria inapropriada, a irritabilidade aumentava.

— Eu não te suguei, era o nosso acordo. — Ela retrucou, ofendida. Balançando a perna.

— E quem disse que estava falando de você? Pode ser da Aline, ela vive me pedindo dinheiro para comprar bolsas, sapatos e roupas... Tãão fútil, as vezes me questiono por que ainda estou com ela? — Ele soltou uma risada travessa. — E acordo? Que acordo? Não lembro de nenhum acordo que envolvesse dinheiro entre nós dois! Ah, quase esqueci... Dinheiro em troca da sua volta, né? Sabia que mães ditas normais não pedem dinheiro para amar os filhos? Quem dirá cuidar!

Aurélia bufou, levantando-se abruptamente do sofá. Do jeito que ele falava até parecia que ela era a vilã da história. “Fiz tudo isso porque alguém me espancou no passado por causa de um amor! Eu não te espanco agora por ficar desfilando com a Aline por aí.”, pensou, lançando um olhar ameaçador para o moreno. Ela não era a vilã da história. Definitivamente, ela não era. Mas, mesmo assim, um pensamento atravessou sua certeza: Será mesmo que ela não era a vilâ?

— E então, para ganhar dinheiro novamente, teve a fantástica ideia de se candidatar a vereador? E se você não ganhar, o que vai fazer? E outra, acha mesmo que a peble vai votar em um ex-milionário? Não sei se sabe, mas a política brasileira está destroçada. Eles não vão querer votar em um mal administrador. — Continuou, ignorando a provocação.

— E é por isso que vou focar tanto em conquistar o povão e mostrar que sou diferente durante todo esse ano. Vou investir em tudo o que temos para ganhar. — Respondeu, indiferente, enquanto olhava o celular.

— Mas não temos nada! Você não ouviu o que disse? Estamos falidos! Fa-li-dos. — Murmurou pausadamente, o encarando, incrédula.

— Nada? Não se sabe, mas roupas podem ser vendidas, objetos, casas, carros. Gastos podem ser cortados.

— Que? Não. Você não vai tirar a minha casa de mim. Você não pode.

— Também não quero vender meu carro, nem despedir meu motorista, muito menos vender meus ternos, mas será necessário. Se vendermos, pelo menos podemos fingir que ainda temos alguma coisa, se não vendermos ficará claro.

— Ah, claro. E quando questionarem do por que estamos vendendo tudo? Mudando de casa, de casa, de roupas...

— A crise tá aí e queremos nos prevenir, afinal não somos intocáveis. Simples. E, quando perguntarem por que fechamos a empresa, respondemos que quero focar na política a partir de agora.

— Eu não acreditaria se fosse jornalista.

— Eles não precisam acreditar; precisam divulgar.

— E o dinheiro que Marcelo te dá não é suficiente para sustentar tudo isso sem precisar de escolhas radicais?

Ernesto estalou a língua, inclinando levemente a cabeça.

— Ah, esqueci de te contar... Com todos esses escândalos, ele resolveu dar um tempo. Não só por isso, ele disse que como não ganharia nada com a falência, era melhor reduzir um pouco.

Aurélia soltou uma risada quase diabólica, os dedos apertando ainda mais o copo. Caiu preguiçosamente no sofá, dando mais um gole na bebida.

— Estamos dando nossa filha para não ganharmos nada em troca? Então por que não acabamos logo com isso? Qual é o seu problema, Ernesto? — Disparou as perguntas, gritando.

— Se não mantermos o acordo, a situação vai piorar, ele vai nos denunciar. Tudo o que ele mais quer é que o filho vire hétero e pensa que tá dando certo.

— Nos denunciar? Não, ele vai te denunciar. — Retrucou, apontando para o marido.

— Você sabia de tudo, querida. É cúmplice. — Cantarolou, erguendo-se do sofá com graciosidade.

— Não tem provas, logo não sou culpada.

— Não seria muito estranho o marido receber muito dinheiro, dá muitos presentes para a esposa e ela não desconfiar? — Respondeu com um sorriso cínico no rosto, subindo a escada. — Vamos morar num apartamento, a Aline já encontrou. — Completou, colocando o celular no bolso.

Aurélia deu o último gole na bebida, o olhar vagando pela sala, buscando alguma coisa para se segurar. Em sua mente, inúmeras questões se faziam presente; inúmeras cenas passavam; inúmeras possibilidades de como sua vida poderia estar; de como ela seria. Ela tinha trinta e cinco anos, um casamento arranjado e falido, um amor perdido e morto, a ganância e o egoísmo já tinham roído a alma que um dia ela ousou ter, estragara a vida de sua filha e era uma alcoólatra. Trinta e cinco anos e podia estar casada com Richard, uma faculdade nas costas, inúmeras viagens nas lembranças e um filho saudável e feliz. Trinta e cinco anos perdidos graças a ganância de sua mãe. Agora, sua filha estava tomando o mesmo destino que ela. Trinta e cinco anos e não fizera nada de positivo, aos trinta e seis uma revolução aconteceria.

A porta abriu lentamente, revelando Anabel com seu típico uniforme escolar, a mochila e mais uma bolsa pendurada no ombro. Ela passou pela mãe, cumprimentando-a apenas com um aceno na cabeça. Seu olhar, ao contrário do que Aurélia pensou que fosse ficar, estava dócil e inocente, nada da frieza que ela jurava que encontraria. Para o seu desespero, a filha havia desistido de lutar contra a família, havia aceitado o destino trágico que viria.

— Por que ainda não fugiu? — A mais velha perguntou, acompanhando a filha com os olhos, enquanto as mãos trabalhavam em encher o copo mais uma vez.

— Vai adiantar o que fugir? — Retrucou, dando de ombros, focando nos degraus que se estendiam na sua frente. Um sorriso tímido – quase dócil – se formava. — Já desisti, minha vida está nas mãos de vocês. — E então, sumiu pelo corredor extenso.

Aurélia deu mais um gole, refletindo nas palavras. Para ela, desistência sempre fora sinônimo de fraqueza, agora, ali, era sinônimo de coragem. Suspirou, ouvindo a porta fechar lentamente no andar de cima. Só faltavam três meses para os trinta e seis.

Δ•Δ

Agosto, 2015.

Nesta manhã, a socialite Aurélia D’Cruz foi encontrada enforcada por uma de suas funcionárias.

Mulher de Ernesto Loyola, ela possuía trinta e seis anos – completos há dois dias – e era mãe de Anabel D’Cruz Loyola e Marcos D’Cruz Loyola (morto em 2012). Nos últimos nove anos, ela se envolveu em inúmeras polêmicas quanto ao seu sumiço, a morte de seu filho e boatos de que ela era alcoólatra.”

Δ•Δ

Julho, 2018.

Que a história era cíclica, Anabel já sabia, porém ela nunca foi vítima dessa redundância. Na verdade, sempre acreditou que apenas políticos eram vítimas e apenas grandes acontecimentos viriam a tona, não uma mera mortal com uma vida normal o suficiente para não influenciar a vida de todo o resto. Mas, aparentemente, estava enganada.

Ela fitava a menina mórbida na sua frente, com suas feições tristes mesmo com a maquiagem perfeitamente feita; com seu vestido cintilante, mesmo que por debaixo de tudo aquilo só houvesse trapos e restos. No fim, esperar que eles se destruíssem não deu certo, Aurélia se matou, deu esperanças para a menina com a carta que deixara Sua vida não será como a minha, farei de tudo para que isso não ocorra. Mesmo após a morte”, porém com as investigações sobre supostas propinas, surgiu a necessidade de queimar evidências que incriminassem Marcelo e Ernesto; a solução era óbvia: casamento!, algo que gastava muito, mas que não chamava atenção. No fim, ela e Vitor eram só marionetes; no fundo, nada iria mudar. Nunca. Quando se nasce de plástico, será sempre se plástico; quem nasce boneca, não se transformará em humana. Infelizmente a Fada Azul não existia para reverter a situação, então a única coisa a ser feita era aceitar.

Anabel fechou os olhos, passando a mão pela saia do vestido branco, sentindo a textura dele, as pedras que o decoravam. Seus dedos se agarraram no vestido, prontos para rasgá-lo, prontos para obedecer o coração da menina, porém a Razão falou mais alto, por mais receosa que estivesse; se o vestido fosse rasgado, a tortura só demoraria mais para acabar. “Pense pelo lado positivo, é com o Vitor que você vai se unir, com seu melhor amigo, não com um qualquer”, a Razão sussurrava no pé do seu ouvido.

A porta do seu quarto se abriu, tirando a loira de seus devaneios. Ela abriu os olhos rapidamente, subitamente assustada com o que viria a seguir. Ernesto entrou no quarto, em sua mão, ao invés do buquê de flores amarelas que a menina havia escolhido, uma folha dobrada.

— Preparada? — Perguntou, sentando-se na ponta da cama de solteiro da menina.

— Não. — Respondeu, fitando-o através do espelho. Não ousaria encará-lo agora.

— Eu também não estava no meu. — Ele murmurou, cabisbaixo. Por um curto momento, também fitou a menina, porém desistiu, suas bochechas começavam a corar.

— Aline está lá? — Questionou, erguendo uma sobrancelha diante da suposta timidez do pai, ele nunca ficava assim.

— Sim, sei que não gosta dela, mas…

— Você vai se casar com ela, eu sei. — Ela suspirou, umedecendo os lábios. — Ainda bem que vou sair de casa, né? Creio que não aguentaria. — Ela soltou uma risada vazia, balançando a cabeça negativamente.

— Sim, ainda bem. — Concordou, mexendo no papel que trazia desconfortavelmente. — Meu relacionamento com sua mãe nunca foi dos melhores, não quero que culpe a Aline por causa de tudo o que aconteceu.

— Você traiu minha mãe com ela... — Anabel murmurou, inclinando a cabeça. — e minha mãe te traiu com o Richard. No fim, todo mundo é farinha do mesmo saco; ninguém presta mesmo. — Concluiu, dando de ombros. Naquela história, não havia vilões nem mocinhos; não mais.

Ernesto ergueu as sobrancelhas, piscando rapidamente, talvez para ter certeza se a menina havia dito aquilo mesmo. Felizmente, mesmo com dezessete anos de convivência, ela não havia se exposto tanto para ele.

— No dia do seu casamento foi assim? — Ela perguntou, virando-se para ficar de frente com ele.

— O nervosismo?

— Não, a falsidade.

— Sim. Infelizmente, foi exatamente assim.

Anabel assentiu, umedecendo os lábios mais uma vez. Ela não se lembrava de ter tido uma conversa tão franca com ele antes; dezessete anos de falsidade até dentro de casa. Ela não estava surpresa.

— O que é isso? — Apontou com a cabeça para o papel que ele segurava tão firmemente.

— A razão para o que vou fazer a seguir.

Anabel franziu o cenho, inclinando novamente a cabeça, claramente confusa. Ernesto soltou uma risadinha, retirando um envelope de dentro do paletó, entregando a ela.

— Aí tem dinheiro o suficiente para que você e o Vitor sobrevivam por três meses como dois universitários, o dinheiro dos vestibulares que vocês vão prestar também está aí dentro. Ah, e as passagens, claro, seu voo saí daqui a duas horas. — Ele alcançou o bolso da calça, retirando um chaveiro com duas chaves. — Chave do carro de vocês, ele é bem velho, foi o meu primeiro carro; não me pergunte porque guardo o meu primeiro carro, também não entendi e essa outra aqui é a chave da casa, ou cubículo, de vocês, como bem preferirem. Sim, ela já está mobiliada. Hã, creio que não esqueci de na… Pera, o carro tá no aeroporto de BH. — Ele respirou fundo, dando um sorriso aliviado.

Anabel olhou para o pai, depois para o envelope, para as chaves e para o pai de novo; na testa, havia a frase “O que você tá fazendo?” escrita com letras garrafais. Ela tinha inúmeras perguntas para fazer naquele momento, sentia vontade de chorar de frustração, raiva, medo e felicidade, porém a única coisa que conseguiu falar foi:

— Que?

— Não ficou claro? Você vai fugir do casamento! Seu voo vai ser daqui duas horas e você tem que se trocar, com toda certeza do mundo que o Vitor já está pronto para sair. — Ele levantou-se rapidamente, caminhando em direção a porta. — Se arruma que a Aline vai passar aqui daqui a pouco para te pegar, a Cristina já arrumou suas malas e, por obséquio, não esquece de ler a justificativa. É muito importante. — E então, sumiu no corredor, despedindo-se da filha com uma piscadela.

۰

Ernesto,

Quero que saibas que não te perdoei, porém saibas que não te odeio, apenas não gosto de você (o que é um grande avanço considerando nossa história). Porém, não é porque não gosto de você que devo odiar nossos filhos, certo? Uma pena que só pensei nisso agora, quinze anos depois, logo, para arrumar isso, preciso de sua ajuda (será uma forma de me redimir para a Anabel – já que, graças a nós, Marcos morreu – e você se redimir para mim).

O pedido é rápido e preciso: liberte Anabel; não permita que o mesmo mal que nos cercou, cerque-a também. Como fará isso? Não sei, só lhe dou algumas dicas: 1) Pare de pensar no lucro, ele não te levará a lugar algum e deixará sua alma vazia; 2) Acabe com esse relacionamento forjado dos dois, tu bem sabes como isso faz mal; 3) Nada de casamento, por favor; 4) Estimule uma fuga, porém arquitete para que não pareça uma fuga.

Boa sorte e paz.

Aurélia D’Cruz.”

Anabel fitou o papel, agora molhado por conta de suas lágrimas, de uma forma que nunca olhou para nenhum ser vivo. Em seu olhar, havia compaixão e amor; em seu coração, havia perdão; sua alma estava leve como nunca esteve. Ela soltou um suspiro-soluço, despertando a atenção dos demais tripulantes do voo e uma risada contida de Vitor. Pela primeira vez, em dezessete-quase-dezoito anos, a menina se via em paz e aquilo era lindo.

 

 

 

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Obrigada a quem comentou; quem recomendou e quem simplesmente leu. Obrigada, de coração ♥



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Casa de Bonecas" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.