Flor da meia-noite escrita por Tha


Capítulo 27
Primeiro você sonha, depois morre


Notas iniciais do capítulo

OPA, TUDO BOM?
O capítulo atrasou um pouco porque meu celular quebrou e eu geralmente escrevo por ele, então tive que me virar nos 30, mas saiu. Espero que gostem, e não me matem porque eu amo o David.



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Quando dois planetas colidem um com o outro, eu só consigo pensar em uma palavra que possa descrever o fenômeno: Desastre.

Foi exatamente isso que aconteceu quando Plutão colidiu com o Sol, o que me parece meio impossível, já que eles são tão distantes um do outro. Mas aconteceu. 

A vida é feita de uma série de acontecimentos insignificantes. Então um dia, aquele único momento aparece pra definir cada minuto do futuro. Tais momentos são testes de coragem e força.

Mas sabíamos que eu não era forte, e muito menos corajosa. Era a Adina, sempre foi a Adina.

—Venho pensado esses dias se ainda faço alguma diferença pra você - Ele diz sentado na poltrona do meu quarto. O queixo quadrado estava apoiado nas mãos cruzadas, que por sua vez estavam apoiadas nos joelhos. Os olhos negros me analisavam de longe e fiquei aflita - Que se arrependeu do que fez. Mas simplesmente fazer as malas e ir pra Riverland? Isso é loucura, Allyson. E você nem ao menos me dá um motivo.

—Eu preciso fazer isso, você sempre me incentivou a seguir meu destino.

—Eu?! - Jason se altera e eu me assusto - Você ao menos falou com seus pais? Peter? Com a Hazel?

—Não, apenas você.

—Isso é loucura, e você sabe - Ele se levanta.

—Jason...

—Não vou participar disso.

—--//---

—E ele simplesmente me deixou falando sozinha - Desabafei com a Clove. Estávamos na casa dela, comendo sorvete caseiro que a Pam sempre faz - É tudo tão complicado, ele nem tenta ver o meu lado, sabe?

—O Jason não entende como é isso, Ally, não sentiu na pele - Minha amiga diz e suspiro ao lembrar que ela também foi vítima.

Começo a pensar no Adam, e em como ele anda sumido, com certeza planejando algo novo e grande. É ruim ter que fingir ser uma pessoa toda vez que ele fala comigo, e pior ainda é ter que arrastar o Zack pra isso também. Penso na Hazel, em como ela continuou me apoiando depois de tudo.

—Adam fazia você passar por intensificações também? 

—Não, você era a única forte o bastante pra resistir. Mas é como se ele tivesse instalado chips na minha cabeça. Deus, eu me sinto um ciclope.

—Ciborgue - A corrijo sorrindo.

—Tenho certeza que se pronuncia ciclope.

—Ok - Rio e mexo desconfortável no cabelo, eu havia odiado aquele corte. Não odiado, mas me lembrava uma pessoa que eu nunca mais queria voltar a ser.

—Preciso fazer uma pergunta e você tem que ser totalmente honesta comigo - A encaro sorrindo e ela continua - Um lado do meu rosto é mais gordo que o outro? - Clove mexe o rosto pra ambos os lados algumas vezes enquanto se observa por um espelho que tem na mão.

—Eu não acredito que você tá me perguntando isso - Rio e uma mensagem chega no meu celular:

"Ei sumida, tá rolando uma festa na cabana dos Cavs, vem!" 

—É a Kate - Explico ao encarar o olhar questionável da Clove - Como alguém consegue pensar em festa depois do que aconteceu na formatura?

—Já faz quase duas semanas.

—Mesmo assim.

—Você sabe que isso só pode significar uma coisa.

—Mas... - Começo a protestar, e aí finalmente raciocino e me levanto em um salto - Nephilins amontoados em um lugar só.

—É melhor corrermos.

—Me empresta uma roupa.

Clove corre pra colocar as vasilhas sujas de sorvete na cozinha enquanto abro seu guarda-roupa, deixando a mesma mensagem de voz pra Jason, Hazel, Kyla e David.

David me responde na mesma hora dizendo que me encontrava lá, Hazel disse que não podia ir porque estava com o Zack, Kyla... bom, Kyla sendo Kyla só respondeu um "Ok"

Entrei no carro, conectei o celular ao serviço de bluetooth e na mesma hora ele apitou por causa de uma nova mensagem. Era do Jason, uma mensagem de voz. Respirei fundo e comecei a ouvir enquanto esperava a Clove.

—Bom, eu vou falar um pouco, e você vai escutar. Você me disse que não imaginava sua vida sem mim, e eu disse que queria você na minha, e iríamos dar um jeito. Passamos um mundo afastados, anos e anos como você bem sabe. Mas dezoito anos depois, quando você olhou pra mim naquele corredor, eu finalmente senti que era a garota certa. Senti como... algo rolando, descendo... bem antes de parar, quando seu estômago acaba, e seus joelhos estão fracos, mas aí você pode respirar direito. Foi quando eu soube, queria você na minha vida, Allyson, pelo resto dela. Não queria te deixar ir, então eu vou por você. Estar com você nunca me fez me sentir errado, muito pelo contrário, foi a única coisa que fiz certo. Você é a única coisa certa pra mim. Era só você dizer o que queria que eu fizesse, era só você dizer e pronto. Vou fazer tudo por você. Preciso te dizer uma coisa, e provavelmente vai ser a coisa mais egoísta que já disse na vida - Ele dá uma pausa na mensagem e ouço um barulho de chuva, aqui não está chovendo, ele já deve estar longe. Não Jason, não faça isso— Não tive coragem de dizer na sua cara porque no fundo eu sou um covarde, mas eu te amo, Allyson, não a Adina, não a Amélia, você. E é exatamente porque eu te amo que não posso ser egoísta contigo. Você não merece nada disso, é tudo culpa minha, tudo porque há mil anos atrás eu me apaixonei pela garota pela qual eu devia apenas proteger. Eu não te mereço. Você merece ter uma vida normal, e eu te darei isso, como meu último ato de... - Jason pensa no que vai dizer por um bom tempo, então ouço um suspiro e uma última frase antes de a mensagem acabar— Eu te amo. Estou indo pra Riverland consertar tudo. 

Mas... Como? Porque? Quando? Ele não podia ir pra Riverland, não tem como se proteger, é um humano agora. Quer dizer, eu nem sei onde fica Riverland agora, eu pensaria em tudo antes de ir, e ele simplesmente foi. Por mim.

—Ah merda, esqueci meu celular - Só percebi que a Clove tinha entrado no carro quando ela abriu a porta e saiu.

Eu estava em estado de choque, não podia acreditar no que tinha acabado de acontecer.

Liguei pra ele de volta e deu caixa postal.

—Não foi culpa sua, ouviu? Em Riverand, com a Adina, não foi culpa sua, sei que deveria ter dito isso mais cedo, mas não consegui. Foi a Kaleesa, ela jogou em mim a maldição. Jason, você não precisa ir.

—Ok, tô pronta - Desligo o celular rapidamente e seco as lágrimas.

—Você não consegue viver sem isso?

—Não posso sair sem celular - Ela diz colocando o cinto - É como sair sem cérebro, ou sapatos.

—Você não existe - Forço uma risada e piso fundo.

Tranquei o carro , arrumei o cabelo e passei um gloss nos lábios. A música já estava alta, ressalvo alguns gritos de gente que estava bêbada demais, outras entravam e saiam dos arbustos que davam pra cabana.

De alguma forma me lembrei da minha festa de aniversário, a minha última festa de aniversário, já que duvido que eu tenha outras se o meu plano der certo. Não havia David, não havia Jason, ou nephlins, ou pessoas querendo me matar. Quando Jake era apenas o amor da minha vida e Hazel era apenas a minha melhor amiga.

—Você tem certeza que é por aqui?

—Clove, eu frequentei o acampamento de gordinhos por cinco verões. Eu sei me virar na mata.

A cabana estava lotada de gente. Alguns da escola, outros não. Olhei as almas que estavam mais próximas de mim: Humanos. Os meninos na mesa de sinuca: Humanos. Havia uma energia forte vindo da área da piscina e presumi que tinha ao menos três nephilins por lá. Uma garota bebia desesperadamente algo de seu copo: Nephlim. Mais alguns outros espalhados por aí e um no andar de cima. Agora eu tinha que manda-los embora.

—Olha ali, é o Hermie! - Clove grita e eu me viro - Você chamou ele?

—Sim, ele ajuda - Olhei pro David, e ele acenou sorrindo - E esquece essa história de Hermie.

Logo uma lembrança me vem:

"Saí de perto do meu armário com os braços cruzados depois de revirar os olhos por algo que a Clove tinha dito. Até David esbarrar em mim com uma lata de refrigerante na mão, derramando metade do líquido nas minhas botas.

—Ai meu Deus, me desculpe - Ele diz se abaixando e começando a limpa-las com a blusa de frio - Eu realmente sinto muito.

—Não me toca - Tiro meu pé do lugar e David se levanta.

—Foi só um acidente, Allyson. 

—Foi isso que os médicos disseram quando você nasceu?

—O que?

—Eu ouvi histórias sobre você, Hermie.

—Meu nome não é Hermie.

—Agora é, da licença, Hermie - Esbarro nele quando passo e as meninas começam a rir - Dá pra acreditar? Um drogado falando comigo.

—Adorei o apelido - Clove diz mexendo no celular e eu rio indo pra minha sala."

—Oi - Ele diz se aproximando e eu o abraço forte.

—Me perdoa?

—Pelo que? - David está sorrindo, mas mais uma vez, sinto vontade de chorar.

—Pelo ensino médio inteiro.

—Ei, tudo bem. Bom, como aqui parece estar tudo em ordem, eu vou pegar uma bebida pra gente. Clove?

—Não precisa, vou ver se consigo chegar perto do Liam - Clove diz sorrindo, mas no fundo sei que está abalada por Adam ter usado ela. Ela realmente gostava dele. Ela o amava.

Alguns segundos depois a porta explode para dentro e um holofote claro como o sol deixa tudo branco e imóvel, transforma tudo em poeira e estátuas. 

Uma vez vi uma reportagem sobre um urso-pardo que havia sido ferido acidentalmente pelo treinador no circo de Portland durante um treino rotineiro. Eu era muito nova, mas jamais me esquecerei da aparência do urso depois, um enorme borrão escuro destruindo seu picadeiro, ainda usando um ridículo chapéu vermelho que balançava descontroladamente em sua cabeça e atacando tudo em que conseguisse enfiar os dentes: faixas de papel, cadeiras dobráveis, balões. O treinador também: o urso acabou com ele, transformou seu rosto em carne moída.

A pior parte, a que nunca esqueci, foi seu rugido apavorado: um berro horrível, contínuo e furioso que, de alguma forma, parecia humano.

É o que lembro quando os caídos começam a invadir a casa, entrando pela porta destruída e atravessando as janelas. É nisso que penso quando a música para subitamente e em seu lugar o ar se enche de gritos e vidros se estilhaçando, enquanto mãos quentes me empurram pela frente e pelos lados, e sinto uma cotovelada sob o queixo e outra nas costelas. Lembro-me do urso. 

De algum jeito, consegui avançar pela multidão em pânico, que se desloca confusa em direção aos fundos da casa. Atrás de mim, ouço cães (cães?) mordendo o ar e caídos brandindo pesadas armas, algum tipo de cassetete. As pessoas estão gritando, tanta gente que parece ser uma única voz. Uma menina cai atrás de mim, tropeçando para a frente e esticando o braço em minha direção enquanto um dos reguladores atinge a cabeça dela por trás com o cassetete, produzindo um barulho horrível. Sinto seus dedos se fecharem momentaneamente no tecido de minha camiseta, mas escapo e continuo correndo, empurrando e me espremendo para a frente. Não tenho tempo de sentir pena, nem de ficar assustada. Não tenho tempo de fazer mais nada além de me mover, empurrar, ir, não consigo pensar em nada além de escapar, escapar, escapar. Mas eu não deveria estar escapando, devia estar lutando.

O mais estranho é que, por um minuto, no meio de todo aquele barulho e confusão, vejo tudo com clareza, em câmera lenta, como se eu estivesse assistindo a um filme de longe: vejo um cachorro saltar para cima de um cara à minha esquerda; vejo os joelhos do garoto cederem quando ele cai para a frente com um leve barulho, como o de uma respiração ou um suspiro, e sangue jorrar em arco de seu pescoço, onde os dentes do cachorro se enterraram. Um dos caídos pega ele e leva pra fora da cabana. Estão matando os nephilins?

Uma menina de cabelos louros brilhantes é derrubada pelos cassetetes dos reguladores, e quando vejo seus cabelos no ar, meu coração para completamente por um segundo e penso que morri, penso que tudo acabou. Então ela vira a cabeça para mim, gritando.

Um filme, apenas um filme. Não está acontecendo, jamais poderia acontecer de fato. Um menino e uma menina, lutando para chegar a um dos quartos laterais, talvez pensando que pode haver uma saída por ali. A porta é estreita demais para os dois entrarem ao mesmo tempo. Ele usa uma camisa azul, que diz CONSERVATÓRIO NAVAL DE PORTLAND, e os cabelos dela são longos e ruivos, brilhantes como uma chama. Há apenas cinco minutos estavam conversando e rindo juntos, tão próximos que se um dos dois tropeçasse sem querer eles poderiam ter se beijado. Agora lutam, mas ela é pequena demais. Ela morde o braço dele como um cachorro, como um animal selvagem; ele ruge e se enfurece, pega-a pelos ombros e a empurra contra a parede, para fora do caminho. Ela tropeça e cai, escorregando e tentando se levantar; um dos caídos, um sujeito enorme, com o rosto mais vermelho que já vi, estende o braço na direção dela, pega seu rabo de cavalo e puxa a garota até colocá-la de pé, ele a leva também, mas ela não é nephilim. O que diabos está acontecendo?

Conservatório Naval também não escapa. Dois caídos o seguem, e, enquanto passo correndo, ouço os golpes dos cassetetes e o som abafado de gritos. Animais, penso. Somos animais. Nada mudou, continua sendo um safari sem fim.

A sala toda é pura escuridão. Vejo almas negras e perdidas em todo canto e mal consigo respirar.

De alguma forma, consegui não ser pega, e continuo correndo pelos corredores estreitos e barulhentos, passando por uma confusão de cômodos, uma confusão de pessoas e de reguladores, mais luzes, mais janelas estilhaçadas, o ruído de motores. O local está cercado. Então a porta dos fundos surge aberta diante de mim, e, além dela, as árvores escuras, o bosque frio e sussurrante atrás da casa. Se eu conseguir sair... Se eu conseguir me esconder das luzes tempo suficiente...

Allyson Hale!

Meu nome é chamado e eu paraliso. Simplesmente paraliso. Eu deveria estar protegendo as pessoas. É a mim que eles querem. Sei disso. 

Eu me viro e então o vejo: o caído com o rosto vermelho, sorrindo, os olhos brilhando, completamente negros — ah, Deus, ele está sorrindo, ele realmente gosta disto —, com o cassetete erguido, pronto para me atacar. Fecho os olhos, penso em uma dor tão grande quanto o oceano, penso em um mar vermelho-sangue. Penso em minha mãe. 

Então sou jogada para o lado e surge um braço em minha cintura, e uma voz em meu ouvido, uma voz tão familiar que naquele momento é como se eu estivesse esperando por ela o tempo todo, como se estivesse ouvindo-a desde sempre em meus sonhos, sussurrando:

—Por aqui.

David mantém um braço em volta da minha cintura, quase me carregando. Estamos em um corredor diferente agora, menor e totalmente vazio.

Devemos estar em uma parte da casa que não estava sendo usada para a festa. O quarto está completamente escuro, mas David não desacelera, ele simplesmente continua avançando pela escuridão. Deixo que a pressão das pontas de seus dedos me guiem, esquerda, direita, esquerda, direita.

—Para cima — Sussurra David, tão baixo e tão perto que é como se eu tivesse apenas imaginado, e, assim, ele me levanta e percebo que estou saindo por uma janela; sinto a madeira áspera do parapeito arranhar minhas costas e um prego rasgar minha perna direita. Aterrisso com a perna boa na grama macia e úmida do lado de fora.

Um segundo depois, David faz o mesmo silenciosamente, materializando-se a meu lado no escuro. Apesar de o ar estar quente, uma brisa começa a soprar, e ao senti-la em minha pele tenho vontade de chorar de gratidão e alívio. Mas não estamos seguros ainda, longe disso. A escuridão é mutável, incerta e cheia de fragmentos de luz: lanternas cortam o bosque à direita e à esquerda, e, naquele brilho, vejo figuras fugindo, iluminadas como fantasmas, paralisadas por um instante na claridade.

Os gritos continuam, alguns a poucos metros de distância, outros tão distantes e desamparados que seria possível confundi-los com outra coisa, com corujas, talvez, piando pacificamente em suas árvores.

Então David pega minha mão e estamos correndo de novo. Cada passo com meu pé direito é como uma chama, uma lâmina. Mordo o interior das bochechas para não gritar e sinto o gosto de sangue. Caos. Cenas saídas do inferno, luzes vindas da estrada, sombras caindo, ossos quebrando, vozes se estilhaçando e desaparecendo no silêncio.

—Aqui dentro.

Faço o que ele diz sem hesitar. Um pequeno abrigo de madeira apareceu milagrosamente na escuridão. Está caindo aos pedaços e tão coberto por musgo e plantas que, mesmo a distância de poucos metros, aparentava ser um emaranhado de arbustos e árvores. Preciso me inclinar para entrar, e ao fazê-lo o cheiro de urina de animal e de cachorro molhado é tão forte que quase engasgo. David entra depois de mim e fecha a porta. Ouço um ruído e vejo-o se ajoelhando, colocando um cobertor no espaço entre a porta e o chão. O cobertor deve ser a fonte do cheiro. É absolutamente fedido.

—Meu Deus — Sussurro, é a primeira vez que falo com ele, cobrindo a boca e o nariz com as mãos.

—Assim os caídos não sentirão nosso cheiro — Sussurra ele, confiante. Nunca conheci alguém tão calmo em minha vida.

Então me sinto envergonhada. Ele acabou de salvar minha vida.

Ele salvou minha vida.

Nada mais faz sentido. Minha cabeça está girando, e eu me sinto tonta. Tropeço, esbarrando na parede atrás de mim, e David me alcança para me segurar.

—Sente-se — Diz ele com a mesma voz autoritária que tem usado o tempo todo. É reconfortante ouvir suas ordens baixas e decididas, e relaxar. Abaixo-me até o chão. O piso é úmido e duro. A lua deve ter surgido entre as nuvens; buracos nas paredes e no telhado permitem a entrada de pequenos pontos de luz prateada.

Consigo identificar algumas prateleiras atrás da cabeça de David e um conjunto de latas, tinta, talvez, empilhadas em um canto. Agora que David e eu estamos sentados, mal sobra espaço para nos mexermos, a estrutura inteira tem um espaço bem reduzido.

—Vou dar uma olhada em sua perna agora, tudo bem? — Ele continua sussurrando. Concordo com a cabeça. Mesmo quando estou sentada, a tonteira não passa.

Ele se senta apoiado nos calcanhares e coloca minha perna em seu colo. É só quando ele começa a levantar a perna da meia calça já meio rasgada que sinto como o tecido está molhado. Devo estar sangrando. Mordo o lábio e encosto a cabeça com força na parede, esperando que o toque dele seja doloroso, mas a sensação de suas mãos em minha pele, frias e fortes, de alguma forma suaviza tudo, passando pela dor como um eclipse encobrindo a lua. Quando a meia calça está enrolada até o joelho, ele me inclina levemente para ver minha panturrilha. Apoio um cotovelo no chão, sentindo o cômodo balançar. Devo estar sangrando muito. Ele exala rispidamente, um som rápido entre os dentes.

—Está ruim? — pergunto, com medo demais para olhar.

—Fique parada — Diz ele - Com sorte você vai curar, mas não pode perder mais sangue que isso.

Eu sei que está ruim, mas ele não confirma, e, nesse instante, sinto-me tão cheia de gratidão por ele e de ódio pelas pessoas lá fora, caçadores, primitivos, com seus dentes afiados e seus cassetetes pesados, que o ar me escapa e preciso fazer um esforço para respirar. David estende o braço para um canto do abrigo sem tirar minha perna de seu colo. Ele mexe em uma espécie de caixa, e trancas de metal se abrem. Um segundo depois ele está segurando uma garrafa sobre minha perna.

—Isto vai arder por um segundo — Diz ele. O líquido cai na pele, e o cheiro adstringente de álcool faz minhas narinas queimarem. Chamas parecem lamber minha perna, e eu quase grito. David estende uma das mãos, e, sem pensar, eu a aperto.

—O que é isso? — Forço as palavras a saírem entre os dentes.

—Álcool — Ele diz — Para evitar infecção.

—Como sabia que estava ali? — Pergunto, mas ele não responde.

Ele afasta a mão da minha, e percebo que eu estava apertando com muita força, mas não tenho energia para sentir vergonha ou medo: o local parece estar pulsando, a quase escuridão se tornando menos nítida.

—Droga — murmura David — Você tá sangrando muito.

—Não tá doendo tanto assim — Sussurro, o que é uma mentira. Mas ele está tão calmo, tão composto, que me faz querer agir com bravura também.

Tudo assumiu uma característica estranha e distante: os sons da correria e da gritaria lá fora se tornaram deformados e estranhos, como se estivessem sendo filtrados pela água, e David parece a quilômetros de distância. Começo a achar que posso estar sonhando ou prestes a desmaiar. 

Então, decido que, definitivamente, estou sonhando, porque, enquanto assisto, David começa a puxar a camiseta pela cabeça. O que está fazendo?, quase grito. David se livra da camiseta e começa a rasgar o tecido em longas tiras, olhando, nervoso, para a porta e parando para escutar cada vez que o tecido faz rippp.

Agora não consigo desviar o olhar. O luar toca suas escápulas, que brilham sutilmente. Ele é magro, porém musculoso: quando se move, consigo ver os contornos dos braços e do tórax, tão estranha, incrível e lindamente diferentes do corpo de uma menina, um corpo que me faz pensar em sair daqui correndo, de tão quente e suada.

O calor começa a correr por meu corpo, uma sensação pulsante, como se milhares de passarinhos tivessem sido soltos em meu peito. Não tenho certeza se é por causa do sangramento, mas agora parece que o recinto está rodando tão depressa que corremos o risco de ser arremessados para fora ou atirados na noite. Antes, David pareceu distante. Agora o lugar está cheio dele: tão próximo que não consigo respirar, não consigo me mover, falar ou pensar. Toda vez que seus dedos me tocam, o tempo parece parar por um segundo, como se pudesse se desfazer. O mundo inteiro está se desfazendo, concluo, exceto nós. Nós.

—Ei — Ele estende o braço e toca meu ombro apenas por um segundo, mas nesse segundo meu corpo se reduz àquele único ponto de pressão sob sua mão e brilha com o calor. Nunca me senti as, tão calma e em paz. Talvez eu esteja morrendo. A ideia não me chateia tanto, por algum motivo. Aliás, parece até mesmo um pouco engraçado — Você está bem?

—Estou — Começo a rir suavemente — Você está nu.

—O quê? - Mesmo no escuro, dá para perceber que ele está estreitando os olhos.

Ele começa a enrolar a camisa rasgada em minha perna cuidadosamente, apertando com força. —Mas que prego foi esse, mulher? — Questiona ele. — Isto deve conter o sangramento.

A frase conter o sangramento parece tão clínica e assustadora que me faz acordar e me concentrar. David termina a atadura improvisada.

Agora a dor gritante em minha perna foi substituída por uma pressão difusa e pulsante. David levanta minha perna cuidadosamente e a coloca no chão.

— Tudo bem? — pergunta ele, e eu faço que sim com a cabeça. Em seguida, ele se ajeita a meu lado e se apoia na parede como eu, de modo que ficamos sentados lado a lado, tocando nossos cotovelos. Posso sentir sua pele quente, e fico com calor. Fecho os olhos e tento não pensar em quão próximos estamos ou em como seria passar a mão nos ombros e no tórax dele.

Rezo silenciosamente para que Clove tenha escapado; a possibilidade de que ela não tenha conseguido é terrível demais.

Mesmo assim, David e eu não nos movemos. Estou tão cansada que é como se pudesse dormir para sempre. Minha casa parece impossivelmente distante, e não vejo como conseguirei voltar. David começa a falar rapidamente, sua voz uma onda baixa e urgente:

—Eu nunca precisei de você tanto quanto cheguei a pensar que precisaria. Eu conseguia comer sozinho, não precisava de companhia para atravessar a rua, tinhas os meus livros e o meu computador no raque do lado da minha cama. Ter você era algo que não dependia das minhas necessidades. Eu não precisava, necessariamente, mas queria. Queria você de uma forma que nunca quis nada algum dia.

—Não faz isso.

—Mas é a verdade.

—Eu não valho a pena. Lembra o tanto de coisa que te fiz passar.

—Pessoas mudam, Allyson, você sabe disso mais do que ninguém.

—Sim, pessoas mudam, mas o passado não.

Ouço ele suspirar pesadamente. Pega minha mão e distribui milhares de beijos por ela.

—Você vale a pena. Acho que não tem noção disso, mas pra mim, você vale sim a pena - Não sei como, eu não pretendia me mexer, nem tinha percebido qualquer movimento, mas, de alguma forma, estávamos frente a frente no escuro, separados por poucos centímetros - Você pode fechar os seus olhos para as coisas que não quer ver. Mas não pode fechar seu coração para as coisas que não quer sentir.

—Você tá confuso - Me afasto e passo a mão no rosto.

Dentro de mim, tudo está se agitando como se tivesse seguido o que ele disse, transformando-se em pássaros voando: o restante de meu corpo parece flutuar em correntes intensas de calor, como se um vento quente soprasse através de mim e me decompusesse, e me transformasse em ar. Isto é errado, diz uma voz em mim, mas não a minha voz. É a de outra pessoa, uma espécie de mistura entre várias pessoas que sempre me ensinaram que traição é errado. Mas Jason havia me deixado, e David... ele é um assunto inacabado que nunca tive coragem de contestar.

—Só há uma coisa de que ainda tenho certeza, sei que faria qualquer coisa por você, mesmo que pra isso tivesse que agir contra tudo e todos. Abriria mão de tudo que tenho, até da minha alma. Se isso não é paixão, é o melhor que tenho pra oferecer.

—Eu não entendo, juro que não entendo.

David me abraçou. E quando ele me abraçou, foi como se uma parte do meu coração se preenchesse, naquele momento eu me senti inteira. Eu precisava de um abraço. Um Abraço apertado, um abraço que me livrasse das angústias pelo qual eu estava passando. E o abraço dele foi exatamente isso.

— Não.

Mas outra palavra está se erguendo dentro de mim, borbulhando como água fresca jorrando da terra. Sim, sim, sim.

—Por quê? — Ele mal está sussurrando. Suas mãos encontram meu rosto, as pontas de seus dedos tocando ligeiramente minha testa, o topo das orelhas, minhas bochechas. Tudo o que ele toca é fogo. Meu corpo inteiro está queimando; nós nos tornamos dois pontos da mesma chama branca e brilhante — Do que você tem medo? 

—De tudo, você precisa entender.

E, então, penso que realmente posso ter morrido. Talvez o prego tenha me atrasado e eu tenha sido atingida na cabeça, e isso tudo não passe de um sonho: o restante do mundo se desfez. Apenas ele. Apenas eu. Apenas nós.

E, então, estamos nos beijando. e isto não é como nada que eu já tenha visto, imaginado ou sequer sonhado: isto é como música, ou dançar, mas ainda melhor. A boca dele está ligeiramente aberta, então abro a minha também. Seus lábios são macios e fazem a mesma pressão suave que a voz insistente em minha cabeça que não para de dizer sim.

O calor só aumenta dentro de mim, ondas de luz crescendo e quebrando, fazendo com que eu me sinta flutuando. Seus dedos passam por meu cabelo, seguram minha nuca, descem para meus ombros, e, sem pensar, minhas mãos encontram seu peito e se movem pelo calor de sua pele, as escápulas como pontas de asas, e a curva da mandíbula, com uma leve barba, tudo é estranho, diferente, gloriosa e deliciosamente novo. Meu coração bate com tanta força em meu peito que dói, mas é uma dor boa, como a sensação no primeiro dia de outono, quando o ar está fresco, as folhas das árvores começam a mudar de cor e o vento cheira vagamente a fumaça, como o fim e o começo de algo, ao mesmo tempo. Sob minha mão, juro que posso sentir as batidas de seu coração respondendo, um eco imediato do meu, como se nossos corpos estivessem conversando.

E, de repente, tudo é tão ridícula e estupidamente claro que tenho vontade de rir. É isso o que quero. Sempre foi meu único desejo. Todo o resto, cada segundo de cada dia ruim antes deste momento, deste beijo, não significou nada.

Quando ele finalmente se afasta, é como se um cobertor tivesse descido em meu cérebro, acalmando todos os meus pensamentos e dúvidas inquietas, preenchendo-me com uma calma e uma felicidade tão profundas e frias quanto a neve. A única palavra que restou é sim. Sim para tudo.

Você sabe de tudo, Allyson, acredita em mim agora?

Sim.

Podemos ir pra minha casa?

Sim.

Posso encontrá-la amanhã?

Sim.

Você gosta de whisky?

Sim.

 As ruas estão vazias a essa altura. A cidade inteira está silenciosa e parada. A cidade inteira poderia ter se reduzido a nada ou se incendiado enquanto estávamos no abrigo, e eu não teria notado ou me importado. A viagem pra casa dele é indistinta, um sonho. Ele segura minha mão o tempo todo, e paramos para nos beijar mais duas vezes enquanto o sinal está vermelho.

Em ambas as vezes, penso que queria que as sombras fossem sólidas, tivessem peso e que se enrolassem à nossa volta e nos enterrassem para que pudéssemos ficar assim para sempre, peito com peito, lábio com lábio. Em ambas as vezes sinto meu peito se apertar quando ele se afasta, segura minha mão e começo a dirigir outra vez.

Bebemos em sua casa pra esquecer minha dor enquanto ligo pra Clove muitas vezes.

De algum jeito, cedo demais, estou em casa, sussurrando um tchau para ele e sentindo seus lábios tocarem os meus uma última vez, leves como o vento. Então, estou entrando sorrateiramente na casa, subindo as escadas, tonta e completamente perdida em pensamentos, e entrando no quarto, e só quando estou deitada há um bom tempo, minha mãe aparece de braços cruzados. 

—Quando você estiver sóbria, vamos ter uma conversa sobre as consequências, e a ressaca será a menor delas.

—Tudo bem, mãe - Sinto ela tirando meu sapato e fecho os olhos com mais força - Mas se você não parar de girar o quarto eu vou vomitar - Me deito melhor e procuro sua mão pra segurar forte - Obrigada por não ficar irritada comigo.

—Eu tô muito irritada com você, Ally. Mas como não vai se lembrar, a gente fala disso amanhã.

—Tudo bem, mãe.

—Porque tanto mãe? - Ela se deita ao meu lado e abro os olhos.

—Não sei, mãe.

—Porque faz isso com você mesma?

—Jason foi embora - Fungo e tento dormir na intenção se fazer tudo parar de girar - Quase morri. E sonhei com um anjo.


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