O Grande Inverno da Rússia escrita por BadWolf


Capítulo 45
Confrontando Abe


Notas iniciais do capítulo

Olá,


Decidindo aproveitar meu tempo livre, gostaria de expressar aqui que o dia de quarta-feira foi incluso no calendário de postagens. Portanto, a fic terá duas postagens na semana: quarta e sábado. Acredito que alguns leitores ficarão felizes em saber que não terão de esperar uma semana para obter as respostas da fic, só alguns dias.

Bom, o título do cap diz tudo. Admito que deixei bem escancarado quem era o Abe. Logo, não era de se estranhar que o Holmes, assim como vocês, iria chegar à mesma conclusão sobre a identidade dele.

Boa leitura!



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            -Mr. Holmes? Está tudo bem?

            Holmes sobressaltou-se, ao sentir a mão de Abe sobre seu ombro – o saudável, como era de se esperar. O detetive sequer percebeu a charrete já se encontrava estacionada em frente à casa de Abe, pois passara a viagem toda refletindo, silenciosamente, enquanto seus olhos não se desviavam da pequena fotografia de Grigori que ele havia encontrado.

            -Estava distraído. – admitiu Holmes.

            -Deu para perceber. – disse Abe, procurando não se aprofundar na questão. Havia reparado que Holmes não tirara os olhos do retrato de um menino e presumiu que fosse Grigori. Embora Holmes fosse seu hóspede, Abe não se sentia no direito de cobrá-lo por respostas.

            Assim que abriu a porta da cabana de Abe, Holmes deparou-se imediatamente com Grigori, motivo de sua tristeza recente. O menino estava à beira da lareira, entretido com a lenha que queimava ali. Ter os olho azuis do menino – azuis como os do Duque Ivanov, apercebeu-se Holmes – a encará-lo com curiosidade e afeição tinham o poder de desarmá-lo.

            -Mr. Holmes! – irradiou-se de alegria o menino, levantando-se do chão. Holmes tentou esboçar um sorriso, mas não conseguiu.

            -E-Está tudo bem. – disse o detetive, confuso. Sua mente havia criado pelo menos três formas diferentes de abordá-lo, mas ao colocar-se diante de Grigori, todo o seu planejamento foi por água abaixo.

            -O senhor parece pálido. Espero que não tenha sentido muito frio lá fora.

            -Não. Na verdade, é que... Na verdade não nevou muito.

            O menino sorriu. – Que bom.

            Durante o jantar, os dois adultos da mesa permaneceram em silêncio, cortado este por um falante Grigori a comentar sobre a comida, o clima e também fatos pequenos que ainda povoavam suas lembranças. Rendido à tagarelice do menino, Abe decidiu conversar. O idoso não demorou a perceber que, embora fosse um menino de pouca educação, Grigori havia crescido em berço de ouro. Afinal, quantas crianças da Rússia poderiam brincar de pique-esconde com sua babá ou comer uma boa variedade de carne todos os dias no almoço e no jantar?

Por diversas vezes, Abe flagrara Holmes com o olhar perdido enquanto o menino comentava sobre suas memórias distantes. A falta de interação do detetive na conversa do menino também não passou despercebida pelo idoso. Sim. A causa de sua preocupação era de fato o menino. E algo lhe dizia que tudo se decorreu na taberna. Ele chegou lá bastante animado e tomou-se de tristeza após sair de lá. O que, afinal, ele havia descoberto?


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            Holmes acordou naquela manhã sentindo seu ombro sendo balançado. Era Abe, lhe chamando para acordar. Tinha ido dormir cedo na noite passada, mas a verdade é que o detetive sequer tinha adormecido. Passara a noite em claro, tentando alinhar suas idéias. As revelações a respeito das origens de Grigori tinham balançado completamente o detetive, e agora o mesmo não sabia o que dizer a ele. Como contar que ele tinha por avô um homem terrível e cruel, responsável pela infelicidade que cercou seu casamento e sua vida nos últimos anos? O detetive não sabia o que fazer.

            Do lado de fora, deixando um sonolento Grigori deitado entre cobertas, Holmes recebeu uma caneca de chá quente das mãos de Abe.

            -Você está estranho. – decretou Abe.

            -Tem razão. – disse o detetive, após um gole. – Abe, saberia me dizer se há algum orfanato nestas redondezas?

            -Não. O único orfanato que havia em Ecaterimburgo fechou as portas há uns 10 anos, porque a Igreja não conseguia mais sustenta-lo. O mais próximo daqui, ouso dizer, fica em São Petersburgo. Mas afinal, presumo que este seu curioso interesse em orfanatos tenha algo a ver com o seu menino?

            Após suspirar, Holmes assentiu.

            -Grigori tem um irmão chamado Georgi e é possível que ele tenha sido mandado a um orfanato. Esse Georgi é seu irmão-gêmeo. Tenho fortes suspeitas de que não são gêmeos idênticos. Crianças gostam de se gabar de que possuem um irmão gêmeo idêntico. E Grigori sempre se refere a Georgi como sendo seu irmão, mas na maioria das vezes não menciona que é gêmeo. Decerto porque quando questionado se são semelhantes, Grigori precisa dizer que não são. Algo que provavelmente ele não sabe explicar. Não posso culpa-lo. A Ciência de nossos dias ainda não encontrou uma resposta plausível para o fato de alguns irmãos-gêmeos não nascerem idênticos.

—O senhor me parece ser um homem estudado.

Holmes sorriu, levemente. – Sou tomado pela curiosidade no que tange a Humanidade, apenas isso.

Após algum silêncio, o detetive voltou a falar, de modo mais sombrio.

—Mas devo confessar, Mr. Abe, que imaginei muita coisa a respeito de Grigori, mas nem em minhas piores expectativas eu poderia imagina-lo como o neto de um grande desafeto meu.

            Abe parecia curioso.

            -Presumo que seu inimigo seja um russo, então. Faria mal perguntar-lhe quem é?

            Holmes riu com o cuidado que Abe tomava sempre que fazia perguntas.

            -O finado Duque Ivanov.

            A xícara de Abe caiu instantemente no chão.

            -I-I-Ivanov? O Conde Ivanov, você quis dizer?

            Holmes estranhou o olhar aterrorizado de Abe.

            -Não mais um Conde. Ele se tornou Duque há alguns anos atrás.

            -Você se referiu a ele como um finado. Ele está morto?

            -Sim, mas acaso você o conhece?

            -Não. – disse Abe, ainda com os olhares atemorizados.

            -Com todo o respeito, Mr. Abe, mas não é o que está me parecendo. Eu consigo ver medo em seus olhos, com a mera menção de seu nome...

            -Eu não quero falar sobre isso. – disse Abe, recolhendo a caneca no chão. Holmes notou que suas mãos estavam trêmulas.

            -E se quer um conselho, não maltrate o menino apenas porque ele compartilha do mesmo sangue que aquele monstro. – disse Abe, antes de voltar para a cabana.

            Observando o idoso sair dali, Holmes não pôde deixar de analisar a situação.

            Esse tal Abe, ou melhor, Abraham... Primeiro, encontro um Menorá em seu armário. Depois, descubro que o homem possui uma grande aversão ao nome dos Ivanov.

Não... Não pode ser possível. Mycroft me assegurou que ele estava morto. Ele foi torturado até a morte apenas para assinar a autorização de matrimônio de Esther com Dmitri. O Duque Ivanov não costumava deixar rastros. Não. Isso certamente era coincidência.

Mas o seu olhar... Ele era tão familiar... Sim, é claro! Sua expressão facial enquanto ria claramente lembrava a de Esther! As pequenas covinhas reveladas em sua bochecha, a forma de rir, sim! Idênticas a de minha esposa.

Não. Eu só posso estar vendo coisas. Abraham Katz está morto. É loucura pensar o contrário.

Mas uma vez que se elimina o impossível...

—Mr. Holmes?

Holmes congelou, ao ouvir a voz de Grigori a chamar-lhe. Notou que o menino já não estava mais na cama. Claramente, o menino estava melhor e talvez pronto para mais uma.

—O senhor está bem? Parece... Apreensivo com algo.

            No dia anterior, Holmes não queria conversar com Grigori. Nem sobre suas recentes descobertas sobre suas origens, muito menos sobre suas suspeitas a respeito de Abe, até mesmo porque, ele tinha certeza de que o menino não entenderia. Mas ainda assim, sua apreensão era visível. Holmes tinha ocupado sua mente toda a noite estudando as possibilidades, e cansado de chegar a tão poucas conclusões, o detetive decidiu que deveria contar a verdade ao menino. Era o mínimo que o detetive poderia fazer. Quanto à Abe, o detetive havia decidido perguntar um pouco mais sobre sua vida. Aquilo era importante demais para não ser investigado.

            -Não é nada demais, Grigori. Aliás, acredito que eu te devo algumas satisfações a respeito de minha ida à Lyovikh...

            Holmes apontou a uma cadeira, pedindo que ele se sentasse. Um tanto resoluto, o menino aceitou. Os olhos dele se arregalaram, atentos. Holmes não era capaz de ouvir seus batimentos cardíacos, mas sabia que o menino estava com o coração acelerado,  a julgar por suas pupilas dilatadas.

            Primeiro, a pior notícia.

            -Eu estive em Lyovikh e descobri sobre sua família. Infelizmente, os seus pais, eles... Eles estão mortos. Eu sinto muito.

            O menino se retraiu, mas tornou a ficar sereno. Talvez já estivesse preparado para isto. Holmes e Grigori se entreolharam por pouquíssimo tempo, mas que mais parecia uma eternidade ao garoto. Holmes percebeu que ele estava temeroso com algo. Provavelmente, era o temor de ouvir notícias ruins também sobre o seu irmão.

            -Não consegui descobrir nada sobre seu irmão. O homem que o apanhou não sabia qualquer coisa sobre ele. É bem possível que ele tenha sido mandado a um orfanato. Como não há orfanatos nas redondezas e o mais próximo fica em São Petersburgo, tudo aponta que, se ele sobreviveu, ele foi mandado para lá, após a morte de seus pais. Eu... Eu já sei quem são os seus pais, o sobrenome deles. Holmes percebeu que havia, desta vez, revolta no olhar de Grigori.

            -Então, vamos voltar para São Petersburgo agora mesmo.

            -Não posso agora. Estou perto demais de conseguir localizar minha esposa para voltar atrás agora. Quando minha investigação em Ecaterimburgo terminar, voltaremos para lá e tentaremos encontra-lo.

—Mas o meu irmão, ele...

—Seu irmão pode esperar. – retrucou Holmes.

            Para pasmo de Holmes, Grigori se levantou, um tanto exaltado.

            -Esperar?! Óbvio que não! O tempo todo, o senhor diz que sua mulher pode morrer se sua busca por ela demorar demais! O mesmo não pode se aplicar ao meu irmão?

            -Na melhor das hipóteses, seu irmão está em um orfanato! Pode estar até mesmo com outra família. Não vejo necessidade de tamanha urgência.

Grigori parecia ainda mais desesperado.

—Ele estar em um orfanato torna tudo pior, Mr. Holmes. Muitas crianças são retiradas de orfanatos e colocadas para trabalhar mais de doze horas por dia em fábricas. Meu irmão pode estar passando por isso agora! – disse Grigori, aflito.

Holmes parecia não compreender o desespero do menino.

—Você está se precipitando...

—Se tivesse vivido o mesmo inferno que eu vivi naquela fábrica, concordaria comigo! O paradeiro de meu irmão tem uma pista muito mais concreta que o de sua esposa!

Holmes se levantou, sentindo-se irritado.

—O que está dizendo?

—Viemos para cá porque o senhor se baseou em um papel queimado e teve que torturar um homem para que ele te contasse o que sabia sobre sua esposa.

—Eu não torturei ninguém... – ofendeu-se Holmes. Grigori o ignorou.

—O que lhe faz ter certeza de que aquele homem te disse a verdade? Podemos estar perdendo nosso tempo aqui, enquanto meu irmão tem uma evidência muito mais forte do que você tem sobre a sua esposa?

            -Então, depois de todo este tempo, depois de todos os riscos que nós corremos, você quer que a minha busca seja em vão?! – disse Holmes, prestes a explodir.

            -Sua busca, como o senhor bem disse! Eu não ganho nada em procurar sua esposa! Só estou aqui na Rússia porque esperava que o senhor localizasse o meu irmão, mas o senhor se recusa em fazê-lo! O senhor não tem palavra! – esbravejou o menino.

—Quão egoísta você é! – exclamou Holmes, horrorizado, enquanto Grigori voltava sua atenção ao cabide da porta, onde pousava seu casaco, e o pegou, bem como seu chapéu e cachecol.

            -O que está fazendo? – perguntou Holmes, mas tudo que recebeu foi uma porta sendo fechada com força, e silêncio. Grigori já tinha saído, sabe-se lá para onde. Olhando da janela, o detetive viu o menino correr para a estrada. Subitamente, Holmes passou a temer pelo menino. Será que ele tinha optado em resgatar seu irmão sozinho? Ou decidiria enfrentar todos os perigos da estrada para ir sabe-se lá aonde?   

            Porquê estou tão preocupado? O menino claramente é um egoísta. Além de que, ele só está irritado. Não irá fazer nada. Decerto saiu só para clarear as idéias. Não tardará até que ele perceba que cometeu um erro e retorne para cá.

            Um olhar mais atento fez o detetive perceber que, quase no horizonte, o menino estava sentado sobre um tronco de árvore, com o semblante emburrado. Holmes sorriu. Seu instinto, mais uma vez, não havia falhado.



 

 

 

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            Algumas horas tinham se passado desde a discussão e nem sinal de Grigori. Holmes se encontrava sentado sobre uma cadeira, quando a porta se abriu de repente. Ele esperava por Grigori, mas foi pego de surpresa ao constatar que era Abe, já tão cedo.

            -Mr. Abe. – disse Holmes. – Folgo em vê-lo.

            Abe não parecia satisfeito.

            -Pouco trabalho nesta época do ano. Campos cobertos de neve... Ganhei alguns trocados, nada demais.

            -Se o senhor quiser, eu... – disse Holmes, levando sua mão ao bolso do terno. Mas o idoso negou.

            -O senhor é minha visita, Mr. Holmes. Não vou cobrar por sua estadia. Aliás, cadê o garoto? Apanhei algumas ervas para sua recuperação. – perguntou Abe, procurando-o pela pequena casa.

            -Ele está lá fora.

            -Lá fora?! – o homem idoso pareceu assombrado. – Depois de tudo que ele passou recentemente, o senhor o deixou sair, com neve lá fora?

—Não ficará lá fora por muito. Logo, voltará a si e retornará.

Isso não foi o bastante para aplacar a revolta de Abe.

—Onde está o seu senso de responsabilidade, Mr. Holmes? Ele é uma criança, caso o senhor não tenha percebido! Como adulto, o senhor precisa se impor e dar as regras, não deixa-lo a sua própria vontade. Crianças são incapazes de saber o que é melhor para elas.

            -O senhor parece muito sábio nesta temática. O senhor tem filhos?

            Abe pareceu incomodado. – Não. Eu não sou casado e nem tenho filhos. Aliás, eu já te disse isto.

            A voz de Abe estava com um ligeiro tremor. Havia algo inconsistente em seus argumentos, notou Holmes. Era hora de insistir.

            -Eu sei porque não me diz o seu sobrenome, Mr. Abe. Porque o senhor não se lembra dele.

            Abe o olhava assustado. Bom Deus, ele pode me expulsar daqui a pontapés e me lançar em pleno nevoeiro, mas eu preciso arriscar...

—O senhor se chama Abraham Katz...

—Pare... – pediu o idoso.

—O senhor nasceu na Inglaterra. Veio de uma família de judeus, com descendentes de rabinos...

As palavras de Holmes pareciam lançar Abe a um estado de confusão e prostração mental. Não havia mais dúvidas para Holmes de que aquele homem, idoso e cansado, era mesmo Abraham Katz, seu sogro.

—Você se casou com uma francesa, também judia, chamada Rebecca. Tiveram dois filhos: o primogênito, David, e a caçula, Esther...

—Eu já te disse para parar! – esbravejou o idoso, visivelmente perturbado. Mesmo diante da fraqueza dele, Holmes sentia necessidade de continuar.

—Sendo advogado, o senhor começou a trabalhar no Ministério das Relações Exteriores, e como era um homem inteligente e poliglota, passou a espionar para a Inglaterra enquanto vivia pela Europa como diplomata...

O próprio Holmes decidiu não continuar, ao ver Abe ajoelhado ao chão, completamente prostrado e recolhido. Talvez, pensou Holmes, eu tenha ido longe demais. Ele está visivelmente perturbado. Sabe-se lá que tipo de tortura os homens do Conde Ivanov tenham feito com ele... Talvez esquecer-se tenha sido uma estratégia de sobrevivência de seu próprio cérebro... Estratégia esta que eu estou arruinando.

—Eu... Eu sinto muito... – Holmes tentou afagar-lhe o ombro, mas Abe se esquivou. Ele estava trêmulo e abatido. Em meio às lágrimas, Holmes ouviu o homem começar a balbuciar palavras em hebraico, no ritmo de uma prece. Por fim, Abraham começou a falar em inglês, no que parecia ser a tradução de suas palavras.

Deus

Não consintas que eu seja

O carrasco que sangra as ovelhas,

Nem uma ovelha nas mãos dos algozes

Ajuda-me a dizer sempre a verdade

Na presença dos fortes,

E jamais dizer mentiras

Para ganhar os aplausos dos fracos.


 

Meu Deus! Se me deres a fortuna,

Não me tires a felicidade;

Se me deres a força,

Não me tires a sensatez;


 

Se me for dado prosperar,

Permita que eu não perca a modéstia,

Conservando apenas o orgulho da dignidade.


 

Ajuda-me a apreciar o outro lado das coisas,

Para não enxergar a traição dos adversários,

Nem acusá-los com maior severidade

Do que a mim mesmo.


 

Não me deixes ser atingido

Pela ilusão da glória,

Quando bem sucedido e

Nem desesperado quando sentir insucesso.


 

Lembra-me que a experiência de um fracasso

Poderá proporcionar um progresso maior.


 

Ó Deus! Faze-me sentir que

O perdão é o maior índice da força,

E que à vingança é prova de fraqueza.


 

Se me tirares a fortuna,

Deixe-me a esperança.

Se me faltar a beleza da saúde,

Conforta-me com a graça da fé.


 

E quando me ferir a ingratidão

E a incompreensão dos meus semelhantes,

Cria em minha alma

A força da desculpa e do perdão.


 

E, finalmente Senhor,

Se eu Te esquecer, te rogo,

Mesmo assim,

Nunca Te esqueças de mim.


Abe escondeu seu rosto, outra vez, e Holmes pôde escutar claramente um choramingo. Certamente, tudo estava indo à tona. Sua vida, seu passado. Tudo.

—Meu nome é Abraham Katz. Eu nasci no dia 15 de Março de 1842, em Londres. Meu pai se chama Benjamin Katz e minha mãe se chama Rachel Katz... Eu sou judeu, da tribo de Levi... Oh, por Adonai... Por Adonai... Por Adonai... Rebecca... Oh, minha Rebecca, Ahava... O-Onde ela está?

Será que devo dizer a ele que ela está morta? Não, talvez esta não seja a hora.

—Eu não sei. – mentiu Holmes.

—Como posso ter me esquecido de minha Rebecca? E de meus filhos? Que tipo de pai e marido eu sou? Que tipo de homem eu sou? Oh... Como eles estão? Meu menino David, minha Estherzinha... Minha Estrelinha abençoada... Você sabe deles?

Holmes sentia que precisava desconversar.

—Não fique assim, Mr. Katz. O senhor não é um pai ou marido ruim. Simplesmente muita coisa aconteceu e o senhor não se lembra de alguns detalhes...

—Alguns detalhes? ALGUNS DETALHES?! Eu me esqueci de toda a minha vida! Estou enfiado nesta lama, vivendo como um gentio, bebendo vodka e vivendo um dia de cada vez de minha existência pecaminosa, enquanto minha esposa e filhos estão abandonados. Oh, maldita seja a minha sorte!

Mal começara seu lamento, Abraham Katz começou a rasgar suas próprias vestes. Claro, a dramaticidade judia tinha que aparecer em algum momento. Até nisto Esther era parecida com ele.

—Acalme-se, Mr. Katz. Tenho certeza de que poderei leva-lo desta miséria até sua família, mas primeiro eu preciso concluir o que vim fazer aqui na Rússia. O senhor ouviu falar de alguma fazenda em Ecaterimburgo?

O idoso riu. – Há tantas, Mr. Holmes. Precisará ser mais específico.

—Ela pertencia ao Duque Ivanov, então creio que sabe do que estou falando.

Abe pareceu assombrado repentinamente.

—O que foi?

Abe respirou forte.

—A Fazenda. Era assim como chamávamos, onde homens como o Conde Ivanov lançavam a “gentalha”, como ele se referia ao nosso povo. Era uma Fazenda de Trabalhos Forçados, onde homens, mulheres e crianças eram submetidos a trabalhar mais de doze horas por dia. Quando fui descoberto como judeu – algo não muito difícil de descobrir, pois sou um homem circuncisado – o Conde não hesitou em me mandar para cá. Trabalhei aqui por muitos anos, passando também por algumas torturas, todas lideradas pelo Conde. Mas os negócios do Conde começaram a ir mal, e o Conde decidiu passar a administração das terras para um de seus genros. O problema é que seu genro era, digamos, mais liberal que o pai, e acabou com a exploração. Não de um jeito bom, pode-se dizer, pois ele resolveu matar praticamente a todos. Poucos sobreviveram, e eu estava entre esse grupo. Ao contrário da maioria, que fugiu da Rússia, eu acabei me estabelecendo pelos arredores, porque na época eu sequer sabia quem eu era... Céus, por que eu não voltei à Inglaterra?

Holmes suspirou. Abe estava prestes a voltar à outra crise de choro. O detetive não poderia culpa-lo. Embora seu sogro não tivesse dado qualquer detalhe sobre o que acontecera consigo, Holmes sabia que ele fora torturado brutalmente, a ponto de mexer com sua sanidade e fazê-lo perder a memória. Holmes sabia de alguns casos clínicos envolvendo soldados e vítimas de crimes brutais em que o cérebro, após uma experiência dramática e dolorosa, “apagava” ou “ocultava” parte da memória, como forma de se proteger do estresse traumático. E claramente, Abraham sofria disto.

—Mr. Abe, o que passou, passou. O importante é que o senhor se lembra de tudo outra vez.

—Sim, mas talvez não haja tempo. Meus filhos, minha esposa... Eles poderão não me perdoar pelo meu desaparecimento. Ou pior. Eles podem estar mortos. O que acontecer, tudo terá sido culpa minha.

Eu realmente não posso contar-lhe tudo, ou ele certamente se quebrará outra vez. E não posso me dar ao luxo de perder um aliado porque desejo ser sincero.

—De qualquer forma, Mr. Abe, eu gostaria que você me dissesse onde fica esta Fazenda.

—Perdoe minha intromissão, mas o que deseja fazer naquele lugar, Mr. Holmes?

Sem saída, Holmes decidiu entregar parte da verdade.

—Minha esposa esteve investigando essa Fazenda.

Abe parecia desgostoso.

—Pobre mulher... O que havia de tão interessante ali para tal?

—É o que estou tentando descobrir. – desconversou Holmes. Não queria assombrar ainda mais seu sogro. O velho Abraham assentiu.

—Bom, melhor do que dizer a localização, eu posso te levar lá.

—Er, eu não acho que isso seja recomendável...

—Eu não vou caducar de novo, se é o que está pensando. – percebendo que Holmes estava cuidadoso demais sobre o assunto, Abraham interveio.

—Não foi isso o que quis dizer. – disse Homes, subitamente envergonhado. Mas Abraham ignorou o apelo do detetive, levantando-se para o cabide, onde estava seu chapéu e casaco.

—Não tem com quê se preocupar, Mr. Holmes. Não vou deixar que as lembranças terríveis daquele lugar carreguem outra vez o que há de melhor em mim. Irei com você. Ninguém melhor do que um sobrevivente para leva-lo até aquele local pelo melhor caminho. Mas e quanto ao menino Grigori? Não deveríamos deixa-lo dentro de casa?

—Eu conheço o menino, Abe. Ele é teimoso e está querendo me ganhar pelo cansaço. Quando começar a sentir frio, abandonará sua teimosia e voltará para casa.

—Vamos logo, então. Com os cavalos descansados, chegaremos lá antes de anoitecer.


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Notas finais do capítulo

Agora sim!!! Estaremos indo a Ecaterimburgo!!!

Podem se preparar, porque teremos fortes revelações nos próximos caps.

E tem alguém aí preocupado com o Grigori? Bom, eu ficaria...

Obrigada por acompanharem e até quarta! E, como sempre, reviews são importantes!



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