O Grande Inverno da Rússia escrita por BadWolf


Capítulo 12
Meu Ilustre Convidado


Notas iniciais do capítulo

Olá!!!

Eis que trago mais um cap, para alimentar as teorias sobre o Grigori, ou trazer mais dúvidas sobre o menino. Acho que vou deixar algumas suspeitas em certas pessoas, hehe...

Boa leitura!!



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Sussex Downs. 5 de Maio de 1910.


            Passava das onze quando Holmes terminava de vestir seu pijama, decretando o fim de seu dia. Tinha pensado em passar a madrugada escrevendo um artigo sobre colônias de abelhas, mas desistiu. Fazia um frio considerável lá fora, com os ventos e raios de uma tempestade muito próxima de acontecer, de modo que sua cama lhe acenava como uma boa alternativa.

            Seu dia tinha sido complicado. Holmes entregou Quebra-Ossos à delegacia, causando espanto e admiração nos policiais da Scotland Yard, que passaram a ter certeza de que o Grande Detetive Londrino era realmente um ser vivente, não só uma história literária do The Strand. Preocupada com qualquer repercussão e desejando anonimato, Holmes decidiu dar todo o crédito ao Inspetor Greenwall – que não se desagradou com a idéia, obviamente.

            Claro que, no dia seguinte, o único jornal da cidade iria procurar se “redimir” da falha de ter deixado um caso da magnitude de Quebra-Ossos passar em brancas nuvens. Por toda a cidade, não se escutava outra coisa, senão os macabros feitos de Quebra-Ossos, contados com certo sensacionalismo. Holmes não pôde deixar de achar graça do espanto dos cidadãos de Sussex Downs com as novidades.

            Em uma de suas idas à cidade naquele dia, Holmes decidiu retornar ao beco onde encontrou Grigori. Desde então, não vira o menino novamente. Por mais que tivesse ocultado a participação do menino na captura de Quebra-Ossos, Holmes queria encontrá-lo. Uma mera visita para me certificar de que ele está bem, dizia o detetive a si mesmo.

            Não foi difícil achar a “morada” de Grigori, por mais que imaginá-lo a viver em tais condições deixasse a Holmes desapontado.

            O esperto e tenaz menino era realmente um desafortunado menino de rua, não muito diferente dos Irregulares de Baker Street. Sua “residência” era nada mais que uma tábua com panos velhos, sendo uma espécie de tenda improvisada a abrigar o esconderijo de chuva, sol e outros elementos climáticos indesejados. Em um canto, havia uma peça de roupa, que Holmes reconheceu como sendo a mesma camisa usada pelo menino, quando se encontraram pela primeira vez. Não havia dúvidas de que aquele local era mesmo a moradia de Grigori.

            Pena que ele não está aqui.

            Holmes voltou para casa com seu desapontamento na cabeça. Não era a primeira vez que o detetive convivia com crianças em estado miserável. Muito embora Holmes tivesse trabalhado por muito tempo com Wiggins e os Irregulares, o detetive jamais teve qualquer vislumbre de como eram suas vidas particulares, onde viviam, moravam, dentre outros fatos. Imaginava que não fosse um mar de rosas – longe disto – mas a idéia jamais o incomodou. Mas agora, ver o modo como Grigori vivia, e principalmente, como o menino ainda se mantinha esperto e bem-humorado, mexera com Holmes.

            Ainda pensando no caso de Grigori, o detetive caminhava pelos corredores de sua casa com um castiçal em uma das mãos, que o ajudava a caminhar por entre aquela penumbra, onde havia apenas o luar e os estrondos dos raios, que iluminavam o ambiente e cortavam o silêncio. Finalmente, o relógio-cuco soou meia-noite, trazendo-o de suas divagações momentâneas. Aquilo o apressou a ir se deitar.

            Perto da janela, no entanto, ele viu um vulto.

            Ótimo. Um assaltante se aproveitando de uma tempestade.

            Embora não fosse adepto do uso de armas de fogo quando em sua plena forma detetivesca, Holmes estava mudando seus conceitos, pois desde que mudara para Sussex Downs ele sempre deixava perto de si um revólver. Por isso, ele se aproximou, já de arma em punho, pronto para o que quer que fosse.

            Talvez, não tão pronto quanto pensava.

            -Você?

            Grigori estava recostado à janela, completamente molhado e sujo de barro. Estava visivelmente trêmulo, bem diferente do rapaz da cidade que Holmes conhecera há algumas horas atrás. Apenas sua mão tentava bater na janela, com esforço. Estava escur, mas ainda assim era visível ver o desespero do menino em querer entrar. Sem qualquer hesitação, o detetive pôs o revólver no bolso, não querendo deixa-lo mais assustado ainda – embora uma mera arma de fogo não fosse lá algo amedrontador para um menino que vivia nas ruas e provavelmente já vira o pior da vida.

            -O que houve?

            -Um homem, sir. Há um homem atrás de mim.

            Não pode ser. Quebra-Ossos está preso. Eu mesmo o vi atrás das grades!

            -Está bem... – disse Holmes, abrindo a janela e arrastando Grigori pelas costas, trazendo-o de volta à sua casa.

            Ele arrastou Grigori para dentro da casa, não sem deixar alguns objetos a cair pelo caminho, fazendo barulho pela casa. Quando colocou o menino sobre um dos sofás, Mrs. Morton apareceu, obviamente alarmada pela incomum movimentação àquela hora da madrugada.

            -Ouvi barulho... O-O que está acontecendo, Mr. Holmes? Ele é um assaltante?

            -Não exatamente...  Bom, até poderia ser, mas creio que não é. – disse, enquanto o rapaz soltava uns granidos de dor. – Mrs. Morton, por favor acende a luz...

            -Não! Não, Mr. Holmes, ele saberá que estou aqui! – desesperou-se o jovem. Holmes suspirou, indo verificar cuidadosamente pela janela para assim tentar entender o que estava acontecendo.

            Embora a tempestade deixasse a visão nebulosa, Sherlock pôde ver, ao longe, um homem a caminhar, próximo dali, munido de lanterna. Havia um objeto em sua mão, que Holmes ainda não tinha certeza se era uma pistola. Os raios fizeram o objeto cintilar levemente, e logos as suspeitas do detetive se confirmaram. Havia um sujeito armado lá fora.

            Com seu revólver em mãos, Holmes decidiu enfrentar a forte chuva que caía, atrás do homem que cometera a ousadia de invadir sua propriedade. Por mais que as circunstâncias fossem perigosas, o interesse de Holmes não era apenas eliminar aquela aparente ameaça, mas entender o que ele queria com Grigori, a ponto de pular cercas alheias em plena tempestade atrás de um moleque de rua.

            A tempestade forte provocava uma verdadeira cortina, atrapalhando a visibilidade, mas Holmes ainda era capaz de enxergar o invasor. Ele trazia nas mãos uma pistola, como já previra o detetive. Disposto a surpreendê-lo, Holmes caminhou sorrateiramente até ele, se aproveitando da verdadeira cortina nebulosa de água provocada pela chuva intensa daquela tempestade. O invasor, entretanto, tivera tempo de reagir, entrando em luta corporal contra Holmes. Ainda que estivesse aposentado há algum tempo, Holmes pôde lutar de igual para igual contra o sujeito, que parecia estar na casa de seus quarenta anos.

            A luta não foi fácil. A chuva não dava trégua, e a escuridão tornava tudo mais complicado. Após socos e chutes, Holmes e o intruso acabaram atracados no chão, lutando em meio à grama e à lama. Já arfando de cansaço, o detetive finalmente conseguiu conter o sujeito, que incapacitado por uma chave de braço, acabou por desferir um palavrão, em alemão.

            -Então, já sei que o senhor é alemão, tem quarenta e dois anos, contraiu pneumonia recentemente e tem uma boa situação financeira. – disse Holmes, enquanto detinha firmemente o intruso, deixando-o catatônico. – Pergunto-me aqui se acaso não seja o famoso Werner Boehl.

            O alemão começou a rir.

            -Parece que o boato era mesmo verdadeiro, então. – disse o sujeito, em um inglês carregado de forte sotaque alemão. – O grande Sherlock Holmes foi viver em meio às vacas e ovelhas de Sussex.

            O comentário apenas deu mais força ao golpe, fazendo o alemão grunhir.

            -O que um homem como você poderia querer com uma criança?

            -De que criança você está falando? Daquele moleque russo pulguento?

            Um pouco mais de força aplicada sobre o braço de Boehl foi a resposta positiva de Holmes.

            -Se pretende quebrar o meu braço, ao menos o faça de forma eficiente! – disse, após mais alguns palavrões em sua língua nativa.

            -O que quer com o menino? Por que estava atrás dele?

            -Solte-me. Solte-me e vou te contar. – disse, com os dentes rangendo.

            -Sua oferta é tentadora. Mas não posso fazer isso. – disse Holmes.

            -Como queira, Mr. Holmes.

             Holmes sabia o que Boehl estava prestes a fazer. Um homem como aquele não andava completamente desprevenido. Decerto ele tinha um trunfo na manga, o que fez o detetive passar a aplicar força não mais no braço, mas em uma região sensível do pescoço do sujeito, provocando um desmaio instantâneo. E como ele imaginava, as mãos de um desmaiado Boehl acabaram por deixar cair sobre a grama uma pequena faca, que provavelmente seria desferida em sua coxa.

            Levantando-se, Holmes notou que o sujeito estava pálido. Levando dois dedos em direção ao pulso do homem, o detetive tentava verifica-lo. Sem pulsação. Ele estava morto.

            Parece que subestimei o seu real estado de saúde.

            Lamentando que não tivesse obtido de Boehl os questionamentos que queria, Holmes arrastou o cadáver do sujeito para dentro, deixando-o no estábulo. Como formas de se precaver, trancou o local com um cadeado e corrente forte. Amanhã, não chamaria a polícia, mas acionaria alguém do Governo. Apenas Mycroft seria capaz de limpar essa bagunça devidamente, com discrição necessária que a Yard jamais conseguiria.

            Voltando para casa, Holmes arrancou suspiros de pavor de sua senhoria, Mrs. Morton. O detetive já imaginava que estava em um estado deplorável, de modo que as reações da idosa eram completamente esperadas.

            -Mr. Holmes, o que houve?! O canto de sua boca está sangrando, suas roupas estão completamente molhadas e encharcadas de lama...

            Holmes riu, tentando tranquiliza-la. Sem dúvida, Mrs. Morton parecia a mais perfeita reencarnação da finada Mrs. Hudson.

            -Não se preocupe, nada de grave aconteceu. Já está tudo resolvido. – ele disse, voltando-se para Grigori. – Ah, e Mrs. Morton, eu recomendo que a senhora não vá até os estábulos, porque um conhecido meu fará uma... Limpeza por ali. Parece que há uma infestação de ratos por lá.

A senhoria se assustou. Holmes sorriu, disfarçadamente, pois sabia que Mrs. Morton, assim como a maioria das mulheres, tinha um grande pavor à ratos. Ele duvidava agora de qualquer intromissão da governanta no local onde estava o corpo de Boehl, o que o deixava mais tranquilizado. Por mais que Mrs. Morton soubesse que Holmes era “O” Holmes das histórias de Conan Doyle, o detetive não estava disposto a forçar sua pobre senhoria aos dissabores de sua antiga profissão.

—Por favor, leve o rapaz ao quarto de hóspedes. – pediu Holmes.

            A senhoria obedeceu, amparando o menino, que estava ferido, e o ajudando a subir as escadas. Quando o menino passou perto de si, o detetive fez uma observação.

            -Ah, e prepare uma banheira também.

            Grigori franziu o cenho, visivelmente insatisfeito com a ordem.

            Estando em seu quarto, já com o ambiente iluminado, Holmes se analisou no espelho e entendeu a reação de Mrs. Morton. Ele estava realmente em um estado deplorável. Seu pijama estava coberto de lama e com vestígios de grama. Nem mesmo o seu rosto tinha escapado ileso e limpo do confronto com o mercenário alemão. Suas pantufas também precisavam de uma boa lavagem.

            Já mergulhado na banheira, aproveitando o conforto da água quente, Holmes refletia a respeito do estranho desenrolar dos recentes acontecimentos. O que Grigori fazia aqui, tão longe da cidade? E o que este criminoso internacional de renome poderia querer com um moleque de rua como ele? Talvez a presença de ambos não esteja completamente conectada. Este alemão que Mycroft queria que eu localizasse poderia estar atrás de mim, e não de Grigori. Não faz sentido algum. O que um moleque de rua analfabeto poderia interessar a um dos homens mais procurados da Inglaterra?

            Primeiro, Quebra-Ossos. Depois, Werner Boehl. Será que há alguém atrás de mim?

            Holmes respirou fundo, antes de fazer uma última imersão na banheira. Quem quer fosse, ele iria enfrentar. Mesmo que estivesse aposentado, Holmes ainda se sentia hábil a enfrentar eventuais ameaças, e no fundo, estava esperando por elas. Desde que começara sua carreira como detetive consultor, Holmes sabia que faria muitos inimigos. E sua aposentadoria jamais amoleceria o coração de todos que ele prejudicara. Ele só esperava não ferir pessoas próximas a si, que nada tinham haver com as consequências de sua carreira.

            Instantes depois, estando já devidamente limpo, Holmes se dirigiu ao andar de cima de sua casa. Encontrou a porta do quarto de hóspedes semiaberta e o garoto sendo cuidado por sua senhoria. Agora, que tudo estava iluminado, ele pôde ver a extensão dos ferimentos de Grigori. Ao que indicava, tinha entrado em um combate corporal com o alemão. Havia de visível apenas um pequeno ferimento em sua bochecha, mas o seu tórax estava com alguns hematomas roxos, assim Holmes pôde notar antes que Grigori abotoasse sua camisa.

            -Poderia me contar o que está acontecendo? – ele perguntou, no limiar da porta, após a saída de sua senhoria.

            -Eu não sei, sir. Desde que você me ameaçou levar à polícia, eu...

—Espere. – interrompeu Holmes. – Eu não queria te prender.

O menino deu de ombros. – O senhor, talvez não, sir. Mas o delegado, eu acho que sim. Afinal, ele sabe que fui eu quem colocou bolinhas de gude na saída da delegacia...

Holmes arregalou os olhos.

—Vo-Você o quê?! Grigori! Por Deus, isso foi erradíssimo!

O menino ria sozinho. – Foi bem engraçado, sir, ver aquele balofo rolar pela calçada.

Holmes tentou suprimir um riso. – Continue.

—Bom, sir, eu corri do beco e embarquei o mais rápido possível em uma carroça qualquer, que parou em um vilarejo aqui perto. Pensei que o perigo tivesse passado, então caminhei pela estrada de volta à cidade, até que começou a chover e me abriguei em um estábulo e cochilei, até que notei alguém se aproximando, sir. Vi pela sombra que era um homem com uma pistola e corri. Ele me alcançou e tentou me bater com a coronha da pistola, sir, mas eu consegui escapar, só que levei alguns socos porque mordi a mão dele para me libertar, sir. Bem, eu peço desculpas, sir, mas eu nem mesmo sabia que você morava aqui, sir.

            Holmes ergueu uma sobrancelha, em pesar. Dificilmente um sujeito como Boehl, acostumado à sofisticação do submundo do governo e da diplomacia, poderia querer qualquer coisa com um moleque que terminava todas as suas frases com um irritante “sir”. Parece que Grigori teve apenas o infortúnio de estar em seu caminho.

O rapaz bocejou, repentinamente.

            -Tudo bem. Deixarei você descansar. Amanhã conversamos.

            Amanhã, terei uma conversa séria com esse rapazinho.


ЖЖЖЖЖЖЖЖЖЖЖЖ


            Holmes levantou-se perto das sete da manhã, o que não foi nenhum sacrifício, mas algo costumeiro agora. Seus hábitos tinham se alterado drasticamente, se comparado às suas antigas maneiras boêmias londrinas. Já devidamente vestido, ele saiu de seu quarto e decidiu ver como tinha se comportado seu hóspede inesperado.

            A porta do quarto de hóspedes estava destrancada, de modo que era possível ver o que estava acontecendo pela fresta. Foi, portanto, uma surpresa ver o garoto caído sobre o chão, ao invés de deitado à cama como uma pessoa normal, dormindo pesadamente, com apenas uma coberta cobrindo-lhe o corpo. Um leve roncar era possível de se escutar.

            Um tanto sensibilizado, Holmes decidiu retirar o menino do chão frio e coloca-lo na cama. Aproximou-se dele e o fez, com cuidado para não acordá-lo. Por sorte, o menino tinha um sono pesado.

            Ele observou o rapaz dormindo pesadamente, de modo desajeitado, sobre a cama. Como teria sido, afinal, seu filho com Esther? À essa altura, se essa criança estivesse mesmo viva, teria doze anos. Os dois teriam idades próximas. Será que ele seria mais parecido com Esther? Ele sabia que o bebê tinha herdado seus cabelos loiros, mas e quanto ao resto? Seriam seus olhos verdes, como os da mãe, ou teria herdado sua teimosia? Ou teria se saído mais parecido a si, com os olhos cinzentos e com a mente perspicaz? De qualquer modo, aquele menino deitado sobre aquela cama, de olhos azuis e cabelo negro, meio ondulado, lhe despertava suposições. Talvez, o que tivesse faltado em seu casamento com Esther era uma criança. Uma criança que ambos se negaram a ter novamente, tomando todas as precauções possíveis para não concebe-la. No fundo, não se sentiam no direito de ter outro filho com outro desaparecido. Um filho não substitui o outro, assim dizia ela.

            -Mr. Holmes? – era sua senhoria, Mrs. Morton. – Aqui estão as roupas do menino.

            Holmes olhou para aquele trapo sobre as mãos de sua senhoria.

            -O que faço com elas? Devo lavá-las?

            -Acho melhor dar um fim a elas, Mrs. Morton. A senhora fez um bom trabalho ajustando as roupas do filho de Mr. Simpson para o rapaz, mas creio que seria melhor que ele tivesse roupas novas. Aqui. – disse ele, retirando sua carteira. – Compre novas roupas para ele. Pode ser usadas, mas traga algo que sirva nele.

            A senhoria estranhou o comportamento de Holmes, mas obedeceu às suas ordens sem fazer objeção ou qualquer comentário.

            -O café está pronto. Mais tarde, trarei o seu jornal.

            -Obrigado, Mrs. Morton. – disse Holmes.

            Holmes estava tomando café, quando Grigori adentrou ao cômodo, vestindo uma camisa que parecia engoli-lo e calças que poderiam caber dois de si. Apenas os sapatos eram os mesmos.

            -Olhe, mas quem acordou! Mr. Grigori...? Er... Qual é o seu sobrenome?

            -Não tenho, sir.

            Oh não, esse maldito “sir” de novo não...

            -Nem mesmo algum patronímico? E por favor, não me chame de Sir o tempo todo. – disse Holmes, bem-humorado.

            O menino estranhou. – Como você conhece o meu país tão bem assim?

            -Digamos que tenho meus motivos. – contornou Holmes, evitando mencionar Esther. – Mas então?

            -Não. Meu pai era um bêbado que não quis se casar com minha mãe, por isso não sou registrado.

            -E onde está sua mãe agora?

            -Morta. Assim como aquele bêbado do meu pai.

            -Irmãos?

            -Tenho nove.

            Holmes quase engasgou-se com o café.

            -Sua família é bem numerosa, Mr. Grigori. Mas afinal, quais motivos te fizeram abandonar o seu país?

            Grigori, que já comia os biscoitos avidamente, respondeu.

            -Não é preciso muito para querer abandonar aquele país, sir. Há fome, violência e revoltas por toda parte, além de um Czar cercado de ouro enquanto o país está sendo dizimado.

            -Vejo que não gosta do Czar.

            -Se não sou nobre, não gosto do Czar. Essa é a regra por lá.

            Holmes olhava satisfeito. – Você é um rapaz muito inteligente para sua idade, Mr. Grigori. Posso chama-lo apenas de Grigori? Ótimo. Bem, como eu disse, você é esperto, mas ainda não compreendo como um menino pobre e estrangeiro aprendeu o meu idioma tão bem... Porque eu diria que não estás aqui nem mais que um ano, a julgar pelas suas vestimentas, ainda de fabricação russa, e seu sotaque.

            O rapaz pareceu se retrair.

            -Bem, dei meu jeito e aprendi, sir. Não pode me julgar por ter dado no pé daquele país.

            -Hm...

            “Dado no pé”. Apenas americanos falam com esse tipo de gíria. Sem dúvida, foi um americano que lhe ensinou o inglês.

            -E o senhor, sir? Como aprendeu as coisas de meu país?

            Holmes teve a mesma postura que Grigori. Esse assunto era uma ferida aberta, na verdade.

            -Acabou por acontecer, em uma época distante em minha vida. Mas voltando a você... – disse Holmes, contrariando a curiosidade do menino. – Invadiram seu esconderijo, já presenciei ameaças veladas a você... Parece que está bem encrencado e indesejado por aqui. Já tem algum idéia do que fazer?

            O menino terminou de beber seu copo de leite e nada disse.

            -Foi o que eu pensei.

            Repentinamente, a campainha da casa tocou. Certamente, era Mrs. Morton, esquecida de alguma coisa, como vez ou outra acontecia. Holmes retirou-se da mesa e foi ver o que era.

            -Mr. Holmes, eu voltei porque me esqueci de retirar as medidas do rapaz... Gregory, não é?

            -Grigori. – corrigiu Holmes, permitindo sua senhoria adentrar. – Bem, vamos medi-lo, pois eu tenho certeza de que...

            Holmes silenciou-se imediatamente, ao perceber que não havia mais ninguém na mesa de café da manhã.

            -Acho melhor eu começar a verificar se algo está faltando. – disse Mrs. Morton, já compreendendo a natureza da situação.

            Holmes caminhou até a mesa do café, e viu o copo de leite já vazio. Praticamente toda a comida na mesa tinha sido levada pelo garoto. Não havia nenhum outro objeto faltando, mesmo os talheres de prata utilizados. Talvez o garoto só quisesse alimento e uma noite segura para dormir. Ele não deveria ter acesso a esse tipo de coisa na vida que costumava levar.

            Ele suspirou. Pobre garoto. Será que é tão imaturo e inconsequente para não compreender os perigos que lhe cercam? Pare com isso, Holmes! Não há porquê se preocupar. Esse menino já deu mostras de que está acostumado a ter o pior da vida. Ele saberá o que fazer.

            Além de quê, era hora de arrumar suas coisas. Ele precisava fazer uma viagem à Londres, marcada para as onze. E ainda precisava deixar um telegrama aos homens de Mycroft, para que o corpo de Boehl fosse “retirado” de sua propriedade o mais rápido possível, antes que alguém o encontrasse.


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Notas finais do capítulo

Bom, esse menino não é fácil! Acho que é por isso que ele está exercendo tamanho fascínio no Holmes. Dá para ver que o detetive está um tanto abalado, comovido, provavelmente pelas memórias frescas do que aconteceu a Wiggins, ou mesmo a seu filho com Esther. Vamos ver se Grigori será capaz de derreter um pouco o coraçãozinho de pedra do Holmes.

Mais uma vez, obrigada pelos reviews, e pela boa recepção da história. Também estou amando ler as teorias!! Um forte abraço e até o próximo cap!



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