Tive um sono tranquilo, tranquilo demais. Não tive sonhos como costumo ter. Foi só um descanso silencioso e sereno. Abro meus olhos que estão ainda sonolentos e a primeira coisa que vejo é a janela grande de vidro salpicada de pingos de chuva. O céu está pintado com uma coloração cinza escuro. Isso faz com que eu me pergunte que horas são.
Levanto-me da cama com cuidado e olho para ela. Me surpreendo ao ver que ele ainda está ali, dormindo e imóvel. Seu rosto está tranquilo.
Vou até a janela andando descalça e vejo que lá embaixo o movimento de carros na avenida é constante e ainda há postes com as luzes ligadas. Volto para perto da cama e abaixo-me para pegar meu celular que está no chão. São oito e meia da manhã. Eu não esperava acordar cedo assim em um sábado, mas eu me sentia descansada.
Saio do quarto com cuidado para não fazer barulho e fecho a porta, deixando uma pequena brecha aberta e vou para o banheiro.
Prendo meu cabelo em um coque despojado e lavo o rosto com a água gelada. Está claro que o tempo já está começando a mudar e em duas semanas já estaremos entrando no outono, minha estação favorita. Escovo os dentes e enxaguo a boca. Seco meu rosto com a toalha branca e penso em tirar uma toalha de banho do armário presente ali no banheiro ao lado do box de vidro do chuveiro e a deixar  pendurada caso Kyle queira tomar um banho.
Saio do banheiro e vou para a pequena cozinha. Dou uma espiada na sala pelo balcão de granito preto. Tudo está tão arrumadinho do jeito que eu deixei ontem antes de sair para a aula.
Pego o pó de café que guardo na geladeira e coloco algumas colheres na cafeteira. A ligo na tomada e abro o armário para pegar a metade de um bolo de chocolate que eu havia comprado em uma padaria. Coloco em cima do balcão em um prato raso e há pãezinhos franceses em uma cestinha feita de palha.
Sento-me na banqueta preta do lado de dentro da cozinha e fico olhando para a janela grande de vidro que vai do chão até o teto. É um ótimo dia para ficar em casa, mas ainda tenho que sair e comprar algum presente para Chloé.
Suspiro alto e apoio meus cotovelos em cima do balcão preto. Há uma revistinha de caça-palavras e eu decido tentar fazê-la enquanto o café não fica pronto.
Dou uma lida na primeira informação. Seriado cômico dos anos 90. Indicado a muitos Emmys. Jennifer Aniston fez parte do elenco. Sete letras.
Reviro os olhos. Qualquer um acertaria aquela. Friends é óbvio.
O cheiro de café invade minhas narinas e eu me levanto da banqueta. Pego uma caneca branca e a encho até a metade.
Quando olho para o lado, vejo Kyle olhando ao redor em frente a porta do quarto. Seu cabelo está mais desgrenhado do que nunca e sua roupa um pouco amassada. Posso ver a tatuagem de andorinha saindo da gaiola em seu peito. Sua camiseta branca realmente tem um pano muito fino.
Ele olha para mim e eu forço um sorriso sem mostrar os dentes. Pego outra caneca, esta vermelha, e encho também até a metade de café.
–Como está se sentindo? - pergunto olhando para ele e estendendo a caneca vermelha com café fumegante. A fumaça que sai da caneca na minha mão faz desenhos abstratos no ar.
Ele anda até mim e pega a caneca da minha mão.
–Obrigado. - Kyle leva a caneca até a boca rosada e suspira fechando os olhos.
–Você quer um analgésico pra dor de cabeça? - pergunto enquanto ele dá a volta para se sentar na banqueta do outro lado do balcão, na sala.
–Sim, por favor. - sua voz está rouca, o que mostra que ele acabou de acordar de muitas horas de sono.
Pego um frasco laranja com tampa branca de analgésicos que está em cima do balcão e entrego um a ele. Kyke olha para minha mão e pega o comprimido branco em forma de lactobacilos. Leva até a boca e toma alguns goles de café.
Me sento na banqueta onde estava sentada antes e olho para o menino de cabelos vermelhos a minha frente. Ele olha para mim.
–Desculpe, não lembro muito do que aconteceu ontem. Mas, obrigada por me trazer até aqui. Você não precisava.
Dou de ombros.
–Está tudo bem.
–Não está, não. Eu... Gritei com você. - ele franze o cenho e parece mais uma pergunta do que uma afirmação.
–Está tudo bem, Kyle. Como está sua mão?
Ele franze o cenho como se minha pergunta fosse absurda e olha as duas mãos. Consigo ver que em volta do corte grande pela palma de sua mão direita, está um pouco vermelho.
–Ah... Não me lembro muito dessa parte.
Dou de ombros.
–Não foi nada demais. Come alguma coisa. - digo. - Não tem nada de especial, mas... - dou de ombros.
Ele balança a cabeça negativamente.
–Está ótimo. - olha para mim finalmente, acho que está com um pouco de vergonha por não se lembrar do que acontecera na noite anterior. - Seu apartamento é muito bonito.
Sorrio.
–Obrigada.
–Faz o meu parecer um chiqueiro.
Reviro os olhos.
–Não faz, não. Não seja idiota e come alguma coisa antes que eu enfie esse bolo a força na sua boca.
Ele sorri e assente com a cabeça. Corta um pedaço grosso do bolo de chocolate e leva até a boca. Dá uma mordida e mastiga lentamente de olhos fechados.
Reprimo um sorriso ao ver aquilo.
–Então, - pigarreei - o que aconteceu?
Ele abre os olhos e olha para mim. Fica olhando para mim demorados segundos, talvez quase meio minuto antes de falar:
–É bem complicado, Alice. Não é só um motivo.
Levo a caneca até a boca.
–Você quer conversar sobre isso? - pergunto com cautela olhando para seu rosto.
–Não. - ele se apressa a dizer e acho que vê meu desapontamento no rosto. - Digo, não se preocupa. Não é nada demais.
Sei que ele provavelmente está mentindo. Mas apenas dou de ombros porque não quero forçá-lo a falar nada.
– Tudo bem. - digo.
–Desculpa arruinar seu encontro com aquele cara todo engomado ontem.
Sorrio.
–Sente mesmo?
–Na verdade, não.
Aquela resposta me surpreende.
–Ah... De qualquer forma, não era um encontro.
–Ah. - ele diz e corta mais um pedaço de bolo.
Fico olhando para ele enquanto ele leva a caneca de café até a boca mais uma vez.
–O que vocês estavam fazendo no Dangerous Woman ontem? - pergunto.
– Chloé queria beber alguma coisa e estávamos por perto. Então decidimos parar lá para beber uma cerveja e... Acabamos ficando para apreciar o seu... Show.
Sinto minha cara queimar. Com certeza estou ficando vermelha.
–Não foi um show. Foi a primeira vez e não pretendo subir lá de novo. - coloco as mãos nas minhas têmporas.
–Eu não vou te incentivar a subir lá de novo, mesmo que você seja muito boa.
Franzo o cenho e tento ignorar as palpitações no meu coração pelo fato de ele dizer que acha que sou boa.
–Por que?
–Tinha muitos caras te olhando.
Meu coração dispara ainda mais. Engulo em seco.
–E daí?
Kyle e eu nos encaramos. Estou esperando uma resposta dele, mas ele apenas me olha e depois balança a cabeça.
–A escolha é sua.
Não falo nada, ao invés disso, levanto-me para pegar uma maçã verde na geladeira.
–Onde Matt foi ontem?
–Não faço a mínima ideia.
–Ah.
Silêncio novamente.
–É esquisito. - digo depois de algumas mordidas na maçã
–O que?
–Estarmos... Nos falando de novo. - dou de ombros. - Achei que você nunca mais falaria comigo.
Kyle suspira e se levanta da banqueta. Eu estou encostada na pia. Ele contorna o balcão de granito e para a minha frente. Coloca a caneca de café vazia dentro da pia de inox, olhando para o meu rosto. Quase posso sentir sua roupa roçando contra a minha.
–Eu não disse que nunca mais falaria com você, Alice. - ele continua a me fitar. - Só acho que seria inteligente da sua parte se você se afastasse de todos nós. Até mesmo de Chloé, apesar de ela ser uma boa garota.
–E por quê?
Ele sorri de lado.
–Além do óbvio? Além de não termos praticamente nada em comum com você, eu não sou boa companhia. Não para alguém como você.
–Como eu sou Kyle? - cruzo os braços olhando para seu rosto. - O que tem de tão errado comigo?
Ele sorri e segura meu queixo com o dedo indicador e o polegar. Me esqueço de respirar
–Nada. E é exatamente por isso. Todos nós somos fodidos, você não. E você não deveria se envolver com pessoas como nós.
Meu coração está disparado e suas palavras me machucam. Não por causa de seus amigos, mas por causa dele. E ele está tão perto de mim, segurando meu queixo e me fitando com aqueles olhos verdes...
O celular em seu bolso começa a tocar e eu olho para meus pés. Meus sentimentos estão estampados na minha cara e eu odeio isso. E sei que ele já percebeu.
O telefone continua a tocar mas ele não faz menção para antender.
Olho para seu rosto novamente e ele balança a cabeça lentamente e negativamente.
–Acho que não vou poder fazer nada para me afastar de você. E nem quero.
Antes que eu possa dizer algo ou até mesmo digerir o que ele falou, Kyle encosta os lábios carnudos e macios nos meus. Dessa vez eu não tento empurrá-lo ou bater nele.
Suas mãos estão nas minhas costas e seus dedos apertam-me de leve. Minha cabeça está girando e estou perdendo o fôlego.
Sinto suas mãos pegarem minhas coxas e ele me coloca sentada em cima da pia de inox. Sua boca volta a encostar na minha e minhas mãos estão segurando seu rosto com delicadeza.
O empurro de leve quando seu celular começa a tocar novamente.
–Caralho. - ele sussurra e pega o telefone  do bolso da calça jeans.
Consigo ler o nome na tela de cabeça para baixo.
Lara.