O Bruxo da Capitania São Vicenzze escrita por Vultor


Capítulo 4
Um mês antes




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Tulk engoliu a saliva. Ele observava o chefe da expedição derramar um produto alquímico sobre uma caveira. Persignou-se.

São Berenim, matador de dragões e curandeiro dos pobres, me proteja.

Aquela floresta estava morta. Não que as árvores e plantas estivessem degradadas, muito pelo contrário, suas cores eram vivas e vibrantes. A sensação vinha da ausência de animais. Nenhum mosquito, ou sapo, ou pássaro podia ser avistado. Ouvia-se apenas o lamentar do vento e o gotejar do líquido sobre a caveira. Cada pingo produzia uma fumaça preta que subia para o céu nublado.

Macumba dos infernos.

O crânio era parecido com o de uma pessoa. A única diferença era a parte superior: mais fina e alongada. Estava no chão, posicionado em um círculo coberto de linhas estranhas.

Tulk virou o rosto para Flynn. O rapazote descascava uma laranja despreocupado. Era bem-apessoado e de sorriso fácil. Bolok era um homem mais velho, usava boina e era loiro até na barba. Diziam que ele queria deixar um dinheiro para a neta. Por fim, Valom, o chefe da expedição: grande e gordo.

— A barreira foi eliminada. Confiram suas armaduras e carreguem os trabucos. Atacamos em meia hora. Novato, se você sair da formação, eu te mato — disse o chefe, encarando Tulk.

O jovem assentiu com a cabeça. Fora escolhido para entrar naquela equipe após vencer algumas lutas de boxe. A verdade é que ele não tinha muita experiência com espadas e escudos, mas era durão. Esperava que bastasse.

Os três defenderiam Flynn enquanto este atiraria flechas nas criaturas. Os boatos diziam que os monstros atacavam em grande quantidade com paus e pedras. Tulk ouviu que elendils eram malignos por natureza. Os bichos, sabe-se lá como, faziam com que as pessoas se virassem umas contra as outras.

— Se você tentar alguma gracinha com as fêmeas, dirá adeus a essa coisa pequena que tem entre as pernas — disse Bolok entre tragadas de charuto.

— Se eles te capturarem, vão te amarrar em uma árvore e comer sua carne crua enquanto você grita — continuou Flynn.

— Se o da cartola de penas te pegar, vai fazer seus olhos caírem com apenas uma palavra — completou Valom.

— Se! — respondeu Tulk, em desafio.

Valom bufou e Bolok reacendeu o charuto.

— É dessa confiança que precisamos, novato — disse Flynn.

***

Quando se aproximaram da toca dos elendils, Tulk pôde ouvir uma música. Palavras melodiosas dançavam entre as árvores, estalos gentis de harpa harmonizavam a canção e produziam uma sensação de alegria no jovem. Ele se lembrou da infância, uma época de paz e brincadeiras. Lembrou-se de seu amor, Thalissa, e os elogios que ela fazia do seu nariz: “parece uma corveta”, ela dizia. Mas aquele maldito pai dela proibiu o casamento. Disse que Tulk era muito pobre para sua filha. O jovem esfregaria o dinheiro na cara do velho quando tudo aquilo acabasse.

— Foco — resmungou o chefe. — Estamos chegando.

Flores de diversas formas e tamanhos cobriam aquela região da mata, o aroma era inebriante e delicioso. Tulk estava começando a ser levado pela tranquilidade do local. Quase deixou o escudo baixo quando as primeiras pedras vieram. Não eram grandes, não eram muitas, mas poderiam machucar.

Flynn já havia começado a atirar nas criaturas, ainda distantes. Tulk observou a direção dos projéteis e quase soltou a espada curta. As fêmeas elendil eram as criaturas mais maravilhosas que ele havia visto na vida. Tirando a orelha pontuda, pareciam humanas. Possuíam o corpo esguio e seios generosos à mostra. A pele era cor de oliva, uma cor que as mulheres conseguiam apenas com produtos alquímicos e horas sob o sol.

Tulk sentiu um forte empurrão, seguido pelo contato de um líquido quente no pescoço. Valom havia eliminado um elendil macho.

— Acorda, novato, porra!

O jovem percebeu que estavam cercados. Flynn atirava como um louco, enquanto os outros defendiam e estocavam. Tulk lembrou das histórias sobre os elendils, e sua adrenalina disparou.

Eu não quero morrer.

O jovem brandiu a espada com toda a força que possuía. Estocava e cortava.  Foi empurrado, mordido e atingido por uma pedra, mesmo assim continuou. Percebeu que estava gritando.

Cansou, seus braços e pernas amoleceram, sentiu sede. Quando foi derrubado, havia um gosto de sangue em sua boca, pensou que seria seu fim. Mas os companheiros permaneciam de pé, golpeando, defendendo e lançando projéteis. Os machos elendil eram pouco agressivos, um tapa na orelha era suficiente para que se retirassem do combate. Pareciam os fracotes  nos quais Tulk batia quando era criança.

Um som nefasto rasgou os tímpanos do jovem. Parecia um arranhar de lousa, um grunhido monstruoso que acordava pavores primevos. Sem perceber, Tulk estava em posição fetal. Uma silhueta cheia de chocalhos surgiu de dentro de uma toca. Era tão bela quanto as outras fêmeas, mesmo com as rugas na face. A cartola de penas era firmada com uma faixa de cipós e não tinha cobertura. Portava um cordão de ossos em volta de um dos seus braços. Na outra mão, havia um cetro de madeira com uma joia brilhante na extremidade. Ela fitou o grupo com um olhar penetrante e, em seguida, começou a pronunciar palavras em um idioma estranho.

Valom retirou a pistola do coldre e disparou um tiro seco. O cheiro de pólvora preencheu o ambiente. A bruxa foi atingida no peito e voou de volta à toca.

— Bolok, venha me ajudar com o alvo. Flynn, fique de guarda. Novato, levanta, porra!

Esses animais humanoides pariam uma vez a cada dez anos. Tulk não fazia ideia de como o grupo sabia a hora e o lugar desse evento.

O jovem levantou com dificuldade entre os cadáveres. As flores haviam sido pisoteadas. As tocas foram pintadas com sangue. Gemidos em um idioma desconhecido mesclavam-se ao choro de um bebê.

Tulk só queria vomitar.


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