O Bruxo da Capitania São Vicenzze escrita por Vultor


Capítulo 3
Dias antes




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Rose observou um idoso acender a lamparina do último poste. Riordam havia modernizado nesses dez anos que ela esteve fora, pelo menos ali, na região nobre.

A mansão do procurador, Malek Bencrof, podia ser vista atrás de um grande portão de metal. Era uma construção de três andares no estilo Huskano. Uma opulência que havia sido obtida através do sofrimento de gente inocente. Rose armou o rifle de longo alcance, persignou-se e olhou pelo telescópio.

Essa farra acaba hoje.

A mercenária respirou o ar frio daquela noite sem estrelas. Já passava das dez, havia pouco sinal de movimento no interior da casa e nenhuma carruagem podia ser avistada.

Bencrof estava atrasado.

O disparo veio pelas costas. Ela cambaleou e viu uma névoa branca formar-se ao seu redor. A noite calma foi preenchida com o som de vazamento de gás.

Um dos seus cilindros fora atingido por um tiro.

Rose reagiu rápido, aproveitou o impulso para ir do beco à avenida principal, escapando do cone de visão dos prováveis perseguidores. Ela abriu a válvula do cilindro danificado e segurou uma das pequenas alavancas laterais. A despressurização súbita permitiria um chute poderoso. A mulher esperava que fosse suficiente.

Não demorou até um homem sair do beco em disparada. Esse foi pego de surpresa. Rose sentiu a perna metálica atingir o estômago do adversário. A mulher escutou ossos trincando enquanto observava o antagonista ser arremessado a mais de seis metros.

Mas havia um segundo. O oponente esbarrou na mercenária, parecia não achar que uma mulher teria coragem de os enfrentar. Eles trocaram socos, chutes e rolaram nos paralelepípedos frios. Rose conseguiu prender o pescoço do homem e começou a estrangulá-lo, mas ele reagiu rodando a válvula do cilindro cheio e puxando algumas alavancas. O ato fez com que as pernas metálicas se debatessem sem controle. Rose largou o adversário e o gás esfregou a cara dela no chão.

Quando conseguiu estabilizar o aparelho, estava encostada em uma casa. A lateral da sua face queimava como fogo, um dos seus olhos enxergava apenas escuridão e o gás havia acabado. Tudo que a mantinha em pé era aquele muro seco.

Com o olho bom ela viu o oponente. Não passava de um rapazote. Estava com os punhos fechados e se aproximava com velocidade. Rose levantou os braços a tempo de se proteger de uma porrada na cabeça. Seu mundo tremeu e um zumbido surgiu no fundo do ouvido.

Não parou aí.

— Toma, sua desgraçada!

Ele começou a socar: na cabeça, no ouvido, na barriga. Rose protegia os pontos vitais da melhor forma possível.

Lembrou-se do seu filho sendo arrancado dos seus braços por um monstro sem forma. Lembrou-se dos golpes que deu na criatura enquanto suas próprias pernas eram devoradas e pedaços de seu bebê escorriam pela bocarra do monstro. Aquilo sim era dor.

O jovem disse, em desafio:

— Eu posso aceitar muitas coisas nessa vida, mas apanhar de mulher não é uma delas.

A bravata soou vazia. Ele ofegava, um dos socos resvalou. Pugilato não se tratava de bater forte, o que importava era o quanto você podia suportar antes de cair.

— Meu ex-marido falava a mesma coisa.

A mercenária defendeu um dos golpes e acertou uma cotovelada no queixo do oponente. Antes que ele recuasse, ela agarrou a aba do terno e o puxou para si, posicionando um soco no centro do nariz. E outro, e outro. A mulher descarregava suas frustrações. A roupa e o chão inundavam-se de sangue. O antagonista já havia desmaiado, mesmo assim ela golpeava, soco atrás de soco.

Rose só parou quando ouviu o apito da polícia. Ela soltou o rapazote, abaixou a cabeça e apagou.

***

— Bolok Selmor, quarenta e seis anos. Seis costelas quebradas, lesões graves no braço direito e fraturas no crânio com extensão desconhecida. Tulk Itamaracá, dezenove anos, escoriações nos braços, marcas de estrangulamento e nariz esmagado. Ambos capangas do Bencrof.

Após alguns dias recuperando-se, Rose foi colocada em uma cadeira de rodas e levada ao xerife. Como ela odiava aquele objeto. A cadeira a fazia menor, obrigava que ela olhasse os outros de baixo.

— Roselin Viggs, a senhora é acusada de ter agredido esses homens. O que tem a dizer em sua defesa?

Por que será que ele tirou o bigode? Ficou horrível.

— Corta essa, Bill! Se vai me jogar no xilindró, não precisa de toda essa enrolação. Você sabe que fui eu, e aposto que sabe muito bem o que eu pretendia naquela noite.

O homem franziu a testa e seus olhos pareceram tristes.

— Eu deveria prendê-la para seu próprio bem. Quais evidências você tem contra Bencrof? Aposto que nenhuma.

— Há um ano ele visita a amante toda quinta. Justamente naquele dia, o cronograma dele mudou e dois capangas apareceram para me deter. Se isso não for a porra de um cartomante, eu não sei mais o que é.

Bill tamborilou as mãos na mesa e levantou da cadeira. Foi possível observar um anel prateado em seu dedo direito. Saber que ele estava noivo causou sentimentos mistos na mulher.

— Larga dessa besteira, Rose! Andar de canto em canto matando gente? É isso que você quer da sua vida?

— E esquecer o que aconteceu?

O ar ficou pesado.

A mulher quis se levantar, mas as pernas metálicas continuaram imóveis. Quis socar a mesa, mas seus braços não alcançavam.

— Era nosso filho, Bill, nosso garotinho. Ele era tão obediente, tão alegre. “Eu vou ser um herói”, ele dizia, “vou proteger os fracos, encontrar riquezas e nunca mais vou ver a mamãe chorar por não ter comida em casa”.

A mercenária percebeu lágrimas escorrendo em sua face. Merda, na frente dele não. As lembranças vieram como um relâmpago, mesclaram-se aos dias na trilha e aos ferimentos. Cadeira de rodas desgraçada.

— Já faz muitos anos, nunca mais tivemos notícias do bruxo. Ele certamente encontrou o fim que merecia.

— Não morreu, não morreu — dizia a mulher, entre soluços. — Mas eu vou achar o desgraçado, vou sim. Nem que eu tenha que queimar todos os bruxos deste mundo.

Várias rugas surgiram na fronte do xerife. Ele flexionou o cenho, cerrou os dentes e olhou pela janela.

— A culpa é sua, Bill! Onde você estava? Seu dever era proteger sua família.

— A culpa é minha, sim. Eu era jovem, devia ter feito vista grossa para as coisas que aquele bruxo fazia. Mas sou um homem diferente agora. Eu amadureci. Você devia fazer o mesmo.

O xerife começou a mexer em gavetas. Uma delas travou, ele respondeu com um chute. Encontrou o rifle sobre uma prateleira. Os cilindros de gás apareceram após um tropeço. Bill jogou o equipamento sobre a mesa e apontou o dedo para a mercenária.

— Suma da minha cidade.

A mulher assoou o nariz, reativou seu aparelho em silêncio, enrolou o rifle em um pano e levantou-se.

— Você mudou, sim. Você virou um lambe-bota.

Rose deu as costas e saiu da delegacia.


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