A Vida de uma Anônima escrita por Pauliny Nunes


Capítulo 7
O que não mata...




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/680422/chapter/7

— Sua pizza chegou - avisa minha irmã batendo na porta do meu quarto.

— Já vou! - gritei enquanto procurava minha carteira. Só com a luz da televisão ficava difícil de encontrar, mas eu não queria ligar a luz do quarto.

Quando eu saí, minha irmã me olhou e tapou o nariz com a mão:

— Argh! Morreu algum animal aí dentro?- tentando olhar para dentro do quarto. Antes que conseguisse, fechei a porta- Que nojo! E olha só para você... Se continuar nesse ritmo, já vai poder trabalhar no SEA WORLD.

—Cala a Boca, Patrícia!- disse a empurrando da minha frente- Você é muito exagerada.

— Tá bom então, Willy - antes que eu pudesse retrucar, ela já tinha entrado em seu quarto.

Assim que abri o portão pude notar que o entregador, que era o mesmo das outras vezes fez uma cara de quem tinha visto a mulher barbada com perfume de gambá. Ele me entregou as duas pizzas maracanãs - uma de peperoni e a outra de lombo ao creme- e a coca cola de dois litros, como se estivesse tentando me exorcizar. Nas primeiras vezes, ele sorria para mim, soltava umas cantadas do tipo: "Nossa, hoje eu tirei a pizza da sorte!". Hoje, nem disse boa noite.

Coloquei a pizza de peperoni na cozinha e estava indo para o meu quarto com a de lombo, quando minha mãe apareceu.

— MAS O QUE É ISSO? PIZZA DE NOVO? Que merda tá acontecendo com você? Já se passou um mês e vai me dizer que ainda tá sofrendo? Só sabe comer, comer, comer, comer e comer - esbravejou. De repente ela parou e começou a fungar - Mas que cheiro é esse?

Ela parou bem na minha frente (ding! ding! ding! temos uma vencedora!), dava pra sentir o ar quente saindo das suas narinas. Eu tive vontade de deitar no chão e me fingir de morta, mas minha mãe não era um urso. Tá na hora de eu parar de assistir Discovery. Seus olhos castanhos estavam me fuzilando e me senti com seis anos prestes a apanhar por ter quebrado seu vaso preferido.

— Há quanto tempo você não toma banho? Isso já está ficando doentio... Chega desse tipo de comida - tirou a pizza da minha mão e sem pensar, jogou no lixo. - Chega de ficar trancada no quarto o dia inteiro, chega de se fazer de vítima, chega desse cheiro, chega!!! Você ficou sua férias inteira dentro de casa e fazendo nada. Ou melhor, só engordando. Quero que vá para o seu quarto, arrume-o, tome um banho e depois quero que vá para o mercado comprar algumas coisas para a casa.

— Eu não estou com ânimo- resmunguei. Droga, por que disse aquilo? Agora eu decretei a terceira Guerra Mundial. Deveria ter deitado no chão.

— EU ES-TOU MAN-DAN-DO! - entre os dentes. Ela chegou mais perto, levantou os braços na minha direção e... Pegou a segunda pizza, a coca e foi para o quarto dela.

Ufa! Essa foi por pouco, acho que vi a morte nos olhos da Dona Renata. Tentei pegar a pizza que ela jogou no lixo, mas era tarde demais, a mesma caiu fora da caixa.

***

Eu fui para o meu quarto, assim que liguei a luz vi o que a minha irmã e minha mãe estavam falando. Haviam caixas de pizza , de saquinhos lanche , sachês, potes de sorvete ( alguns inacabados) , bolos, pudins, latas de refrigerante, garrafas de refrigerante , fotos rasgadas, cd's quebrados e roupas para todos os lados. Aquilo parecia um lixão e eu tinha de limpar.

Depois de duas horas, oito sacos de lixo, 2 litros de desinfetante, quatro baldes de água, meu quarto estava sem sujeira e sem lembranças. Peguei uma calça jeans, uma blusa bege e fui tomar meu banho.

***

Ao me deparar com o espelho, me senti envergonhada: estava um lixo. Meu cabelo estava cheio de nós em meio a um grande nó que lembrava brevemente ter sido uma trança. Meus olhos tinham olheiras sobre olheiras e pareciam mortos. Minha pele estava sem vida e com marcas de comida até na testa. Meu corpo estava flácido e cheio de celulites. A minha camiseta, que era branca, estava cinza e alguns pontos, beirava o grafite. Meu short colorido, na verdade era bege. Quando decidi cheirar minha axila, quase morri. Conclusão: estava no fundo do poço.

Entrei no chuveiro, deixei a água quente dominar meu corpo e minha mente. Enquanto ensaboava meu corpo fui respondendo as perguntas que a minha mãe fez para mim:

"Que cheiro é esse?"

A Patrícia disse que veio de mim e eu também acho

"Há quanto tempo você não toma banho?" .

Três semanas, mas quem está contando, né?

"Que merda está acontecendo com você?" .

Eu não sei. A única coisa que consigo fazer é assistir televisão. Tenho assistido qualquer coisa que não me lembre dele. E comer me faz bem, além de liberar as endorfinas. São os hormônios naturais que bloqueiam a dor e criar uma sensação de prazer. Eles são produzidos nas glândulas hipófise e hipotálamo e são liberados em resposta aos meus estímulos sensoriais. Sem contar que doces ajudam na libertação dos hormônios dando um breve momento de euforia. Logo, se eu comer bastante doce, fico eufórica por muito tempo. Realmente tenho de parar de assistir Discovery.

"Já se passou um mês e vai me dizer que ainda tá sofrendo?"

Sim, eu o amei por cinco anos e ainda amo. Isso é o que me faz sofrer. Assim que deito para dormir, fico pensando em tudo o que ele falou e pensando se não era melhor voltar atrás. Vai ver ele estava certo, também tenho uma parcela de culpa nisso tudo. Eu não quis ir morar com Arthur quando me formei, queria ganhar dinheiro para o casamento. Eu não ia às festas da empresa com ele, pois estava trabalhando. Eu não estava lá quando ele precisou de mim. E não ficava na cama com ele, pois eu tinha medo do que os meus pais iam pensar, ou que não poderia atrasar o serviço... Na verdade eu tinha medo de que ele achasse que era feia quando acordava. Podia ter baba na minha boca quando ele me acordasse. Ou estaria roncando... Ou que aquilo não era certo... Agora eu vejo que eram coisas bobas...

"Será que você tinha realmente que terminar com ele?"

Okay... Minha mãe não me perguntou isso. Quem é você?

"Sua consciência, agora responda a pergunta".

Estou ficando louca?

"Só responde a pergunta...".

Não vou responder. Não te conheço.

"Sério? Você quer mesmo fingir que não me conhece?"

E não conheço... Olha só. Isso tudo é muito louco, sai da minha cabeça.

"Quer que eu te prove que me conhece? Tenho algumas histórias...".

Prova então. Duvido

"Setembro de 1996. Em casa no dia de chuva. Você e sua irmã estavam entediadas por terem de ficar trancadas em casa. O pai de vocês havia feito uma piscina de cimento no fundo do quintal. Esse era o fim de semana em que iriam estrear a piscina. E choveu. O tédio era tanto que vocês decidiram jogar o gato preto da família dentro da piscina, para saber se ele sabia nadar. Quando você viu que o gato era pequeno demais, decidiu salvá-lo e...".

Fiquei com a consciência pesada... Ooohh, então era você!

"Sim. Enfim, responde a pergunta logo."

Tá certo. Eu...

— Ei! Para de treinar para o sea world! Você ainda precisa engordar mais um pouco!- gritou minha irmã, batendo na porta.

— Já estou saindo- respondi. Peguei a toalha, minhas roupas e abri a porta. - Poxa, reclamam quando eu não tomo banho e reclamam por tomar! Decida!

— É para tomar banho e não esvaziar a caixa d'agua. - dessa vez era minha mãe. Ela estava passando para ir à cozinha deixar a embalagem de pizza vazia (mulher ruim).

***

(Respira)... Vai , vai , vai, isso!!! (Respira)... Só mais um pouco... (respira)... Bem aí... (respira)... Tá quase... (respira), (respira)... Melhor mudar de posição... Deitada é melhor... (respira)... Aaaaahh ainda não... Só mais um pouco... (respira)... Mais rápido... (respira)... Com mais força... Mais força... (respira)... Câimbras? Uma hora dessas... (respira)... Agora vai... Posso sentir... Isso... Assim... Desse jeito... (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... Ahhhhhhhhhhhhhhh!!!!... Ahhhhhh!! (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... Isso... Quase lá... Tá quase lá... Só mais um pouco... Aguenta... Aguenta... Vai , vai , vai, isso! Aaaaaaaaaaaaaaaahhhhhh!!!... (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... (respira)... DROGA DE CALÇA QUE NÃO QUER ENTRAR!

Era a quinta calça que tentava vestir e não tinha jeito, não entravam. Eu sabia que havia engordando um pouco ("um pouco, tenha dó!" Fica quieta consciência!), mas não a ponto de nenhuma calça jeans entrar. Como iria ao mercado? Então, de dentro do meu guarda-roupa uma luz se acendeu (não, não era o meu celular), uma calça de moletom implorava para ser usada e resolvi satisfazer sua vontade. Não tinha outra opção. E lá fomos: eu, meus quilos a mais e a minha melhor amiga de hoje, a calça de moletom.

Só para ressaltar: AGORA EU ESTAVA NO FUNDO DO POÇO.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Vida de uma Anônima" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.