Vivendo-nos escrita por Layla Magalhães
JULIETTE
Esperamos alguns segundos até que o próprio Theodore abra a porta. Deduzo que seja ele, pois mal abrira a porta e olhos castanhos já encararam Leila como se fosse a pior coisa existente em todo o universo.
— Ah, não... — resmunga ele.
— Ah, sim. — não posso evitar de achar graça. Lee está tão pouco à vontade quanto ele. — Sua mãe está por aí?
— Se eu disser que não, você vai embora?
Retenho uma risada.
— Hmmm... Não.
Ele suspira.
— Sendo assim, entrem. Chamarei-a para você, senhora...?
Surpreendo-me com sua educação. Pelo que minha filha descrevera, visualizei um Theodore que seria uma versão menor do Shrek, só que menos simpático, se possível. Ponho a mão em seu ombrinho e sorrio.
— Pode me chamar de Juliette, Theodore.
Ele acena, tímido, com a cabeça. Dirige-se para outro cômodo da casa e volta com uma mulher minutos depois. Seus olhos são castanhos como o do filho, entretanto o cabelo dela é ruivo vivo, o que pode explicar o tom de cabelo castanho avermelhado do pequeno.
— É um prazer conhecê-la, Juliette. É uma pena que tenha de ser assim, nesta situação. — Ela ergue a mão num cumprimento acanhado. Apresentando-se, descubro que seu nome é Pearl.
— Ted — Pearl fala suavemente com o filho, mas com autoridade. É um tom com que não se consegue discutir —, acho bom você e Leila se resolverem. Que tal um pedido de desculpas?
Ele suspira, derrotado, devastando o papel de garoto rebelde que desenhara minha mente.
— Desculpe-me, Leila.
Theodore é doce. E uma fofura. De fato, estou tentando com todas as forças segurar o espírito de Felícia que há em mim para não apertá-lo para sempre.
Lee olha para mim, buscando orientação. Aceno com a cabeça, indicando que ela prossiga.
— Desculpe-me também. Não deveria ter falado aquelas coisas pra você.
O garoto acena com a cabeça, tímido, e me surpreende ao convidar Leila para seu quarto. Aparentemente, a coleção de bonecos de ação dele é imperdível.
Sorrio e observo Theodore e Leila juntos. Eles conversam tranquilamente, parecendo não precisar de interlocutores e agindo como se qualquer mágoa que existira já fora esquecida.
— Eles parecem melhores amigos.
Pearl ri e concorda.
— Talvez esse seja o começo de uma bela amizade. Aproveitando que está aqui, Juliette, será que eu posso... conversar... com você? — Ela não me dá tempo para responder antes de continuar. — Imagino que você esteja desesperadamente cansada e com vontade de ir para casa, mas eu preciso —
— É claro que posso conversar contigo, Pearl.
Seus olhos me agradecem em silêncio.
— Há algum tempo quero pedir sua ajuda. É sobre Ted. Ele... bem, eu queria levá-lo ao P.O. para ter um pouco de treino.
Observo-a, confusa. Um pouco de treino?
— Espere — organizo as ideias. —, isso quer dizer que Theodore tem um dom?
Ela suspira.
— Sim. E ele é muito bom. Ted é uma ótima criança, com grandes potenciais.
Sento no sofá, em choque. Não recordo-me de tê-lo visto pelo Ponto Ômega.
— Você o levou?
Ela abaixa a cabeça, culpada.
— Não.
Olho-a, buscando compreender toda a situação.
— E o que a impediu de levá-lo?
Pearl solta o ar num rompante. Conheço aquela expressão. É a mais singela forma de impotência, de sentir-se inútil e achar-se de mãos vazias quando o mundo requer que elas estejam cheias.
— Não o quê. Quem. O pai dele não permitiu. — Ela passa a mão no rosto e coça a cabeça, exasperada e com um quê de indignação. — Entenda, ele abomina qualquer tipo de poder. Não acha natural, não considera humano. Para meu marido, ter um filho com poderes é o pior tipo de castigo. Como se nosso filho fosse o diabo encarnado.
Inspiro profundamente. Por mais que esse disco seja repetido, não deixo de me magoar toda vez que o escuto. Há casos de intolerância conosco, superpoderosos, todos os dias. No entanto, os que ditam relacionamentos de pai e filho são os mais marcantes e, consecutivamente, os mais dolorosos e difíceis de superar.
— Ele o proibiu de usar os poderes.— Pearl admite, e está envergonhada. — Bem, ele praticamente proibiu Ted de respirar. Ele vai da escola para casa e de casa para escola, sem pausas, sem passeios, sem descanso. Quando o pai está em casa, meu filho não sai do quarto. Nem mesmo para comer. Ele vive em prisões diárias e isso, com certeza, o retrai.
Pisco, compreendendo todo o resto.
— Por isso Theo brigou com Amanda. Ele se ressentiu por não poder usar o poder assim.
— Exatamente.
Droga. Se eu já queria encher o menino de abraços antes, agora quero morrer de tanto apertá-lo.
— Pobrezinho — sussurro, pensando em Elijah. O poder dele será incompreendido enquanto não ser domado, porém ninguém, muito menos seu pai, retiraria sua chance de crescer e aprender com e sobre seu dom.
Uno minhas mãos e encosto-as em meus lábios, pensando. Theo não pode ficar sozinho nessa. Não deixarei que enfrente sem ajuda tantas dores e repreensões.
O incidente com minha mãe e minhas mãos no fogo retorna à minha mente e fito meus dedos, intactos, ainda presos em suas articulações.
— Theodore pode ir para minha casa. Tentaremos treiná-lo lá e, apesar de ser deficiente em termos de aparelhos e tecnologia, tenho certeza que ajudará muito seu filho.
Os olhos dela brilham de entusiasmo.
— Juliette... eu não sei nem o que dizer.
— Diga que posso levá-lo pra lá depois da escola. Caso seu marido pergunte sobre ele, você pode facilmente dizer que está na casa de uma coleguinha, estudando.
Sorrindo, Pearl concorda com a cabeça.
— Muito obrigada. Não posso pôr em palavras o quanto lhe sou grata.
Os olhos dela passam pelo relógio o que imagino que seja a terceira vez em minutos. Ela está agitada e nervosa, e por algum motivo sei que não é por minha causa.
— Seu marido... ele demorará a chegar?
Franzindo os lábios, ela observa o relógio mais uma vez, como se querendo que ele não fosse real.
— Não muito, na verdade.
Droga.
Respiro fundo e fico em pé. Xingo de todos os nomes possíveis e imagináveis as pessoas ignorantes desse mundo, contando as ofensas de um à dez, numa tentativa de me acalmar.
— Eu provavelmente deveria ir. Não quero causar-lhes problemas.
— Não se preocupe — consola-me—, enquanto meu marido estiver no escuro, não fará nenhum mal.
Minha preocupação não é a reação dele enquanto não souber o que faremos, e sim qual será quando descobrir.
— Venha, vou te levar até o quarto de Ted.
Deixo-a me guiar pelo corredor iluminado e cheio de quadros — mas sem nenhuma foto da família — até o segundo andar da casa. Aqui parece só haver um quarto, quarto esse que ouço vozinhas agudas e risadas divertidas. Ao chegar lá, eu e Pearl paramos no batente, observando nossos filhos brincarem juntos.
— Não é assim que se faz — Lee corrige a postura de Theo. —, você precisa se defender.
Se defender?
— Filha, do que vocês estão brincando?
— Não estamos brincando, mamãe. Estou ensinando ao Theo alguns dos golpes que titia Amaya me mostrou.
Tampo os olhos com as mãos, resmungando um você é filha do seu pai mesmo. Suspiro, recompondo-me;
— Nós temos de ir, Lee.
— Ahhhh — Theodore e Leila reclamam juntos.
Rio, ficando da altura dos dois e abraçando-os apertado. Nem parece que, há algumas horas, eles se odiavam.
— Não se preocupem. Amanhã vocês passarão o dia juntos, lá em casa.
Com gritinhos de comemoração, nos despedimos e saímos da casa de Theo. Quando nos distanciamos algumas casas, um homem emburrado passa por nós e sigo-o com os olhos tempo o suficiente para vê-lo entrar na casa da qual saímos há poucos momentos.
Foi por pouco.
— Então — aperto a mãozinha de Lee na minha —, você gosta do Theodore?
— Aham — ela arrasta as últimas letras, prolongando a resposta—, ele é muito legal.
— Fico feliz que vocês se acertaram — comento, atravessando uma rua —, pelo menos você terá uma noite tranquila.
De mãos dadas, minha pequena balança nossos braços conforme anda.
— Não se preocupe, mamãe. Você e papai se acertarão.
Admiro sua confiança.
— Veremos.
Não ansiosa para enfrentá-lo, chego em casa e organizo tudo o que precisava arrumar e até o que já estava arrumadinho. Ponho Leila na cama, alimento as gêmeas, varro a casa e passo um pano na cozinha, adiando o inevitável o quanto posso.
Aaron não viera checar nada, tampouco.
Agora estou parada de frente à nossa porta, encarando a madeira artificial ornamentada e delicada. Respiro fundo e alongo o pescoço, preparando-me, quem me vê, para uma guerra.
Abro a porta do quarto e arrependo-me de não estar armada.
A toalha, a mesmíssima toalha que Aaron saíra do banho mais cedo está jogada na cama, e aposto que molhada.
Solto o ar lentamente pelo nariz e caminho até a cama, pegando a tolha — não só molhada, mas encharcada. A marca da água está nos lençóis e leva todo o auto-controle que tenho em mim para não gritar.
— Juliette? — Aaron me chama, pelo que parece, de seu escritório. Caminho até ele com a tolha ainda em mãos, agarrada por entre os dedos, o sangue fervendo e os olhos ardendo.
Ele está sentado atrás de sua mesa, as mãos segurando o queixo, que se apoia nelas. Não preciso ter o dom dele para saber que Aaron está pensativo.
Bem, paciência. Ele está pensativo, e eu furiosa.
— Você deixou a toalha molhada em cima da cama novamente.
Franzindo as sobrancelhas, responde:
— Desculpe-me, amor. Fiquei distraído depois que você saiu daquele jeito. Vesti-me rapidamente e devo ter esquecido de pegá-la da cama.
— Esqueceu, é?
Aaron respira fundo e olha intensamente em meus olhos.
— Juliette, você... tem se sentido normal ultimamente?
Confusa, olho para ele e busco um esclarecimento.
— Como assim, normal?
— Suas emoções não estão mais intensas? E seu apetite mais... — ele lambe os lábios e minha garganta fica seca na hora. — voraz?
— Apetite?— A voz sai esganiçada e um tanto trêmula.
O pai das minhas filhas sorri de um jeito que me faz compreender o porquê o escolhi para tal cargo e, ao mesmo tempo, me deixa com vontade de retirá-lo rápido dessa posição para assim eu poder matá-lo.
— Os dois tipos. — Aaron acrescenta.
Devo parecer tão confusa quanto me sinto, pois ele gargalha audivelmente e pega na minha mão por cima da mesa. Seu toque é firme e quente, uma demolição concreta em minha irritação.
— Apetite por comida...
— E o outro?
Ele sorri mais. Muito mais. Posso ver o quanto lhe dá prazer responder esta pergunta.
— O apetite sexual.
Fico corada e bufo, desprezando seu argumento.
— Bobagem, Aaron.
— Bobagem? Você teve um surto após nossa tentativa falha de passarmos um tempo juntos.
Quero rosnar por sua escolha irônica de palavras.
— Eu não surtei.
— Você quase me matou por aparecer só de toalha na sua frente, amor.
Encaro-o séria por alguns segundos.
Pelos mesmos segundos, ele me encara com um sorriso zombador.
— Eu. Não. Surtei. — Pausadamente, o contradigo.
— Surtou. Sim.
Tiro minha mão da dele e cruzo os braços, exasperada.
— Qual é o seu ponto, Warner?
Uma risada lhe escapa e ele joga a cabeça para trás, encostando-a na poltrona.
— Agora eu sou Warner?
— É.
Inclinando-se para frente e apoiando os cotovelos na mesa, ele tenta pegar minha mão e libero-a, relutante.
— Você acha— seus dedos brincam com os meus, e Aaron aproxima-se o suficiente para que eu sinta seu hálito quente correr para o meu pulso. —, que eu me irritarei com isso, embora o efeito seja o contrário. Sempre me diverti muito com você, amor.
Seus lábios encontram a ponta de meu indicador e deixam um rastro pela falange e todo seu comprimento até encontrarem a palma, onde ele deposita um beijo longo e suave, enviando fagulhas de arrepios por todo o meu braço.
Notando que me contorço sob seu toque, Aaron libera a minha mão e descansa mais uma vez, relaxadamente, em sua poltrona.
— Aí está, Ferrars — ele aponta —, apetite sexual.
Eu odeio esse homem.
— Não, você não me odeia.
— Pare de ler minha mente — Reclamo.
Rindo, ele me encara, coçando o queixo.
— É disso que estou falando. Suas emoções estão bagunçadas.
Suspiro, derrotada.
— E o que você está insinuando com isto?
— Não estou insinuando nada, amor. Estou afirmando.
Ele batuca de leve na borda da mesa, mostrando sua agitação.
— Você vai me dizer o que é ou terei de adivinhar? — Não fingirei que não estou irritada. Eu estou. E muito.
— Presumi que, depois de duas vezes, você seria a primeira a perceber. Isso só confirma que te conheço mais que você mesma. Ou talvez seja só intuição de pai.
Bufo.
— Você sabe que tal coisa não existe, Aaron. Intuição é só de mãe.
— Ah, é? Pois veja bem. Você está grávida.
Pisco.
— Não estou grávida.
— Você está.
— Eu saberia se estivesse, droga.
Ele une as mãos, fazendo-as soar como se estivesse batendo palmas.
— Quer apostar?
Isso deveria ter me parado. Aaron só aposta naquilo que tem certeza. Mas, em minha defesa, não estava muito racional na época.
— Quero.
Damos as mãos. Confirmamos a aposta.
E até hoje não terminei de pagá-la. Uma aposta eterna, fora o que ele pediu.
Algumas mulheres têm medo de ficarem grávidas pelo risco. Já eu, tenho medo por minha tolice. Parece que ela se multiplica na gestação.
E Aaron se aproveita muito disso.
Nove meses de pura e intrínseca tolice. Isso nas gestações normais.
O que não ocorrera nesta.
Foram apenas três meses de tolice aguda. Deus sabe que não me importaria de ser tola por mais alguns.
Troquei a tolice por algo muito mais amargo e profundo: depressão.
PARA RECORDAR —Trecho de Floresça-Me sob o POV da Leila:
Vejo Chloe e Cleo brincando com Elijah. Cleo usa seu poder da natureza para fazer um leve vento em torno da borboleta, fazendo-a voar mais alto. Elijah começa a pular mais e mais. Afasto-me do titio e do papai para ir até eles. Eli pode se machucar desse jeito. Chloe tem um sorriso bobo no rosto, vendo Elijah se divertir tanto. Alguém que apenas a vê pode pensar que ela está se divertindo com a pequena tortura que é vê-lo pular e pular incansavelmente, mas vejo apenas admiração em suas emoções. Quando estou a alguns passos de distância, vejo Eli cair e a borboleta se afastar. Na mesma hora ele começa a chorar. Chloe se adianta em direção a ele para ver se há algum machucado. Cleo fica a seu lado e observo-as enquanto caminho. Apesar de serem gêmeas, elas não são de todo iguais. O cabelo de Chloe é castanho avermelhado e o de Cleo é loiro escuro. Mas os olhos... os olhos de ambas são de um azul muito forte. Azul de céu e mar.
Vejo Cleo tentar parar o choro de Elijah. Ele está com um pouco de dor na perna em que caiu, noto. Chloe vê a falta de sucesso da irmã gêmea e faz diferente: conjura uma outra borboleta com seu dom. Esta é idêntica a antiga.
Já vi Chloe conjurar muitos animais belos, mas este foi o ato mais bonito dela. Eli já começa a rir novamente, apesar da dor. Chego e o pego no colo, colocando-o na altura da borboleta. Ele estica o bracinho e espera, parado e ansioso, que a borboleta pouse. Ela pousa. Fica alguns segundos em seu braço e bate as asas novamente, indo embora.
— Tchau, boboleta. — Elijah diz, acenando. Seus olhos verdes e azuis acinzentados — iguais os da mamãe — estão encantados. Seu cabelo castanho escuro — também igual o da mamãe — está bagunçado, então caminho com ele até o banheiro, onde posso arrumá-lo e limpá-lo. Durante o caminho concentro-me na dor que ele está sentindo, tentando fazê-la passar. Já testei fazer a tristeza passar — quando mamãe perdeu o bebê antes de Eli — e deu certo. Espero que eu consiga aliviar um pouco da dor também.
Consigo desanuviar as emoções ruins que rondam a dor, mas a dor propriamente dita eu não consigo fazer passar."
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