Ouvir Estrelas escrita por Rosenrot, Hamal


Capítulo 1
Capítulo Um


Notas iniciais do capítulo

Essa fic nasceu a partir de um sonho maluco que tive no domingo de Carnaval de 2016. Ele nada tinha a ver com Cavaleiros do Zodíaco, ou, se tratando de cosmos e estrelas, acho que tinha tudo a ver.
Dedico essa fic a minha amiga, sócia, companheira das madrugadas e cumplice de sonhos e loucuras, Amanda, que escreve junto comigo e que, mesmo tendo sido expectadora dessa fic, que surgiu inicialmente de uma vontade de lhe dar um presente especial, ainda assim me deu boas ideias, como sempre dá. Mon amour, é para você ^^ Obrigada por sempre estar a meu lado, me acompanhando nas loucuras e partilhando desse ship que, por sua causa, é o meu OTP forever.


ps: A fic passou por uma revisão em Junho de 2021 onde alguns detalhes foram alterados.



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E lá estava ela. A sua luz de devoção.

— Sirius... Ela é a maior estrela do céu e está localizada na constelação de Cão Maior... — disse o homem contemplando o céu noturno, parecendo hipnotizado pelo brilho intenso e magnético do astro — Você sabia que ela pode ser vista...

— De qualquer ponto da Terra — interrompeu uma voz infantil em tom enfado — O senhor já disse isso, pai.

— Ah, mas eu aposto que não disse que ela está a exatos 8,57 anos-luz da Terra, e que tem uma órbita errática porque se comporta como uma estrela binária, embora sua lendária companheira fiel, a Sirius B, uma anã branca mencionada em diversos textos de arqueologia antiga, nunca tenha sido realmente encontrada — disse o jovem fazendeiro cujos longos cabelos cor de lavanda presos num rabo de cavalo balançavam com o vento; depois desse último flerte com a rainha da noite ele voltou sua atenção para a bomba d´água da colheitadeira, a qual estava vedando com um pedaço de estopa.

Uma rusga de curiosidade assomou às faces do garotinho de cabelos ruivos revoltos e brilhantes olhos violetas ao seu lado.

— O que é uma anã branca, pai?

— Uma anã branca é uma estrela que já consumiu todo seu combustível nuclear e que, literalmente, morreu.

O garotinho arregalou os olhos, espantado.

— Quer dizer então que a companheira fiel da Sirius é uma estrela defunta? — questionou alarmado.

O homem riu da sensatez infantil do filho.

— Uma estrela não, uma anã branca! Isso se ela de fato existir. Como eu disse, apesar de Sirius A orbitar como uma binária, o brilho de Sirius B nunca foi visto, como se ela não estivesse realmente lá e sua existência fosse uma lenda dos povos antigos.

O pequeno chacoalhou a cabeça e voltou à cabine do veículo.

— Eu heim! Bom, o que é melhor que uma estrela defunta? Uma estrela fantasma! — disse ele rindo, mas logo sua fisionomia ficou séria quando ouviu o estrondo de um trovão e então emendou: — Acho melhor o senhor deixar a sua estrela brilhar para outros olhos e terminar logo com a colheitadeira, pai. Acho que vai chover.

— Já terminei, Kiki. Amanhã eu troco de vez essa bomba... Anda, vamos terminar essa área antes do temporal — respondeu Mu baixando a tampa da máquina e limpando os dedos sujos de graxa no que sobrou do pedaço de estopa.

Logo que ele subiu à cabine, entregou ao filho a lanterna que usava para o reparo e deu partida na máquina.

Fazer a colheita do milho à noite era sempre a preferência de ambos, já que pai e filho procuravam evitar o sol ao máximo, pois que fora justamente o astro rei o grande carrasco da família; seus raios fortes e invisíveis adoeceram a esposa de Mu e mãe de Kiki, que sucumbiu devido a um agressivo câncer de pele.

No entanto, Mu tinha outro forte motivo para preferir trabalhar no campo à noite. Sirius.

O Universo e seus segredos, o mistério do cosmos, as constelações e seus radiantes astros e galáxias infindas povoavam o imaginário do jovem fazendeiro desde a sua tenra infância, quando passava horas seguidas olhando para o céu a flertar com as estrelas.

Quem lhe despertara essa paixão foi o pai, astrônomo de renome, porém aposentado por invalidez sob um diagnóstico cruel de senilidade, aos cinquenta e oito anos. Dali em diante, Shion sucumbira rápido à doença neurológica degenerativa e os delírios passaram a ser frequentes, mas muito além da saudade ele deixara para Mu como legado uma teoria maluca de que era possível se comunicar com os astros — “Só quem ama de verdade pode ouvir, Mu. Você ouve? Ouve o que elas te dizem?” — dizia Shion enquanto observava o céu ao seu lado.

Aquele fora seu último flerte com as estrelas a partir da Terra, antes de sua partida derradeira.

— Eiii... pai — Kiki chamou a atenção de Mu que comandava a colheitadeira parecendo aéreo — está saindo do perímetro.

— Ah, sim... — respondeu o fazendeiro, engatando a marcha para dar meia volta. O milho já tinha sido boa parte colhido, mas ainda faltavam alguns alqueires.

— Acho que o senhor está cansado, melhor terminar amanhã.

— Eu estou bem, filho, apenas me distrai... Estava pensando no seu avô... Já estamos quase terminando então iremos para a casa.

A casa era simples, era do avô de Mu; tão logo Shion morreu ele e a mãe foram cuidar da fazenda e tocar o negócio do milho porque a pensão que Shion deixara para ela não era o suficiente.

Mu chegou a cursar o primeiro ano de astronomia, mesmo a contragosto da mãe que temia que a doença do marido, de querer conversar com as estrelas, pudesse se manifestar também no filho. Aflita ela pedia todos os dias para que Mu abandonasse a faculdade e o estudo dos astros para seguir com algo mais palpável.

Como que por capricho do destino, para a alegria da mãe Mu conheceu uma garota na faculdade e com apenas alguns meses de namoro ela engravidou. Não se amavam, mas o jovem estudante de astronomia era muito responsável e não pensou duas vezes em largar a faculdade para se casar com ela, dedicar-se totalmente ao filho que chegaria, ao trabalho na fazenda e ao negócio do milho.

A vida do casal não era fácil e para dificultar ainda mais quando Kiki nasceu Mu perdeu a mãe para uma forte infecção nos rins. A esposa se foi cinco anos mais tarde.

Pai, mãe, esposa...

Todos se foram, menos ela.

Ela sempre esteve lá desde que ele tivera consciência de sua existência.

Forte, brilhante, imponente.

Sirius.

A luz que aquecia as noites solitárias de Mu.

...

"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo, 
Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muitas vezes desperto
Eu abro as janelas, pálido de espanto
...”

...

— Pai, fecha a janela. Está frio!

Kiki sentia o nariz gelado por conta da brisa fria do outono que entrava pela janela.

Nem o vento gélido do inverno americano, nem o mormaço incômodo das madrugadas de verão, tampouco a poeira densa do outono e os insetos em festa da primavera obrigavam Mu a fechar a janela de seu quarto enquanto Sirius ainda reluzia majestosa no céu.

Ele perdera a conta de quantas foram as noites em que cativo de seu magnetismo hipnótico caiu no sono ao pé da janela; a primeira coisa que fazia então quando acordava era procura-la no céu, em seu posto.

Como se obedecesse a uma disciplina militar, Mu sempre se levantava antes que ela fosse engolida pelo horizonte, para lhe dar bom dia e agradecer pela companhia, já esperando ansioso pelo próximo por do sol quando ela era a primeira a surgir no céu com seu brilho divino.

Parecia loucura, mas durante o dia sentia ciúmes por todos aqueles que, como ele, a estariam namorando em seus turnos.

E que tristes eram as noites de chuva e de céu nublado... Nessas Mu experimentava uma melancolia que só era amenizada quando Kiki se sentava em seu colo na cadeira de balanço e com a cabecinha encostada em seu peito lhe contava alguma história que ouvira na escola. Nessa hora Mu fechava os olhos e sorrindo inalava o perfume delicioso de seus cabelos ruivos, pensando que jamais imaginara sentir tão imenso amor.

Amor igual ele só sentira uma vez, e fora por ela... Sirius.

Teriam as estrelas cheiros próprios também?

O pai por vezes lhe dissera que não apenas cheiro, mas também formas, texturas e sons exclusivos. No entanto, Shion era um homem doente, assim afirmava a ciência do homem; mas mesmo com a ciência, a astrologia, a física e até mesmo sua própria lógica e razão lhe provando o contrário quisera Mu acreditar no pai.

Contrapondo a sua dialética lá estava ele, flertando mais uma vez com Sirius enquanto conferia os estoques de milho que deveria despachar para o comprador no dia seguinte.

Em dado momento ele abandonou a prancheta com a planilha sobre algumas sacas de milho e foi empilhar as últimas que faltaram para aquele lote; nessa hora Kiki chegou ali afim de chama-lo para o jantar.

O menino parou na porta do silo e vendo o pai de costas se aproximou e apanhou a prancheta com as anotações. Entre os tantos nomes de clientes, exportadoras e cálculos matemáticos lá estava ela, Sirius, desenhada em tinta de caneta em todo seu esplendor. Suas companheiras menores a acompanhavam formando a constelação de Cão Maior, mas apenas ela fora caprichosamente desenhada.

— É a Sirius né? — perguntou Kiki apenas por curiosidade, pois que já conhecia aquele aglomerado de estrelas como ninguém.

— Ah, oi filho... Fala do desenho? — disse Mu jogando a última saca de milho em cima da pilha.

— Sim.

Mu puxou um lenço do bolso da jardineira, enxugou a testa suada e iniciou um lento caminhar até ele.

— É sim. É a Sirius — respondeu.

— Pois saiba o senhor que ela está bem na frente da tabela do reajuste desse mês — disse o ruivinho rindo — A sua estrela ainda vai nos dar prejuízo, pai.

Mu riu da perspicácia do filho, então animado correu até ele, o pegou no colo e começou a girar e girar com ele fazendo festa.

— Nunca, Kiki, nunca! — dizia o fazendeiro em êxtase, então com o filho no colo correu para o lado de fora do silo e apontando o indicador para o céu, para a constelação de Cão Maior, emendou: — Veja! Olhe para ela, filho!... Como algo tão lindo pode causar prejuízo?... Você sabia que as constelações servem como guias para os viajantes? Muitos se orientam por elas, pelas estrelas.

Kiki suspirou e agarrado ao pescoço de Mu lhe deu um beijo estalado na bochecha.

— E alguns se desorientam, né pai? — brincou dando um croque na cabeça de Mu — já passou das onze e o senhor nem tomou banho ainda. Estou com fome e o jantar está pronto.

Mu colocou o pequeno no chão e ligeiro foi recolher as planilhas com as anotações.

— Hum... deixa eu adivinhar... Pizza de hambúrguer!

— Acertou!

— Ah, mal posso esperar! Vamos, vou tomar um banho de cinco minutos para degustarmos essa iguaria exótica e deliciosa que de longe é a melhor especialidade do meu filhão.

De mãos dadas eles seguiam de volta para a casa, porém não foram muito longe.

Poucos passos depois o menino foi acometido por uma crise de tosse tão repentina quanto violenta, que o fez dobrar os joelhos no chão e quase desfalecer. Mu na mesma hora adiou o jantar e o banho para mete-lo na caminhoneta e às pressas leva-lo até o hospital mais próximo, onde passaram a noite entre exames e diagnósticos imprecisos.

Da mesma forma que céu se nubla inesperadamente anunciando uma inesperada tormenta, assim as idas repentinas ao hospital passaram a fazer parte da rotina de Mu.

...

 “E conversamos toda a noite,
enquanto a Via-Láctea, como um pálio aberto,
cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
inda as procuro pelo céu deserto
.”

...

O diagnóstico viera semanas mais tarde, desesperador como as secas que castigam a terra, implacável e voraz tal qual as pragas que condenam a plantação.

Kiki tinha um tumor no cérebro, maligno e de difícil remoção, e mesmo que se fosse empenhada uma intervenção cirúrgica, esta o deixaria com sequelas permanentes, além do silêncio da traiçoeira doença já ter feito com que o tumor sofresse metástase atingindo os pulmões; por isso a tosse repentina e tão violenta.

Em poucos dias a nova e cruel realidade da vida de Mu já se fazia visível em seu rosto abatido e postura prostrada. As visitas constantes ao hospital tinham caráter apenas paliativo, e seus dias se resumiam a uma espera muda e impotente pelo cumprimento do destino de seu filho.

Toda a plantação de milho definhara à espera da colheita que não foi feita; os muitos hectares de campo verdejante agora refletiam o interior do homem cujas mãos sempre fizeram brotar a vida, mas que agora em face à morte nenhum poder tinham.

Mu estava morto por dentro.

Seus dias e noites se resumiam a velar o sono do filho na ânsia de não lhe deixar partir sozinho. Temia perder o último piscar de seus olhos, o último suspiro exalado por seus lábios pálidos, e assim tudo fora deixado para trás, até mesmo ela. Sirius.

As noites de Mu desde então se tornaram escuras e solitárias como nunca.

Foi numa dessas noites sombrias que pela primeira vez desde a terrível notícia Mu sucumbiu ao desespero. Kiki expelira tanto sangue pela pequenina boca durante uma crise inclemente de tosse que a camisa e também as mãos de Mu ficaram encharcadas. Após esta passar e o garotinho adormecer exausto, o jovem fazendeiro, perdido em desespero, correu tão rápido para fora da casa quanto se disputasse os metros finais de uma maratona e só parou na hora em que sentiu o fôlego lhe faltar e as pernas amoleceram trêmulas.

Mu dobrou os joelhos e só então deu-se conta de onde aquela fuga sem destino e sem propósito o havia levado, tinha atravessado todo o vasto milharal arruinado e chegado até o pequeno lago de água cristalina que delimitava sua propriedade.

Ao olhar para o espelho d´água eis que lá estava ela, refletida em toda sua majestade. Sirius.

Num movimento involuntário e totalmente irracional, Mu esticou o braço e tocou a água, como se assim pudesse pegá-la, trazê-la para perto de si, mas tudo que conseguiu foi turvar a água e voltar à sua realidade. Seu corpo então se curvou, seus dedos manchados de sangue se enfunaram na lama e de mãos dadas com a terra ele chorou.

O choro do jovem fazendeiro cortava a noite tal qual um clamor fantasmagórico; soluços, gritos, lamentos... Na mente de Mu uma única pergunta era feita: Por quê?

Por que Kiki?

Por que sua mãe, sua esposa, seu pai?

Por que todos à sua volta tinham que morrer?

Por que não ele?

Seria alguma maldição ou peça do destino?

Por que estava fadado a viver sozinho?

Naquele ponto sua dor era tanta que o estômago se contraia em nós doloridos e ele vomitou mais de uma vez, débil, fraco, sozinho.

Sempre sozinho.

Com falta de ar fechou os olhos, jogou o corpo para trás, caindo de costas sobre a terra úmida, e com os braços abertos em paralelo tentava controlar a respiração para amenizar o enjoo.

Quando Mu voltou a abrir os olhos Sirius estava bem acima de si, no céu, em meio ao manto estrelado.

As lágrimas desciam quentes pelas têmporas molhando seus cabelos cor de lavanda, mas Mu já não soluçava mais, sua respiração se aquietara, o estômago deixou de contrair-se, os tremores cessaram, o coração suspirava; o pranto era agora de contemplação, pois que em meio à imensurável dor que sentia, Sirius lhe fazia chorar tamanha era sua beleza.

— Você também se sente só... Eu sei... Eu sinto.

Mu falava com Sirius em voz alta e aos prantos, aproveitando que ali não havia ninguém para chama-lo de louco por falar com estrelas.

— Está rodeada de presenças mudas, como eu aqui na Terra... Sirius... Sirius... Minha Sirius... Se você me ouve eu te peço, eu te imploro... acolha o meu Kiki, permita que ele te faça companhia e fiquei ao seu lado no céu para que eu possa olhar para ele todas as noites com o mesmo amor e devoção que olho para você... para que eu possa amá-lo mesmo a distância como eu amo você... Sirius... minha estrela...

Os olhos parados eram fixos nela que mesmo estando a 8,57 anos-luz de distância se refletia majestosa em suas retinas, mas eis que de repente um clarão fantástico explodiu no céu obrigando Mu a não apenas fechar os olhos como também protege-los com as mãos.

Com o susto, e impelido pelo instinto de sobrevivência, o fazendeiro deu um salto do chão e cogitando regressar à casa correu alguns poucos metros, mas a luz extraordinária que fazia a noite parecer dia era tão forte que o desnorteava e o cegava em toda tentativa que fazia de abrir os olhos. Somente quando ela, minutos depois, se dissipou e a noite voltou a ficar escura foi que Mu conseguiu enxergar alguma coisa.

Com o coração batendo descompassadamente e a boca seca devido ao susto Mu perscrutou o perímetro com os olhos verdes esgazeados, mas nada havia lá de diferente antes do clarão no céu; tudo parecia estar em seu lugar, o milharal, o horizonte escuro, o lago, o firmamento...

Foi justamente quando olhou para o céu que Mu sentiu seu coração falhar uma batida.

Sirius não estava lá.

 


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Notas finais do capítulo

O próximo e ultimo capítulo será postado em breve.

ps: ja adivinharam o que vai acontecer? A Amanda quando eu mostrei pra ela adivinhou :)



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