Gabriel escrita por Bella P


Capítulo 11
Capítulo 10




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A PRIMEIRA PARTE DO PLANO consistia em convencer Peter em retornar  a Roma com Lorenzo, e trazer Gabriel junto. 

— Não! Absolutamente, não! — Peter disse petulante, enquanto abraçava o filho adormecido contra o peito em um gesto de proteção — Agora que a merda foi jogada no ventilador e Estrela está além de qualquer argumentação, a minha intenção é ir o mais longe possível de Roma, da Itália inteira, na verdade. De preferência, da Europa inteira. Estou pensando na América do Sul. É um lugar grande, iríamos nos misturar — Lorenzo olhou para Peter e a sua beleza de deus romano, e depois para Gabriel e as suas asas pequenas e absurdamente brancas, e pensou que nunca, em milhares de anos, que esses dois conseguiriam ‘se misturar’ onde quer que fosse.

— Se o meu plano der certo, matamos dois coelhos com uma paulada só. Acabamos com a guerra e garantimos a segurança de Gabriel —Lorenzo disse em um tom apaziguador.

Se o seu plano der certo. E há um enorme ‘se’ aí — Peter sibilou enquanto fuzilava Lorenzo com o olhar.

— Você não pode ficar fugindo para sempre Peter! — Lorenzo já estava ficando mais do que frustrado com a teimosia do meio-demônio. Ele realmente era uma criança, porque o comportamento dele era extremamente parecido com o de Alessandro. Por todas as entidades existentes, uma criança que gerou outra criança. Isto era um desastre. 

— Quer apostar? — Peter rebateu presunçoso e Lorenzo estava prestes a abrir a boca de novo, dizer umas poucas e boas para o mestiço cabeça dura, quando Angelina os interrompeu.

— Peter? Lembra do que você me disse quando veio pedir a minha ajuda? Sobre Acqua e tudo de esplendoroso que você aprendeu com ela? Sobre como ela eliminou da sua mente vários pré-conceitos que você tinha sobre os anjos? — Angelina falou em um tom cálido, o tom inerente a todas as mães quando tentavam racionalizar algo com os filhos pequenos e ainda irracionais — Não eram exatamente os planos de Acqua esconder Gabriel do mundo. Ela era uma visionária, tinha a certeza de que Gabriel seria o mensageiro da paz, e você não está o ajudando a cumprir essa função — o olhar irado de Peter foi para Angelina.

— Acqua está morta e Gabriel não tem nem um mês de vida, não está exatamente apto a passar mensagem alguma! — Peter apertou mais o filho contra o peito e Gabriel resmungou diante do gesto, o que fez o meio-demônio relaxar um pouco que fosse se não quisesse esmagar o bebê, sem querer, com os seus braços. 

— A existência dele é a mensagem, Peter — Angelina respondeu calmamente.

— Uma mensagem que não surtirá efeito algum em Estrela, sejamos sinceros — Lorenzo e Angelina lançaram um olhar irritado para Bee diante deste comentário, ainda mais que ambos podiam ver que Peter estava começando a ceder. E então Bee abriu a boca e o excelente trabalho que Angelina estava fazendo em tentar convencer Peter foi por água abaixo — Vamos ser realistas, — Bee continuou —  esse tal de Giuseppe deve ser o espião de Castelo no Vaticano — o que, sinceramente, Lorenzo não queria acreditar.

O velho Giuseppe? Espião? E trabalhando para Castelo? Por quê?

Bem, isto, no momento, não era algo com o qual ele tinha que se preocupar, mas sim com o encontro daquela noite onde ele tinha a certeza de que não seria bem Estrela que apareceria.

— E se ele confirmou a mensagem em nome de Estrela, é porque recebeu ordem para tal, o que significa que há grandes chances de Castelo estar vivo. E se Castelo está vivo, ele já envenenou a soberana com as suas mentiras, por isso ela atacou antes do prazo dado a Hunter acabar — Bee completou e por mais irritante que fosse para Lorenzo admitir, a teoria dele fazia absoluto sentido. 

— E é por isso que precisamos de Peter, Gabriel, e a incrível capacidade do cardeal DeMarco em convencer as pessoas de que o céu azul na verdade é rosa — Lorenzo declarou — Gabriel estará seguro conosco, com os Cipriani, dou a minha palavra, e teremos um plano de emergência para tirá-los da cidade se o meu plano não der certo — completou e deu um passo à frente, pousando uma mão em um dos braços de Peter em um gesto de conforto e segurança, justamente o braço que o mestiço usava para apoiar Gabriel contra o seu corpo ao segurar o bebê pelas costas, bem sob as asas dele. Peter olhou da mão de Lorenzo para bem dentro dos olhos do caçador, moveu Gabriel de modo que o bebê não precisasse de dois braços para estar bem escorado, e então segurou Lorenzo pelo pulso e o puxou para perto de seu corpo, para assim sussurrar em seu ouvido:

— Se você falhar, eu irei atrás de você e farei você pagar — se Peter tinha a intenção de ameaçar Lorenzo, não foi bem este o efeito que as palavras dele tiveram no corpo do caçador.

Lorenzo não se sentiu exatamente ameaçado, ou amedrontado, pelo contrário, um calafrio gostoso correu o seu corpo e acumulou-se em seu baixo-ventre diante do rosnado baixo que o mestiço soltou, bem ao pé do seu ouvido. E pela forma como Peter o mirou, com um sorriso sacana no rosto, o mestiço tinha a perfeita noção do tipo de efeito que as suas palavras de duplo sentido tinham causado no caçador.

Com Peter convencido, eles embarcaram as coisas de Gabriel no jipe, e o bebê em si, e prepararam-se para tomar o rumo de volta à Roma.

— Tem certeza de que você não quer vir conosco? — Lorenzo perguntou para Angelina assim que fechou a porta do motorista, e ela apoiou no batente da janela — Carmem não vai fazer objeção a uma ajuda extra.

— Não. Eu tenho que esperar aqui até Hunter entrar em contato — ela disse com um sorriso e Lorenzo hesitou.

— Como pode ter tanta certeza de que ele sobreviveu?

— Porque eu o treinei, e o treinei bem —  e Lorenzo acreditou nas palavras dela, porque já viu Hunter em ação vezes o suficiente para saber que ele era bom. Arrogante e cretino, era verdade, mas muito bom no que fazia. Mas, à medida que o tempo ia passando, ele perdia pouco a pouco as esperanças, diferente de Angelina. 

Hunter era um mestiço se sustentou algum ferimento mais grave devido ao ataque, há esta hora ou já estaria curado completamente ou no meio do processo, o que o tornaria apto a entrar em contato. Outra possibilidade era a de ele ter conseguido escapar do incêndio, mas ter sido morto, ou morrido horas depois. Morto por algum capanga de Castelo que não entrou com o primeiro-ministro no clube, ou morrido por causa de um ferimento que nem mesmo a sua alta capacidade de cura foi capaz de regenerar. A inalação de fumaça também era uma grande possibilidade de morte, o que justificava o silêncio por tanto tempo. E essas mesmas teorias também se aplicavam a Lorena. Ela tanto poderia ser um dos corpos carbonizados, como ter sobrevivido para morrer logo em seguida em algum beco de Roma, o que levaria mais algum tempo para a polícia encontrá-la.

Lorenzo não quis prosseguir com esta discussão, até porque a ferida ainda estava aberta e doía de forma lancinante. Por mais que o seu coração quisesse acreditar que Hunter surgiria na sua frente naquele momento, são e salvo, como um herói de quadrinhos, o seu lado racional já o preparava há horas para aceitar o pior.

— Sabe — Angelina inclinou janela adentro, aproximando-se o máximo que pôde de Lorenzo, o máximo que a porta do carro permitiu — Foi bom conhecer você. Quando Hunter te conheceu…

— Hunter falou de mim para você? —  Lorenzo interrompeu e Angelina deu a ele um sorriso que era um misto de tristeza e culpa.

— Desde o primeiro dia em que colocou os olhos em você, nas ligações dele imperava apenas um assunto. Ele estava fascinado, ele estava, arrisco dizer, apaixonado — bem, não foi exatamente isto que o mestiço deixou transparecer para Lorenzo, não é mesmo? — Hunter nunca tinha encontrado um Caçador antes, um Caçador de verdade. Você foi o primeiro. E ele estava extasiado, assustado, fascinado, uma miríade de emoções — o sorriso nostálgico dela se desfez e em seu lugar surgiu uma expressão séria e endurecida — E eu ordenei que ele acabasse com tudo, antes mesmo de começar.

— O quê? — Lorenzo queria sair daquele carro naquele instante e chacoalhar Angelina até que ela explicasse aquela história direito.

No final das contas, o seu coração adolescente em frangalhos, foi o resultado de uma ordem dela? 

— Você é um Cipriani, não por associação, não por adoção, mas de sangue. A sua família é a realeza dos Caçadores na Europa, se envolver com você só traria problemas para Hunter. Então, eu ordenei que ele terminasse tudo — e como ela era a matriarca, a líder do pequeno clã deles, Hunter não contestou as ordens da mãe, apenas as obedeceu, de forma fria e cruel. Um golpe cirúrgico, praticamente. Ele precisava que Lorenzo desapegasse, e rápido, e que melhor forma de fazer isto senão dizendo aquelas palavras que doeram tanto no coração do jovem? 

Será que Hunter sentiu o mesmo que ele? Será que ele sentiu o mundo de conto de fadas que eles construíram juntos naquele mês ruir como se um pedaço da alma dele tivesse sido arrancado de seu corpo? Será que ele chorou como Lorenzo, amaldiçoou o nome da mãe por obrigá-lo a fazer isto? Será que ele se arrependia do que fez? Todas as pistas apontavam que sim. O ciúmes, o território marcado sobre Lorenzo, o fato de que o mestiço sabia mais sobre o caçador do que ele próprio, e a foto como protetor de tela no laptop dele. 

Eram tantas perguntas e o mais doloroso é que talvez Lorenzo nunca fosse obter as respostas. 

— Por nove anos eu me perguntei o que tinha dado errado — Lorenzo disse à mulher, com ódio e mágoa ecoando em sua voz, com um bolo entalado na sua garganta, com os olhos ardendo com as lágrimas que ele recusava a derramar — O que eu tinha feito de errado. Nós tínhamos uma conexão. Eu não delirei isto, não foi o meu coração jovem e apaixonado que criou este cenário, nós tínhamos uma conexão, e quando Hunter encerrou tudo entre nós, eu o odiei com todas as minhas forças… — Lorenzo soluçou, não acreditando que isto estava acontecendo, e apertou o volante até os nós de seus dedos ficarem brancos, tentando recuperar o controle sobre o seu corpo que tremia por causa da raiva reprimida — Ele morreu achando que eu o odeio. Eu nem tive a chance…

— Lorenzo… — Angelina tocou o braço dele e Lorenzo deu um pulo no assento, afastando-se dela bruscamente e a olhando com ferocidade. O recado foi bem dado, pois Angelina recuou com as mãos erguidas, em um gesto universal de paz, e com uma expressão ainda mais culpada e miserável em seu rosto — Boa sorte — desejou, porque essa era a única coisa que ela poderia dizer no momento, e que não faria Lorenzo sair daquele carro e testar o quão em dia as habilidades de luta corpo a corpo de Angelina estavam.

— Adeus, Angelina — Lorenzo respondeu em um tom seco e engatou a ré assim que Peter fechou a porta do carro, após acomodar-se no banco do carona.

E cantando pneus, eles tomaram o rumo de volta a Roma.

 

oOo

 

LORENZO LEVOU QUATRO HORAS E meia para retornar a Roma em uma viagem que normalmente levaria umas cinco horas de carro. A raiva que o consumia foi um ótimo motivo para pisar no acelerador com vontade, até o momento em que Peter lhe chamou a atenção e disse, ordenou na verdade, para ele ir devagar porque havia uma criança no carro. Lorenzo mirou Peter com raiva e depois deu um relance para Gabriel, em sua cadeirinha de bebê no banco de trás. Gabriel que mais parecia estar se divertindo com Bee, que sacudia uns bibelôs sobre ele, do que se importando com a velocidade com que o jipe seguia.

— Eu sinto muito — a mão de Peter sobre o seu braço fez Lorenzo voltar a sua atenção para o sucessor. Peter tinha uma expressão reconfortante, o toque dele era suave e a voz dele calma e cadenciada, a mesma postura que ele usou horas atrás para acalmar um Gabriel histérico.

O gesto poderia ter funcionado bem com o bebê. Com Lorenzo, só o irritava mais ainda. Ele não queria consolo, ele queria quebrar os dentes de alguém. A confissão de Angelina reabriu uma ferida que, verdade seja dita, nunca chegou a fechar, somente criou uma casca superficial e parou de sangrar. 

— Pelo quê? — Lorenzo perguntou azedo, porque Peter não tinha culpa de nada, não tinha feito nada. E sendo bem sincero, era Lorenzo quem tinha que pedir desculpas por estar dirigindo feito um louco, e por ser emocionalmente constipado a ponto de colocar uma criança em risco porque resolveu extravasar a sua raiva no velocímetro do carro. E eles precisavam de Gabriel bem vivo.

— Hunter era mesmo o seu escolhido — Lorenzo riu com amargura diante das palavras do sucessor. Talvez a suposição romântica de Peter tivesse um fundo de verdade. Talvez Hunter realmente tenha sido, de alguma forma, o seu escolhido, e o que mais doía era que havia grandes chances dele jamais descobrir se foi o escolhido de Hunter. 

E era tão estranho saber que um sucessor tinha tal visão romântica da vida, porém Lorenzo lembrou que Peter nem sempre foi um sucessor e provavelmente, como o caçula, ao menos Lorenzo supunha que ele fosse o caçula porque Lorena nunca mencionou outros irmãos, ele deve ter sido bem protegido do mundo. E se tirasse toda a máscara de seriedade do rosto dele, dava para perceber que Peter ainda tinha uma certa inocência infantil brilhando em seus olhos. Provavelmente foi isto que atraiu Acqua para ele, que fez um anjo se envolver com um demônio, em um caso raro na história.

— Nós não nos víamos há anos e, antes disso, o nosso relacionamento só durou um mês — Peter sorriu diante do resmungo de Lorenzo.

— Há casos raros de escolhidos onde apenas um toque, um olhar, são o suficiente para estabelecer a conexão.

— Você só esqueceu de uma coisa: Hunter é um mestiço. Essa coisa de escolhidos só funciona com demônios sangue puro — o sorriso de Peter permaneceu intacto.

— Será? — Peter deixou a hipótese vagando no ar e Lorenzo bufou e decidiu não insistir naquela conversa, ou nas teorias doidas de Peter. Ele não queria adicionar mais uma ilusão em sua longa lista, porque Lorenzo poderia não saber muito sobre o assunto, mas o que ele sabia era que se realmente fosse o escolhido de Hunter, este teria desobedecido a ordem de Angelina e ficado com ele.

Este era o fato, e assunto encerrado, não interessa se havia uma foto sua no computador de Hunter, ou se o baú com armamento no banco de trás do jipe tinha um cadeado cuja senha era o seu aniversário. Hunter sempre foi um sujeito difícil de decifrar, foi a primeira coisa que Lorenzo percebeu no mestiço quando o conheceu, e nada confiável. Esta foi a segunda coisa que Lorenzo percebeu após o término do namoro e quando descobriu quem Hunter verdadeiramente era: um mercenário que não caçava por honra, mas sim por dinheiro. 

Ou talvez, na verdade, Hunter fosse um psicopata que gostava de seguir as suas vítimas antes de esquartejá-las. Ou talvez Lorenzo estivesse inventando histórias para não aceitar o óbvio: que havia chances de Hunter ainda gostar dele e ter se arrependido de ter terminado tudo com Lorenzo.

Bem, agora era tarde. Literalmente tarde porque havia a possibilidade de Hunter estar morto e, se não estivesse, Lorenzo e ele não tinham chances. A verdade é que nunca tiveram. 

Hunter era um mestiço. Metade dele era um demônio e por regra, caçadores não podiam relacionar-se com demônios, fosse um sangue puro, fosse um mestiço. Fora que a fama de Hunter o precedia, e ela não era boa, e Lorenzo era um Cipriani. Angelina estava certa neste caso, ele era a realeza, a primeira família de caçadores, ele era a maldita Julieta e Hunter era o Romeu. E o Romeu acabou de morrer, mas Lorenzo recusava-se a seguir o mesmo destino de Julieta. 

Pelo resto da viagem, Lorenzo enterrou esses pensamentos no fundo de sua mente e preocupou-se em chegar o mais rápido possível em Roma, sem causar um acidente. Quando o jipe estacionou na frente da Base Suporte dos Cipriani, já era meio da tarde e Carmem os esperava na escadaria de entrada da mansão.

— DeMarco está aqui — ela informou assim que o grupo saiu do carro e aproximou-se da casa — Qual é o plano?

— O que faz a senhora pensar que eu tenho um plano? — Lorenzo gracejou enquanto entravam na mansão, já completamente recuperado de sua epifania diante das últimas descobertas que fez sobre a razão do fracasso de seu relacionamento com Hunter, e Carmem o respondeu ao dar um tapa estalado na nuca dele.

— Você simplesmente não convocou todo o clã para um chá da tarde, convocou? — um assovio soou atrás deles e interrompeu a conversa entre Lorenzo e Carmem, que viraram-se para Bee que tinha um olhar de caipira na cidade grande ao ver o interior da mansão. Se por fora a construção parecia estar caindo aos pedaços, por dentro era puro luxo com os seus lustres de cristal, pinturas autênticas de artistas famosos, tapetes persas e móveis decorados com folhas de ouro.

— Meu tataravô gostava de ostentar — Lorenzo explicou. A mansão era praticamente um museu com as suas peças raras e caras e Carmem só não se desfazia daquela palhaçada, que ela considerava em sua maioria inútil, por causa de valores sentimentais.

— Eu sabia que os Caçadores eram montados na grana, mas isto? Nossa! — Bee estava enganado. Nem todos os Caçadores eram ricos, não como os Cipriani. O clã Cipriani foi o primeiro clã de Caçadores na Europa, o que significava que o dinheiro que eles tinham hoje era fruto do acúmulo do trabalho duro e suado de várias e várias gerações. Então sim, eles eram podres ricos, e provavelmente eram o único clã na Europa. Os outros eram apenas ricos ou financeiramente estáveis.

Era por isso que muitos Caçadores queriam se unir ao clã Cipriani. O salário era razoável, o plano de saúde maravilhoso e o fundo de garantia era ótimo, isto se você conseguisse sobreviver até chegar a idade da aposentadoria. Por terem dinheiro, eles tinham acesso aos melhores equipamentos, as melhores armas e a tecnologia de ponta, o que facilitava e muito o trabalho. Mas ser um Cipriani significava também ter uma mira permanente na testa só por causa do nome de sua família, e não importa se você é um caçador de campo ou não, só importa que seja um Cipriani. E se alguma criatura sobrenatural tivesse alguma vendeta com algum caçador, tenha a certeza de que ela tentaria abater um Cipriani primeiro, só para passar uma mensagem e se sentir o maioral.

Geralmente a dita, e porque não dizer, estúpida criatura se ferrava lindamente com esse plano, pois um Cipriani jamais estava sozinho e mesmo quando estava sozinho, abater um deles apenas para vangloriar-se era garantia de ter os bem treinados, os mais mortais e eficientes caçadores do clã na sua cola. E aí quem ganhava a mira na testa era a estúpida criatura que achou que era alguma coisa e faria nome matando um Cipriani.

Mas isto era uma outra história para uma outra ocasião.

Lorenzo e Carmem voltaram a andar, com Peter e Bee os seguindo, se o eco dos passos deles no chão de madeira fosse alguma indicação, até que o grupo chegou em frente a enormes portas duplas de carvalho e ouro, que foram abertas com um empurrão das mãos de Carmem.

Lorenzo viu de rabo de olho Bee e Peter ficarem tensos e Peter apertar Gabriel mais contra o seu corpo em um gesto instintivo de proteção. Não os culpava. A sala estava cheia de Caçadores e eles eram dois demônios no coração do clã inimigo. Lorenzo também ficaria nervoso se estivesse em uma sala cheia de demônios… Não, espera, ele já fez isto antes, no Por Una Cabeza, e lembrava-se de que a única coisa que sentiu foi irritação e um comichão no dedo indicador que implorava para que ele apertasse o gatilho de sua arma e atirasse na fuça de Bee.

— LORENZO! — o grito foi o único aviso que Lorenzo teve para desviar do soco que veio na direção de seu rosto, e bloquear uma perna que quase o atingiu nas costelas — ¡Hijo de puta!¿Cómo te atreves a asustarme así, imbécil? — veio a ofensa em espanhol quando Lorenzo soltou a perna de seu atacante, que recuou aos tropeços.

— Giovane! — Lorenzo disse com um sorriso largo e debochado — Como o clã Torres anda te tratando? Bem, eu vejo. O sol de Barcelona te deixou com um aspecto mais saudável, irmão. Como está Izabel? Quando será o casamento? Senti saudades sabia? Seu espanhol está ótimo e eu não preciso compreendê-lo para saber que você acabou de ofender a memória de nossa mãe — Giovane corou e Lorenzo só não sabia dizer se o rubor era de raiva, frustração ou vergonha.

Giovane era parecido com Lorenzo. Na verdade, todos os irmãos eram parecidos. Alguns mais uns com os outros do que com o coletivo. Entre os cinco, Giovane, Lorenzo e Francesco eram os que compartilhavam de forma mais próxima às suas fisionomias. Giovane e Lorenzo tinham quase a mesma altura, o mesmo cabelo castanho escuro ondulado, o mesmo sorriso, Giovane era mais corpulento que o irmão, estava com a pele mais morena do sol da Espanha e tinha olhos absurdamente azuis.

— Como posso pensar em marcar a data do casamento quando um dos meus padrinhos resolve morrer?! —  e Giovane possuía o jeito dramático característico dos Cipriani. Além da personalidade bipolar, porque uma hora ele estava gritando com Lorenzo, na outra estava apertando o irmão um abraço — Então? Que merda você arrumou desta vez?

Giovane! – Carmem gritou do outro lado da sala, onde conversava com Walter e DeMarco. A avó deles tinha uma audição bem aguçada quando era para detectar algum dos netos falando palavrão.

— Eu não fiz nada. Ele fez — Lorenzo explicou para o irmão e apontou o dedão para Peter, e Giovane teve a reação esperada, a reação que todos os outros Caçadores estavam tendo, ao ver Gabriel:

Arregalar os olhos de pura surpresa.

— Isto é um bebê anjo? — Giovane aproximou-se de Peter, com uma expressão que assemelhava-se à fascinação infantil, e estendeu um braço na direção de Gabriel. Peter recuou instintivamente e rosnou para o caçador, exibindo uma fileira de dentes afiados e ameaçadores. Giovane prontamente recuou, entendendo rapidamente o recado.

Demônios eram territoriais e Peter deveria estar com o instinto absurdamente aflorado naquele momento. Estava no meio de dezenas de caçadores, tendo como único aliado Bee, que estava parado ao seu lado e também tinha os ombros tensos de nervosismo, portanto sentia-se em desvantagem no quesito proteger Gabriel. E mesmo que Lorenzo tenha dado a sua palavra de que eles estavam seguros na Base Suporte, instinto era instinto e Lorenzo, na verdade, ficaria desapontado se Peter tivesse reagido com menos hostilidade ao avanço de Giovane.

— Desculpe. Mas é que as asas dele são tão… brancas. Esse é o bebê de Acqua? — Giovane perguntou, voltando a sua atenção para Lorenzo. Claro que se o irmão estava ali, ele foi devidamente inteirado do assunto.

— O que te deu esta indicação? Foram as asas? — Lorenzo falou com deboche. — Vamos, entrem, vocês estão seguros aqui — Enfatizou para Bee e Peter, que ainda hesitavam na soleira da porta da sala e cujos ombros ainda estavam retesados e os olhos rodavam por todos os cantos, a procura de uma eventual rota de fuga.

Lorenzo não mentiu, e esperava que logo os dois mestiços percebessem isso, quando disse que eles estavam seguros ali. Os Caçadores poderiam estar os olhando com curiosidade, mas não com hostilidade, e quando Carmem ordenou que eles parassem de encarar os convidados, pois estava os deixando desconfortáveis, todos voltaram aos seus afazeres de antes, como se nada tivesse acontecido, e finalmente Bee e Peter seguiram Lorenzo e Giovane para onde Carmem, Walter e DeMarco estavam.

Um minuto depois, Marcelo, Francesco e Alessandro uniram-se a eles.

— Misericórdia! Vocês são cinco! — Bee disse com os olhos largos ao ver a aproximação dos outros três homens.

Todos sabiam que os irmãos Cipriani eram cinco, então por que o mestiço estava tão surpreso?

— É que eu não sabia que coisa boa podia vir em cinco — Bee respondeu a pergunta refletida nos olhos de Lorenzo, com um tom de puro flerte, e dito flerte não estava nem direcionado a Lorenzo, mas sim a Marcelo que apenas cruzou os braços sobre o peito largo e mirou Bee como se ele tivesse perdido o juízo.

Bee suspirou ao ver os músculos dos braços de Marcelo flexionarem com o gesto que ele fez, e Lorenzo e os irmãos grunhiram.

Marcelo era o mais velho e o mais alto de todos os irmãos, com quase 1.90 m de altura. O seu cabelo também era castanho escuro, quase preto, e os seus olhos azuis possuíam vários tons, do azul-escuro ao cinzento. Marcelo era bonito e charmoso o suficiente para fazer qualquer um suspirar apaixonadamente por ele à primeira vista. Mas, era quando o conheciam que viam que ele não era o príncipe encantado que aparentava ser.

Marcelo era um líder. Um líder sério e com um muro tão alto e tão resistente construído ao seu redor, que quem era de fora da família e quisesse se aproximar um pouco que fosse dele, precisaria de uma retroescavadeira para conseguir causar um arranhão que fosse em suas barreiras.

Lorenzo sabia que a mudança brusca de personalidade do irmão, que quando mais novo sempre foi descontraído e brincalhão, foi por causa da morte de Giuliana.

Marcelo esteve com a mãe deles na caçada que a matou e, quando voltou, já voltou diferente. Completamente diferente. Ninguém sabia ao certo o que aconteceu naquela caçada, nem os outros caçadores que acompanharam Giuliana e Marcelo, e a única coisa que eles puderam relatar para Carmem foi que quando chegaram ao local, Giuliana já estava morta e Marcelo ajoelhado ao seu lado, coberto de sangue e entranhas de vampiros, e protegendo o corpo da mãe com um olhar feral no rosto enquanto segurava um punhal de prata ensanguentado em uma mão e uma GLOCK em outra, girando a arma para todos os lados, a procura de qualquer possível ameaça escondida nas sombras.

O clã poderia não saber o que realmente aconteceu, mas Carmem sabia. Carmem sempre sabia de tudo, e quando o fardo era pesado demais, o compartilhava com Walter. E foi em uma dessas conversas entre os seus avós que Lorenzo ficou sabendo que Marcelo teve que seguir o Código.

Mas qual parte do Código, Lorenzo nunca descobriu. Esse tinha várias entradas, muitas datando dos primórdios da caçada, outras inseridas mais recentemente, que se referem a como e quando uma criatura sobrenatural deveria ser caçada, e se deveria ser caçada, pois nem todas eram animais sanguinários que precisavam ser exterminadas. E algumas das regras eram referentes a cenários e situações que um Caçador poderia encontrar, e que muitas vezes encontrava, e o que deveria fazer neste caso. E a dúvida sempre corroeu Lorenzo.

Qual parte do Código que Marcelo teve que obedecer a ponto de transformá-lo nessa parede intransponível? Parede esta que Bee tolamente achava que com um sorriso charmoso conseguiria quebrar. Pobre coitado.

— Você já disse ao DeMarco sobre o nosso espião? — Lorenzo perguntou a Alessandro, começando logo aquela reunião antes que Bee passasse vergonha ao tentar seduzir Marcelo. Alessandro assentiu para o irmão.

— Eu entreguei Giuseppe a polícia do Vaticano, tenho conhecidos lá dentro que me devem alguns favores. Tecnicamente, ele não cometeu nenhum crime, pois os anjos escolhem os seus mediadores e Castelo tinha o direito de fazer o mesmo com quem ele bem entendesse. Mas, por enquanto, é bom ter alguém de olho nele enquanto seguimos com o plano de Lorenzo. Menos chances de Castelo ficar sabendo — DeMarco explicou.

— Ótimo! Você tem alguma maneira de contatar Estrela diretamente? — Lorenzo sempre teve curiosidade em saber como os mediadores entravam em contato com anjos e vice-versa. Giuseppe pareceu falar com Castelo via telefone, mas e DeMarco e Estrela?

— Eu tenho o número do celular dela — DeMarco explicou enquanto tirava um smartphone do bolso da calça.

— É sério isso? — Alessandro disse com deboche, ao ver o aparelho.

— Extremamente sério. Sabe como é, pombos correios bem treinados são difíceis de achar hoje em dia — isto foi um tom de sarcasmo na voz de DeMarco? Sim, foi um tom de sarcasmo. Lorenzo estava chocado, o cardeal tinha alguma emoção que ia além da sua eterna, e irritante, passividade.

— Mesmo que vocês contactem Estrela, como podem ter certeza de que ela vai nos ouvir? — Peter perguntou, intrigado, balançando Gabriel levemente no colo em um gesto de ninar. O pequeno meio-anjo, meio-demônio, parecia incomodado com o novo cenário. Provavelmente ele deveria estar detectando toda a tensão que permeava aquela sala. Diziam que crianças pequenas eram naturalmente sensitivas e perdiam este dom à medida que envelheciam.

— Fácil. Eu posso? — Lorenzo estendeu a mão na direção de DeMarco, que entregou o celular para ele. Felizmente o aparelho não tinha nenhuma senha de bloqueio e logo Lorenzo acessou a câmera e a mirou na direção de Gabriel, que resmungou quando o flash iluminou o seu rosto e refletiu em suas asas, as fazendo ganhar um tom brilhante na foto. Em seguida, ele procurou Estrela na lista de contatos de DeMarco e a encontrou sob o nome de Sb. Estrela, e lhe enviou a foto com a seguinte mensagem:

"É a cara da mãe. Se quiser saber mais sobre este pequeno anjo, nos encontre na Praça de São Pedro, Vaticano, hoje, a uma hora da manhã."

— E quem garante que ela vai ver essa mensagem a tempo? — Peter continuou, ainda incrédulo.

— Alessandro? — Lorenzo virou para o irmão que nem perto deles estava, mas sim sentado em frente a uma mesa com quatro monitores de computador ligados, e todos com diferentes códigos correndo pelas telas.

— Rastreando a mensagem. Nossa! Os demônios têm sinal bom de internet e celular no subterrâneo. E eu achando que anjos e demônios detestavam tecnologia humana — Alessandro comentou. 

— Achamos que sinais de fumaça são um pouquinho antiquados e difíceis de fazer — Peter zombou.

— Mensagem recebida — Alessandro avisou quando um ponto vermelho piscou no mapa, na tela à esquerda dele. Lorenzo ofegou ao ver o quão perto de Nápoles o ponto estava. Subitamente em um dos monitores, uma nova tela se abriu e um rosto estranho de uma mulher surgiu na imagem.

— É a soberana Estrela — DeMarco avisou ao identificar a mulher na imagem, que franzia a testa para a câmera que nem sabia estar ativa e gravando cada movimento seu.

— E mensagem lida — Alessandro disse com triunfo ao ver Estrela afastar o celular do rosto e gritar algo para alguém fora do enquanto, e então a tela escureceu e a imagem dela sumiu do monitor com um clique do teclado, dado por Alessandro. 

— Agora vamos torcer para que ela apareça na praça na hora combinada — Lorenzo disse com um grande sorriso — Enquanto isto… Eu preciso de um bebê de mentira e reforços de verdade.


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