Gabriel escrita por Bella P


Capítulo 10
Capítulo 9




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A PRAÇA DE SÃO PEDRO COM certeza já tinha visto dias melhores. O piso estava trincado, havia uma rachadura no obelisco central e a maioria das lâmpadas que quebraram com os terremotos ainda não foram trocadas e provavelmente não seriam trocadas tão cedo, pois as autoridades estavam ocupadas demais guiando a população e os visitantes  para os abrigos da prefeitura, para os protegerem, para se importarem com o fato de  que um dos principais pontos turísticos do Vaticano estava praticamente às escuras.

Para Lorenzo, no entanto, a escuridão e o fato de que a cidade estava praticamente deserta era uma combinação perfeita, estava sendo a camuflagem perfeita.

No carrinho de bebê parcialmente escondido pelo seu corpo, Gabriel soltou um resmungo que mais pareceu um grito diante do silêncio da noite. Roma era praticamente uma cidade-fantasma que era assolada por tremores esporádicos, o que indicava que a batalha entre os anjos e os demônios ou estava vindo para a superfície, ou estava se afastando de Roma, ou alguém estava perdendo feio essa briga. E não precisava ser um gênio para saber exatamente que lado era o desafortunado.

Os anjos iniciaram o ataque, mas eles estavam atacando em território desconhecido e o subterrâneo não era exatamente o melhor lugar para grandes manobras aéreas, o que tirava uma das grandes vantagens de combate dos anjos. Os Cipriani, neste meio tempo, repassou aos outros clãs italianos o relatório completo do desastre que estava acontecendo no coração da Itália, e todos acompanhavam o progresso dos tremores. Portanto, a aposta mais concreta era de que, na verdade, a briga estava se afastando de Roma e indo para o norte. E no norte estava Nápoles, com o famoso sítio arqueológico de Pompéia. Mas o problema não era exatamente Pompéia. 

O problema era o lindo e maravilhoso vulcão que era cenário de fundo de Pompéia. Sabe, o mesmo vulcão que ainda estava ativo e que não entrava em erupção há décadas e estava com uma erupção atrasada há décadas. Se a briga chegasse ao monte Vesúvio, os tremores tão próximos da base do vulcão eram risco de causar a tão esperada e atrasada erupção. 

Contudo, mesmo com a batalha se afastando de Roma, Lorenzo ainda podia sentir os reflexos dela sob os seus pés, em pequenas ondulações no solo que faziam minúsculos pedaços de mármore e granito pularem com a vibração, e a lâmpada de um poste na entrada da praça piscou repetidamente por alguns segundos, até apagar de vez. O cenário era o prelúdio de um filme de terror e nenhuma pessoa sensata ficaria ali parada, em campo aberto, sendo alvo fácil. Mas Lorenzo nunca disse que era um homem sensato, não é mesmo?

O vento frio do outono soprou, varrendo algumas folhas secas ao longo da praça, mas o seu silvo não foi forte o suficiente para camuflar o som de asas batendo, asas enormes, ao que parecia, e que aproximavam-se pouco a pouco da praça. Lorenzo mirou o céu nublado, porém as nuvens encobrindo a lua cheia e a luz fraca do local não o permitiu ver muita coisa, e somente quando um vulto surgiu atrás da cúpula da Basílica de São Pedro, foi que Lorenzo reagiu.

Sem movimentos muito bruscos, ele puxou o carrinho de Gabriel para trás de si, o escondendo por completo com o seu corpo. O vulto se aproximou mais e, aparentemente, não estava sozinho, pois dois outros seres surgiram por detrás dele e pouco a pouco eles foram descendo até tocarem os degraus de entrada da basílica, ficando não apenas a alguns metros de distância de Lorenzo, mas também alguns metros acima dele.

A escuridão na praça não permitia que Lorenzo visse os rostos dos anjos, e esperava que o inverso também acontecesse, mas pela silhueta claramente masculina, Lorenzo presumiu uma única coisa: nenhum deles era a soberana Estrela.

O anjo mais à frente do grupo começou a descer as escadas vagarosamente e Lorenzo, em resposta a este gesto, puxou a arma do coldre sob a sua jaqueta, a mantendo escondida às costas por precaução.

— Faz apenas algumas horas que nos vimos, mas eu preciso perguntar, — o coração de Lorenzo veio à boca ao reconhecer a voz — você encolheu, Hunter? — e então os anjos atrás de Castelo ergueram as mãos e invocaram bolas de fogo do tamanho de bolas de basquete, o que iluminou significativamente a praça. Castelo deu um sorriso torto quando Lorenzo piscou repetidamente para ajustar sua visão à súbita claridade — Imaginei que não.

Lorenzo trouxe para frente do seu corpo a arma que antes escondia e a ergueu na altura dos olhos. Castelo terminou de descer a escadaria, mas não se aproximou mais, o que, sinceramente, não acalmou os nervos de Lorenzo em nada. O anjo não apresentava sinais de ferimentos, queimaduras, nada, e sorria de forma tão confiante e triunfante, como se já fosse vitorioso antes mesmo da batalha começar, olhando para Lorenzo de uma maneira que fez todos os pelos do corpo do caçador se arrepiarem de forma extremamente desagradável.

— Onde está a soberana Estrela? — porque Lorenzo tinha a certeza de que a sua mensagem havia sido para a soberana.

O sorriso de Castelo ficou ainda mais largo.

— A Soberana Estrela está ocupada no momento. Sabia que há uma saída do covil italiano bem em Pompeia?

No passado, quando os romanos adotaram os deuses gregos como religião, a história era de que a entrada para o mundo inferior, para o reino do deus Plutão, era aos pés do monte Vesúvio, porque fumaça era emitida pelo solo e havia enormes crateras de vapor quente na área. Centenas de anos mais tarde, Caçadores descobriram que as crateras eram as saídas de emergência do covil dos demônios.

Lorenzo não fazia ideia de como eles suportavam as altas temperaturas da região, mas especulações não eram exatamente o problema aqui. O problema era que os anjos estavam levando esta batalha propositalmente para o norte, com a intenção de causar um desastre natural no meio do caminho. Este era o pior medo dos Caçadores tornando-se realidade: uma guerra entre duas raças antigas que não estavam nem aí para os danos colaterais que causariam, leia-se: humanos.

— Mas então, a sua mensagem — nisto Castelo deu uma risadinha nada agradável — A mensagem de Hunter na verdade — disse com ironia, como se soubesse de algo que Lorenzo não sabia e o caçador não queria nem pensar na hipótese que o primeiro-ministro tinha a certeza que Hunter estava morto, quando a mente e o coração de Lorenzo ainda queriam agarrar-se a esperança de que o mestiço estava vivo — dizia que você tinha um assunto de extrema importância para falar com a  soberana Estrela. — Lorenzo não abaixou a arma, ainda mais quando Castelo deu um passo à frente, e calculou as suas chances de fuga bem-sucedida dali.

Lorenzo havia escolhido a praça de São Pedro por duas razões:

Era um espaço aberto, o que o deixava vulnerável, era verdade, mas também impedia ataques surpresas porque ele estava distante demais de qualquer canto da praça onde o adversário pudesse se esconder. Qualquer ataque que viesse de qualquer borda, seria prontamente visto por Lorenzo. 

A segunda razão era que Lorenzo conhecia todos os cantos do Vaticano, o que facilitaria a sua fuga se assim fosse preciso. Ele brincou de esconde-esconde com Marcelo ali, durante a sua infância, até algumas passagens secretas ele conhecia. O problema foi Gabriel que lembrou a Lorenzo de sua existência quando gorgolejou às suas costas, e fugir com um bebê a tiracolo, tendo três anjos na sua cola, com certeza seria extremamente complicado.

O sorriso de Castelo aumentou ao ouvir o barulho. Um sorriso tão cheio de dentes que lembrava a boca de um tubarão.

— Você trouxe a pequena aberração contigo, que meigo —– Castelo deu outro passo à frente, mas parou quando Lorenzo sacou uma segunda arma do coldre sob a sua jaqueta e a apontou para o anjo — Esperava conquistar o que com isto? A comiseração de Estrela? — Castelo gargalhou e Gabriel resmungou novamente às costas de Lorenzo, com certeza não gostando nada do som daquela risada. Lorenzo compartilhava com o bebê o desprezo pela existência do primeiro-ministro — Como você encontrou esta criatura? Como conseguiu trazê-la até aqui? — o caçador permaneceu mudo, sem reagir às provocações de Castelo, ainda parado feito uma estátua, somente com os braços em riste e apontando as suas armas engatilhadas para a testa do anjo — Não importa. Com ou sem o bebê, a sua súplica não surtirá efeito em Estrela. Demônios mataram Acqua e me atacaram, e isto foi o suficiente para ela declarar guerra.

Desta vez foi Lorenzo que deu um sorriso triunfante e Castelo fez uma expressão desentendida.

— Demônios te atacaram? Não sei como anda a sua memória, mas lembro bem de você ter invadido propriedade particular e aberto fogo contra um grupo de civis, mas vamos ignorar este fato por um instante e nos atrelar a outras informações. Como o fato de que quem matou Acqua, foi você — Castelo nem ao menos piscou diante da acusação. Na verdade, ele sorriu como se Lorenzo fosse um idiota, uma criança brincando de ser gente grande, e tivesse contado uma piada muito engraçada. 

— Vocês Caçadores e o seu dito ‘equilíbrio’. Pura hipocrisia vindo de criaturas tão mundanas, que foram escolhidas ao acaso e acham que podem ser a barreira que irá  evitar uma guerra que está destinada a acontecer há milênios. Vocês são apenas formigas perto de nós, apenas… — Castelo vacilou em seu discurso quando Lorenzo atirou no chão, bem perto do pé esquerdo do anjo.

— Esse discurso de superioridade já está me enchendo o saco. Vamos voltar aos fatos que são: você matou Acqua, e ponto final — Lorenzo rebateu com irritação e Castelo voltou a sorrir o seu sorriso de tubarão.

— Tem provas? — o anjo provocou e Lorenzo ficou em silêncio por um segundo antes de dizer:

— Sim — disse de forma enfática, em um tom que mostrava que não era apenas um blefe, era um fato, e o sorriso de Castelo rapidamente sumiu de seu rosto.

— Os ferimentos de Acqua foram visivelmente causados… — o primeiro-ministro argumentou, ao ao menos tentou. 

— Por garras — Lorenzo o interrompeu porque, verdade seja dita, ele já estava era de saco cheio de ouvir Castelo falar. A ladainha do anjo acabando com a sua já curta paciência — Verdade, mas o ferimento que a matou não foi causado pela garra de um demônio. O ferimento da barriga foi Peter querendo esconder que Acqua tinha acabado de dar à luz. Esconder de você que a gestação dela foi um sucesso. Que o bebê vingou. 

— O bebê que você pensa que pode proteger de mim — Castelo rebateu com desprezo. 

— Eu não penso — Lorenzo sorriu arrogante — Eu sei que posso protegê-lo de você. Mas antes que sangue comece a rolar e manchar solo sagrado, me esclareça uma coisa: por quê? Por que deste trabalho todo? Você sabia das vindas de Acqua para terra plana, foi o primeiro a saber da gravidez dela, então por que não simplesmente denunciá-la? Desmenti-la de tal maneira que Estrela jamais permitiria que a gravidez prosseguisse?

Porque após uma longa conversa com Peter, Lorenzo finalmente compreendeu por completo a situação. 

Acqua era curiosa, queria saber mais sobre os humanos e, segundo o que ela contou a Peter, ela não deixou o ninho completamente na surdina. Ela teve ajuda, ajuda de Castelo, ironicamente. Castelo respeitava a sucessora da mesma maneira que respeitava a soberana Estrela e a incentivou em sua pequena empreitada, mas o respeito desapareceu quando Acqua o procurou em desespero para dizer que estava grávida. E estupidamente achou que Castelo iria apoiá-la, ainda mais depois que disse ao primeiro-ministro quem realmente era o pai do seu filho.

— Seria fácil. Acqua já estaria desacreditada por estar grávida sem estar interligada, por descumprir regras ao vir para o território humano, quando todos sabem o quanto vocês anjos nos desprezam e nos evitam. Então, do jeito que você é um bastardo manipulador que conseguiu convencer soberana Estrela a ir para a guerra, também a convenceria de que Acqua estava mentindo.

— Eu sou bom, — Castelo guinchou, o típico som que indicava que um anjo estava a um passo de perder a paciência e atacar — mas não sou tão bom assim! Acqua tinha um poder de influência maior sobre Estrela, maior do que o meu. Ela ainda era a sucessora, a primogênita, a querida da soberana e as minhas mentiras não surtiriam efeito algum, as palavras de Acqua pensariam mais e Estrela esperaria a criança nascer para ter a prova dos nove, ver se o bebê realmente era o mesmo da profecia estúpida, e então ela veria que sim e seguiria com os planos de concretizar tal profecia. E eu me recuso a ter qualquer aliança com aquelas bestas dos infernos! Eu me recuso a ver o meu povo rebaixar-se dessa forma, humilhar-se dessa forma. 

— Demônios não são do Inferno — foi tudo que Lorenzo captou do discurso de ódio de Castelo. Geralmente estes tipos de discursos eram repetitivos em enfadonhos e não acrescentavam em nada na vida — Isto é superstição — finalizou em um tom de provocação e esta foi a última gota que entornou o copo da impaciência de Castelo, porque o anjo guinchou:

— NÃO INTERESSA! — Lorenzo piscou repetidamente diante da explosão do primeiro-ministro. O anjo estava com as bochechas rosadas e tinha um olhar alucinado, o olhar de alguém que perdeu completamente o juízo — Demônios são criaturas selvagens, bestas incontroláveis, e que não deveriam existir! Acqua mereceu a morte por ter cometido a heresia de se deitar com um e ainda produzir um herdeiro de uma profecia idiota que um humano nojento criou. No final das contas eu fiz a todos um favos — Lorenzo segurou um sorriso vitorioso ao ouvir a confissão. 

— Tsc, tanto ódio Castelo. Já pensou em procurar ajuda profissional? Há médicos para isto — Lorenzo zombou e Castelo guinchou mais uma vez de raiva.

— Dê-me a aberração! — Exigiu e Lorenzo recuou um passo, trazendo o carrinho de bebê consigo ao empurrá-lo para trás com o quadril, e manteve as armas apontadas para Castelo.

— Não! — Respondeu, petulante.

O segundo guincho do anjo foi mais alto e fez os ouvidos de Lorenzo doeram a ponto dele não perceber o ataque, e somente ter ciência do que acontecia quando já deslizava pelo chão de pedras, e só parou quando as suas costas encontraram uma das colunas do corredor que cercava a praça de São Pedro.

— Ei! — Lorenzo gritou ao ver Castelo aproximar-se do carrinho onde, agora, Gabriel chorava copiosamente, e ergueu as armas que felizmente não foram perdidas durante o seu voo raso, porém não teve tempo de atirar porque os dois anjos que acompanhavam Castelo pousaram na sua frente com um som abafado de botas batendo contra o chão, e bloquearam a sua visão do primeiro-ministro.

O anjo mais próximo, com dois tapas estalados e dolorosos, arrancou as armas das mãos de Lorenzo, enquanto o outro o ergueu do chão pela sua garganta, sibilando e guinchando algo que o caçador tinha a certeza ser uma ofensa.

— Eu tenho que apreciar a sua ousadia rapaz, mas esta guerra é necessária para eliminarmos o mal que são os demônios — Castelo falou enquanto se aproximava do carrinho onde Gabriel continuava a chorar histericamente.

Lorenzo debateu-se, mas cada movimento seu incitava o anjo que o prendia a apertar ainda mais o seu pescoço, comprimindo a sua traqueia de maneira extremamente dolorosa. Ele tentou pegar uma das armas sobressalentes que ficava estava sob a bainha de sua camisa, mas o outro anjo pareceu prever os seus movimentos e prendeu os seus pulsos de forma dolorida, as suas costas, o imobilizando por completo e o obrigando a observar com horror Castelo chegar ao carrinho de bebê e com um sorriso de triunfo, segurar na alça deste e o girar, colocando Gabriel de frente para ele.

— Mas o quê? — o sorriso de triunfo desapareceu do rosto de Castelo e em seguida a expressão dele contorceu-se em uma de pura raiva — O QUE SIGNIFICA ISTO? — O primeiro-ministro berrou e agora era Lorenzo que sorria triunfante, mesmo ainda estando imobilizado pelos outros anjos.

— Um dia é o da caça… — Lorenzo conseguiu dizer com uma voz rouca e em um ofego — Mas hoje é dia do Caçador — e no segundo seguinte uma flecha cravou-se aos pés de Castelo, e explodiu.

 

oOo

 

— ALESSANDRO, MEU IRMÃO DELINQUENTE favorito, preciso de um favor.

— Não tenho dinheiro — veio a resposta padrão de Alessandro e Lorenzo sorriu.

— É assim que você responde ao seu irmão que voltou dos mortos? — Lorenzo não via o rosto de Alessandro mas, pelo silêncio de três segundos dele, sabia que o caçula estava rolando os olhos diante do drama que o mais velho fazia.

Alessandro era o bebê da família, tinha finalizado o treinamento há poucos anos, passado no Teste dos Dezesseis, porém não estava caçando em campo porque foi decidido (leia-se Marcelo e Carmem depois do desastre que foi o teste de Alessandro, mas isto era outra história) que as suas habilidades seriam melhores utilizadas dentro QG.

Alessandro era o bebê e também um dos gênios da família (o outro era Francesco, mas este não era um geniozinho do mal como Alessandro). 

Como todos os irmãos Cipriani, Alessandro recebeu educação formal pelo clã, mas, diferente dos irmãos, graduou-se no ensino médio aos treze anos (dois anos antes em relação a Francesco, que era o outro que detinha o recorde de graduação mais jovem dentro da família) e dois meses depois conseguiu uma vaga em uma das mais prestigiadas faculdades de tecnologia da Itália. Na faculdade, formou-se três anos depois e agora era um dos analistas sênior do departamento de TI, no QG sob a praça Navona.

Você tinha um sistema que precisava ser invadido? Alessandro era o seu homem. Adolescente na verdade, porque ele só tinha dezenove anos.

Mas por que Lorenzo o chamava de delinquente? Porque esse garoto de dezenove anos conseguiu invadir o banco de dados da Interpol com a facilidade de alguém que acessa a sua própria conta de e-mail.

Foi para um bem maior!” Alessandro protestou na época, quando Carmem deu-lhe o sermão básico sobre os limites da legalidade e ilegalidade. Eles eram Caçadores, não criminosos. “Precisávamos dessa informação!

E iríamos obtê-la” Carmem rebateu irritada diante da teimosia jovem. Todos os seus netos eram teimosos, mas Alessandro tinha a teimosia dos Cipriani somada a teimosia natural inerente a todo adolescente que acreditava poder conquistar o mundo sozinho, sem a ajuda de ninguém. 

E quando isto acontecesse, a pista já estaria fria e a caça sumido do mapa” Alessandro argumentou como todo bom garoto de quinze anos, idade que tinha na época do incidente, e cruzou os braços sobre o peito e fez um enorme e adorável bico petulante. Carmem apenas rolou os olhos e percebeu naquele momento que discutir não seria a solução. Ações seriam a solução. Alessandro ficou de castigo por uma semana, sem acesso a aparelho eletrônico algum, e com um Caçador sempre na sua cola aonde quer que ele fosse, monitorando cada movimento dele.

Por isso que, quando terminou o treinamento, em vez de soltá-lo no mundo como era a regra para os Caçadores aprovados no Teste dos Dezesseis, Marcelo e Carmem decidiram manter Alessandro por perto. O garoto era impulsivo demais, inteligente demais, tinha uma boca grande e tendência a falar e agir primeiro e pensar sobre as consequências de seus atos muito tempo depois, e uma personalidade do cão. Carmem dizia que Alessandro era todo Giuliana elevado ao cubo e que era melhor, e mais seguro, mantê-lo por perto.

Lorenzo confessava que ele, assim como os seus irmãos, ficaram aliviados com a decisão de Carmem. Alessandro era o bebê da família e a ideia de que um dia ele partiria e ganharia o mundo era uma coisa que os irmãos Cipriani não estavam, e nunca estiveram, preparados para aceitar.

— Carmem me falou que você já havia entrado em contato. O que você quer? Estamos meio ocupados aqui. Sabe, há uma guerra acontecendo no subterrâneo, terremotos destruindo monumentos históricos e um QG inteiro para evacuar e enviar para a Base Suporte.

A Base Suporte era o segundo QG dos Cipriani e ficava no subúrbio de Roma, tão afastada do centro da cidade e do movimento, que transeuntes consideravam o local mal assombrado. A velha mansão de três andares e arquitetura medieval por fora parecia estar caindo aos pedaços, com trepadeiras cobrindo as suas paredes em quase a sua totalidade e um jardim de plantas e árvores secas e mato alto. Por dentro, a história era diferente, a sua estrutura era toda reforçada com ferro e concreto e ela tinha alicerces com sistema de amortecimento de impacto, paredes com resfriamento interno, e vidros a prova de bala. E havia um porão de dar inveja a qualquer porão anti ataque aéreo e que suportaria o impacto de uma bomba atômica.

Portanto, um terremoto não seria nada.

Parecia exagero? Apenas saiba de uma coisa: Cipriani eram paranoicos por natureza, ainda mais quando precisavam de um quartel-general tão absurdamente exposto sobre a superfície. O exagero, na verdade, era pouco para eles.

— Eu preciso que você rastreie um e-mail para mim — Lorenzo disse enquanto seguia para o quarto de Hunter, para encontrar o laptop deste sobre uma cama de casal.

Felizmente, ao ligar o aparelho, esse não pediu nenhuma senha de acesso o que, sinceramente, Lorenzo considerava uma falha absurda de segurança para alguém com a vida que Hunter levava, mas também não iria se queixar desse pequeno lapso que agora estava sendo muito útil.

Foi quando a máquina terminou de carregar e o papel de parede da área de trabalho apareceu, que Lorenzo ficou realmente surpreso.

O papel de parede era uma foto dele. Não muito bem focalizada, mas era claramente uma foto dele, e Lorenzo sabia que ela foi tirada na praça Navona por causa do cenário ao fundo.

A imagem foi feita com Lorenzo em movimento, e era apenas da cintura para cima, e foi capturada no momento em que ele estava com o tronco levemente virado para trás e olhando por sobre o ombro para algo ou alguém. A foto também era recente, porque a jaqueta de couro que Lorenzo vestia na imagem era uma que ele ganhou de Walter no Natal do ano anterior. Na verdade, Lorenzo desconfiava que a foto foi tirada durante as festas de fim de ano porque, além da jaqueta, ele usava um cachecol de lã de cor cinza ao redor do pescoço, luvas de couro e, ao fundo, alguns dos cafés que apareciam quase como um borrão estavam com enfeites natalinos.

— Lorenzo? — Alessandro falou do outro lado da linha em um tom de preocupação e Lorenzo piscou, voltando ao mundo terreno após passar alguns segundos dentro de sua própria mente, tentando compreender o que ele estava vendo.

— Eu estou aqui — respondeu, movimentando o mouse e clicando sobre o ícone do programa de e-mail, abrindo logo em seguida a pasta da caixa de entrada.

Hunter não tinha muitos amigos, estava claro, porque a maioria dos seus e-mails eram spam que passaram pelo filtro e chegaram na caixa de entrada, mais o e-mail que Estrela mandou dias atrás, o que dava o total de três mensagens. Lorenzo clicou na mensagem de Estrela, que era simples e breve, apenas pedia para Hunter encontrá-la em um certo local de Roma, em um certo dia e a uma certa hora, porque ela tinha um trabalho para ele.

— O que, exatamente, você quer que eu faça? — Alessandro perguntou enquanto Lorenzo clicava no botão de responder e abria uma outra caixa de mensagem.

— Eu quero que você rastreie um e-mail, quero saber onde está o destinatário.

— Sério mesmo, Lorenzo? Apenas isto? Pensei que fosse algo mais complicado — Lorenzo rolou os olhos e sorriu. O irmão sempre estava pedindo por um desafio, e sempre ficava absurdamente excitado quando o dito desafio envolvia fazer alguma coisa extremamente perigosa e beirando a ilegalidade, ou completamente ilegal. Alessandro precisava parar de ver séries e filmes policiais, ou de super-heróis que eram vigilantes em suas cidades, ou coisa parecida. A vida não imitava a arte. Na verdade, ela sempre conseguia ser pior e muito mais cruel do que a ficção. E, geralmente, não tinha um final feliz.

— O e-mail que vou usar é o d-hunter@mymail.it — Lorenzo franziu as sobrancelhas. D-Hunter? Desconfiava que este D abreviado seria o verdadeiro nome de Hunter, o nome que Angelina se divertia em não dizer para ele. Porém Lorenzo deixou esse detalhe de lado, por enquanto, e digitou uma resposta curta para o e-mail de Estrela:

"Preciso falar com você urgentemente, tenho informações importantes sobre a morte de Acqua. Encontre-me hoje, à uma hora da manhã, na Praça de São Pedro, Vaticano. H."

E clicou no botão de enviar.

— E então? — Lorenzo perguntou assim que recebeu um alerta de que o e-mail foi enviado corretamente.

— Espera que eu não faço milagres, ainda mais com um tablet e um wi-fi oscilando por causa dos terremotos — Alessandro resmungou e Lorenzo pôde ouvir o irmão murmurando uma coisa e outra, baixinho, do outro lado da linha, até que ele voltou a falar diretamente com Lorenzo — E-mail recebido e lido pelo destinatário.

— Pode localizá-lo?

— Quem?

— A pessoa que recebeu o e-mail. Quem mais? O computador onde ele foi lido. Pode localizá-lo?

— Às vezes você me ofende quando faz essas perguntas.

— Alessandro! — Lorenzo disse com repreensão. Estava com pressa e portanto não tinha tempo para os resmungos do irmão.

— Certo, certo. Estou fazendo uma triangulação do sinal de acordo com a rede que o destinatário está utilizando — dois minutos de silêncio se seguiram até que:

— E o vencedor é… O Vaticano?

— A pessoa que leu o e-mail está no Vaticano?

— Aparentemente sim. Um minuto — mais silêncio, por exatamente um minuto, até que Alessandro retornou a falar — E não, não é um celular, o que poderia explicar a pessoa estar no Vaticano, mas o IP identificado é de um computador mesmo, e este fica mais difícil de justificar a mobilidade — e subitamente um mapa do Vaticano surgiu na tela do computador que Lorenzo usava, com um ponto vermelho piscando em uma das construções do local.

Lorenzo não iria nem perguntar a Alessandro como ele fez aquilo, apenas se repreendeu por ainda ficar surpreso diante das capacidades do irmão em invadir algum sistema que fosse.

— Essa é uma das residências dos assessores do Papa. É onde o DeMarco mora. Você consegue acessar as câmeras de segurança? — Se era eletrônico e estava conectado a alguma rede, Alessandro podia invadir. Hoje tudo vivia de armazenamento em nuvem e conexão wi-fi, especialmente câmeras de segurança. Lorenzo apenas torceu para que as essas ainda estivessem funcionando, mesmo com os terremotos.

Desta vez Alessandro não fez um longo discurso de como se sentia ofendido com as perguntas de Lorenzo sobre se ele podia ou não fazer o trabalho, apenas o fez, e então uma imagem familiar surgiu na tela do laptop. Estava em preto e branco, com um pouco de interferência e sem som, mas Lorenzo reconheceu claramente a pessoa no vídeo, sentada atrás do balcão da recepção e digitando no computador, enquanto falava ao telefone.

Trinta segundos depois o ícone de e-mail do laptop de Hunter piscou com uma nova mensagem, que Lorenzo abriu para ler:

"Confirmado. Sb. E."

— Eu encontro vocês daqui a seis horas na Base Suporte, e peça para Walter entrar em contato com DeMarco — Lorenzo informou ao irmão. 

— Você soa como se estivesse planejando alguma coisa grande e perigosa.

— É porque eu estou — disse ao fechar a tampa do laptop e deixar o quarto de Hunter — E vou precisar de todo o armamento possível para este plano dar certo.


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