Em troca de seus segredos escrita por Sassenach


Capítulo 5
Tic toc




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Um dia para irmos para a arena. Estou no centro de treinamento, fazendo nós, pensando. Há dois dias tive aquela conversa com Haymitch. Ontem Katniss deu um show com o arco e flecha no simulador. Assim metade dos tributos quer mata-la e a outra metade quer se aliar a ela. E uma pequena parte quer aliar em algo muito maior que os Jogos. Se aliar à liberdade. Haymitch me disse para escolher alguém de minha confiança que eu acredito que pode ser útil para nós, alguém que esteja tão irritado com tudo isso quanto eu. Só há uma pessoa aqui que se enquadra nesses dois requisitos e ela está caminhando até mim com um machado na mão.

            — Hey Finnick — ela diz parando em minha frente, apoiando o machado no ombro direito — Quer atirar uns machados e umas facas por ai? Os alvos são fáceis demais... Pra mim. Pra você, no entanto... — ela ri provocativamente. Johanna é completamente temperamental, mas também é séria quando precisa, além de estrategista. Sim, ela pode muito bem se juntar a nós. — O que acha?

— Acho que temos coisas mais importantes para tratar — falo largando a corda e sorrindo para ela. Com um leve gesto de cabeça digo para que ela me siga. Vamos andando lado a lado até a área de treinamento de espadas, onde se luta em duplas. Encaro o tributo do 10 que está segurando desajeitadamente uma das espadas e ele a entrega para mim. Johanna pega outra e larga o machado num canto. — Pode vir Johaninha.

            A cada estocada que um dá na direção do outro nos aproximamos e aproveito esses segundos para falar com ela.

— Você só pode estar brincando — ela murmura quando aponta a espada para meu braço esquerdo e eu desvio. Travo sua espada com a minha e giro, tentando desarmá-la. Ela fica momentaneamente parada e aproveito para ir atrás dela e colocar rapidamente a espada na frente de seu pescoço, sussurrando em seu ouvido:

— Pense bem Johanna, isso é uma oportunidade real. O 13 está envolvido. Organizadores dos Jogos aqui mesmo estão envolvidos. É uma oportunidade real. — ela agarra meu braço e o torce, virando meu corpo e invertendo as posições. Sua espada está encostada em meu peito.

— Não fui muito com a cara da foguinho — ela fala. Katniss está passando por nós naquele momento e ambos a seguimos com o olhar. Ao mesmo tempo em que parece estar observando atentamente cada um, ela parece completamente alheia a tudo. Como ela pode ser o símbolo de uma revolução ou de qualquer coisa? — Eu realmente não fui com a cara dela, mas — Johanna tira a espada de meu peito e a joga no chão. Faço o mesmo com a minha — Estou com vocês. Não importa a quem eu tenha que me aliar. Se for pra me livrar do maldito Snow... Eu sou capaz de qualquer coisa.

            Ela sorri e se afasta.

...

            Como era de se esperar, a arena foi um pesadelo. Mas um pesadelo com hora para acabar, literalmente. Era um relógio, um maldito relógio. A cada hora um perigo, a cada hora um bestante, uma ameaça, um meio de nos matar. E sobreviver a cada batida do relógio infernal é ainda mais difícil quando se está acompanhado por alguém que não confia em você, mesmo que você salve a vida de alguém que ela ama, mesmo que você enfrente a tortura dos gaio tagarela para ajuda-la, mesmo que fique para trás lutando contra macacos assassinos para dar a ela uma chance, mesmo que tenha que assistir sua mentora e segunda mãe morrer no ácido para carregar o namorado dela nas costas, mesmo que você sinta a dor corroendo seu corpo ferido por ela... Katniss Everdeen é a pessoa mais egoísta e ingrata que conheço. Mas eu não a culpo. Com dezessete anos eu teria pensado da mesma forma se não estivesse muito preocupado em proteger Anne Cresta.

            Wiress e Beetee foram escolhidos por ela quando estávamos no centro de treinamento dos tributos. Por isso Johanna foi atrás deles pela arena, enfrentando seja lá o que teve de enfrentar e os trouxe até Katniss. E a garota ainda brigou pela estupidez de Johanna, o que devo dizer que foi uma burrice completa, levando em conta que Johaninha não costuma ser paciente com pessoas ingratas. Logo no começo, quando nos jogamos na água até a Cornucópia (o que com certeza foi a parte mais fácil de todas para mim), encontrei-me com Katniss diante das armas. Se eu não tivesse mostrado a ela o bracelete dourado que Haymitch me deu pouco antes de embarcarmos nos aero deslizadores para a Arena, provavelmente uma de suas flechas estaria enterrada em meu peito. E minutos depois, senão segundos, me joguei outra vez na água para pegar Peeta, que lutava, ou melhor, tentava matar outro tributo enquanto este o atacava. Peeta saiu vivo, por sorte.

            Mas não teve tanta sorte quando bateu de frente num campo de força, mesmo que Katniss tenha gritado avisando. Ele não apenas caiu no chão. Ele morreu. Morreu bem na nossa frente. Katniss ficou uns segundos sem reação, em choque. Então começou a gritar e a chamar por ele. Precisei empurrá-la de cima dele para poder fazer massagem cardíaca e os procedimentos básicos de recussitação. Um, dois, um dois, um dois, vamos Peeta. Um dois, um dois, um dois, reaja Peeta, vamos, respire, vamos, faça seu coração bater, não morra agora, não agora, vamos... E ele voltou. Ela se jogou em cima dele e o beijou. Senti-me envergonhado, não porque ela o estava beijando, mas sim porque, durante muito tempo, acreditei que tudo entre os dois era encenação. E de fato, no começo era, qualquer um podia perceber isso. Mas naquele momento, enquanto ela tentava decidir se chorava ou se o beijava primeiro, ficou claro o quanto ela o amava. Ninguém que visse os dois naquele momento duvidaria do amor de um pelo outro.

            Prosseguimos, Mags sobre minhas costas, Katniss ajudando Peeta a andar. O modo como ela me olhava, desconfiando de mim mesmo depois do que eu acabara de fazer, me dava uma irresistível vontade de atravessar o tridente por sua barriga. Ah sim, claro, ela estava grávida. Ele foi muito inteligente de inventar essa história. Precisávamos descansar então me ofereci para ficar de vigia primeiro. Como era de se esperar, a garota em chamas usou de sua costumeira simpatia para, indiretamente, manifestar o quanto odiava o fato de eu a estar acompanhando. “Aquilo que fiz lá atrás” disse irritado, segurando o tridente com força “Foi salvar a vida dele”. Aquela garota estava começando a me irritar, muito. E então, vencido pelo cansaço me permiti fechar os olhos por alguns minutos. No pequeno espaço de tempo em que pude me desligar do inferno ao meu redor e me concentrar apenas em meu subconsciente, sonhei com Anne. Sonhei com seu corpo magro e seus cabelos escuros flutuando sobre a água de um lago no Distrito 4. Ela sorria, seus cabelos tremulavam conforme a superfície inconstante do lago se mexia, e ela agitava levemente os braços para formar pequenas ondas. Então ela abriu os olhos de repente e começou a gritar.

— Finnick! Corra, levante, corra! — abri os olhos assustado e lá estava Katniss, gritando como louca, sacudindo meus ombros — A névoa, a névoa é ácida, corram! Corram agora! — névoa...? Atrás dela uma fumaça branca vinha se arrastando entre as plantas baixas. E por onde ela passava um barulho, um burburinho de destruição se fazia ouvir. Névoa. Ácida.

— Mags, levante, vamos! — minha mentora abriu os olhos assustada e quando viu o que estava acontecendo rapidamente pulou em minhas costas. Katniss ajudou Peeta a se levantar, com muita dificuldade e, na medida do possível, começamos a correr. Mas a névoa era muito mais rápida que nós, se aproximando depressa, ferindo, corroendo. Peeta não estava aguentando. Caiu no chão. Mags desceu de meus ombros e tentamos ajudar Katniss a erguê-lo. Eu pretendia levar os dois, Mags e ele em minhas costas, um em cada ombro. Seria difícil eu sei, mas eu tinha que conseguir, tinha que ser forte pra isso. Ele tentou se levantar, mas não conseguia.

— Ele não vai conseguir, está fraco demais. — Katniss dizia numa mistura de choro e pânico. Eu também estava em pânico. Olhava para ele e olhava para a névoa se aproximando rapidamente, e olhava para ele, e para Mags, e para a garota chorando e gritando, e pensava, eu pensava, tinha que ter um jeito, tinha que haver um jeito, eu precisava...

            Então Mags tocou meu ombro. Ela sorria, sorria como no dia em que nos conhecemos. Não como na tarde em que me convidou para comer um pedaço de bolo em sua sala de estar, não como no dia em que me consolou depois que voltei como vitorioso, não, ela sorria como no momento em que entrei pela primeira vez no trem para a Capital. Não era um sorriso de ternura, ou de compaixão, muito menos de pena. Era um sorriso de despedida. Mags tocou levemente meu rosto e beijou minha boca. E depois se afastou, andando na direção da névoa, andando até a morte, até o canhão soar.

— Mags. Mags! MAGS! — eu gritava, eu berrava, eu queria ir até lá, eu queria impedi-la, queria ir em seu lugar como ela fez por Anne, eu queria... Havia alguém gritando ao meu lado, alguém sacudindo meu ombro, gritando e chorando.

— Finnick nós temos que ir! Finnick precisamos sair daqui! Agora! FINNICK! — a névoa queimava a ponta de meus dedos enquanto a dor queimava minha alma. Virei-me para Katniss que ajudava Peeta a se levantar. Não pense, não pense Finnick, não pense, disse para mim mesmo. Agarrei o garoto e o coloquei em minha costas, correndo como podia, tropeçando, me contorcendo de dor enquanto era atingido pela névoa, chorando, grunhindo, andando. Continue, continue.

            Continuei até cairmos de um barranco. Os três rolaram sobre grama, terra e galhos, sentindo os cortes da madeira se unirem em tortura junto ás queimaduras da névoa. Rolamos até chegar ao que parecia ser uma praia. Ergui brevemente os olhos apenas para ver a morte se aproximando, literalmente. Já estava quase perdendo os sentidos quando vi, num último instante, a névoa se erguendo, como numa parede, parando... Desmaiei.

            Senti quando ela me chacoalhou dizendo algo sobre a água. “A água ajuda, ela ajuda com as queimaduras”. Sua voz tremia, não tanto quanto eu, agonizando no chão. Katniss e Peeta me seguraram, arrastando-me até a água. Provavelmente nunca senti tanta dor quanto no momento em que meu corpo tocou a água. Era uma mistura insana de dor e alívio. Ao mesmo tempo em que parecia piorar as feridas, ela fazia a névoa se dissolver e minha pele voltar ao normal. Eles molharam meus braços, pernas e cabeça, cada membro mais torturante que o outro, mas por fim, alívio. Puro alívio. Apenas para dar lugar a outra dor: a perda. Quando minha mente se livrou da agonia das queimaduras deu lugar a outro sofrimento que estava mascarando, o sofrimento por Mags. Quando todos estavam devidamente recuperados Peeta foi buscar água para bebermos. Alguns segundos para relaxar a mente, era tudo de que eu precisava. Mas eu deveria saber que na arena não há tempo para nada a não ser matar.

            Katniss estava dando seus pêsames quando suas pupilas começaram a se dilatar, fitando algo atrás de mim. Virei-me bem de vagar para dar de cara com macacos olhando para nós. Sim, eles estavam nos encarando e avançando em nossa direção. Katniss pegou lentamente seu arco e fui apertando cada vez mais forte o cabo de meu tridente. Ela chamou Peeta para que viesse até nós. E então o desespero começou outra vez. Katniss agarrou Peeta e começamos a correr, ela atirando flechas, Peeta esfaqueando na medida do possível, eu atravessando os bestantes com as lâminas do tridente. Não vi direito o que aconteceu, só o que percebi é que um tributo saiu do nada e se jogou na frente de Peeta. Só quando chegamos à praia, depois de quase ser atingido pelas garras de um macaco maligno, quando eles começaram a recuar outra vez para a floresta, vimos que era a morfinácia do 8. Eu ofegava, ainda ouvindo os ruídos dos macacos, as mãos tremendo junto ao tridente. Eles levaram o corpo dela até a água, onde um aero deslizador veio busca-la. Mais uma vez o canhão ressoou ao longe.

            Johanna apareceu pouco tempo depois, coberta de... Sangue. Uma chuva de sangue humano. Com ela vinham Beetee e Wiress, essa última repetindo constantemente as mesmas palavras “Tic toc, isso aqui é um relógio”. Eu teria parado para escutá-lo se não tivesse precisado impedir que Johanna desse uma machadada em Katniss. A garota reclamou do modo como ela tratava Wiress. Ah Katniss, se você soubesse pelo menos a metade... E então veio o que, ao meu ver, foi a pior parte. Um grito irrompeu no ar. Mas não era uma voz adulta, não parecia ser nenhum dos tributos. Demorou alguns segundos para que eu percebesse que Katniss estava gritando um nome, com os olhos arregalados, enfiando-se na mata como uma louca. “Prim!”, ela gritava “Prim!”. Primrose, a irmã pela qual ela se voluntariou. Mas não fazia sentido que a garota estivesse ali. Olhei para cima e me deparei com os gaio tagarelas. Corri atrás dela.

            — Katniss não! Não é ela! — consegui alcança-la e agarrei seu braço. Ela ofegava e olhava em volta, desesperada. Senti realmente muita pena dela naquela hora. — São gaio tagarelas, olhe — apontei para as aves que voavam ao nosso redor. Ela não parecia menos apavorada com essa revelação. Com a voz trêmula disse:

            — E como você acha que eles pegam os gritos? — eu estava prestes à responde-la quando ouvi uma voz. Meu sangue gelou, minhas pernas fraquejaram e então desatei a correr. “Finnick!”, Anne gritava por mim. “Finnick socorro!”. Todo o terror dos últimos anos começou a voltar em minha mente. O sonho em que ela estava vestida de noiva, as noites em que tinha pesadelos, a colheita, os gritos, gritos, ela gritava, eu tinha que ajuda-la.

            — Anne! Anne! ANNEEE!

Onde ela estava? Onde? Katniss agarrou meus ombros e começou a dizer o mesmo que eu dizia para ela. Certo, tínhamos que sair dali. Começamos a correr de volta para a praia e... Demos de cara com um campo de proteção. As aves infernais voavam ao nosso redor, agarrando e arranhando, bicando, gritando, enquanto socávamos a barreira tentando sair. Do lado de lá Johanna socava e gesticulava, tentando me acalmar. Gritos, de Anne, de minha mãe, de meu pai, meu pai que eu não via há tantos anos. Não, não pense Finnick, fique calmo, respire, calma, isso já vai acabar, não é ela, não é ela, não é... “Finnick não me deixe cair!”. Tapei os ouvidos com as mãos e cai de joelhos no chão, me encolhendo. Eu tremia, todo o corpo tremendo, calma, já vai acabar. “Aaaaaah! Finnick me ajude!”. Não é ela, as lágrimas escorrendo pelo rosto, mordi o lábio inferior, as unhas furando as palmas das mãos, não é ela. “Finnick não me deixe!”, “FINNICK! Socorro!”. Não sei quando acabou, só sei que de repente me vi de joelhos cercado de pássaros mortos com Johanna estendendo a mão para me ajudar. Agarrei sua mão e me sentei numa rocha. Os ouvidos zuniam, se eu fechasse os olhos poderia vê-la diante de mim implorando minha ajuda.

— Você tá bem Finn? — perguntou Johanna

— Tô legal — falei com a voz rouca, o rosto quente. Eu precisava sair dali. Agarrei meu tridente e cambaleando, a cabeça dolorida, caminhei até a praia. Dane-se os bestantes, dane-se a arena, dane-se os tributos. Só o que eu queria era um minuto de paz, pra por a cabeça no lugar. Talvez minha loucura me matasse antes de qualquer coisa. Entrei na água para descansar. Respirando com o ritmo da água. Meus pensamentos foram interrompidos por Katniss gritando, vindo de onde estava com Wiress, gritando “Relógio, relógio!”.

E então tudo fez sentido. A cada seção das doze nas quais a arena estava divida, havia um perigo, um bestante, uma ameaça, um meio de nos matar. Percebi o brilho nos olhos de Beetee quando alguém mencionou um raio que caia às doze horas. E ele explicou seu plano: eletrizar um fio com o raio, tendo uma de suas pontas na árvore e outra na água, de modo a eletrocutar qualquer um na região. Em troca: proteção. Minutos depois, enquanto caminhávamos até a árvore do raio, Beetee chegou perto de mim e quase num sussurro, por mais que estivéssemos um pouco atrás dos outros, perguntou?

— Está com o tordo? — fiquei momentaneamente confuso com sua pergunta

— Você quer dizer...?

— A garota, Katniss Everdeen. Imagino que esteja com ela, digo, que sejam aliados além da arena. — apontou discretamente para o bracelete dourado em meu pulso esquerdo — Falou com Haymitch ou algo assim? — assenti com a cabeça. Ele me estudou com os olhos, tentando analisar se eu mentia ou falava a verdade. Ao que parece acreditou em mim. — Bom, está de acordo com meu plano, com o fio, com a água...?

— É um bom plano, acho que vai funcionar.

— Ele vai funcionar. — disse com firmeza, me encarando como se eu fosse um idiota. — Eu sei que vai funcionar, é infalível. Mas... E se o objetivo não fosse matar os outros tributos? E se eu estivesse planejando, digamos, amarrar a outra ponta, que não a da árvore, numa lança, e depois arremessar a lança... No campo de força? Ainda acharia um bom plano?

— É um bom plano, acho que vai funcionar. — repeti. Ele era indiscutivelmente inteligente

E tudo teria corrido perfeitamente de acordo com o planejado se algumas coisas não tivessem acontecido. Em primeiro lugar: se Katniss não fosse tão desconfiada e aprendesse que “aliados” é uma palavra de forte significado, talvez não estivéssemos tão tensos. Talvez tivéssemos percebido quando Enobaria e Brutus se aproximaram e cortaram o fio de cobre. Talvez Beetee houvesse prestado atenção no campo de força à sua frente e não desse com a flecha nele, sendo eletrocutado. Johanna, depois de proteger Katniss e sair correndo, não teria precisado enfrentar Enobaria com seu machado e levado uma surra. E eu, talvez não tivesse a flecha de Katniss apontada para meu peito. Ela olhava desesperadamente para mim, para cima, para Beetee e para mim outra vez. Estava fora de si. Katniss não era uma assassina, mas mataria qualquer um que representasse uma ameaça à ela, sua família ou Peeta. Com todo cuidado do mundo e sabendo perfeitamente os riscos, disse em baixa voz:

— Katniss... — ela puxou a flecha — Lembre-se quem é o verdadeiro inimigo.

            Acredito que ela lembrou. E acredito que ela precise de uma terapia para tratar suas atitudes impulsivas. Uma delas foi pegar o fio de cobre e enrolar na flecha, esperando que o raio caísse. Ela pretendia arremessar a flecha na cúpula, mas acabaria se matando ao fazer isso.

            — Katniss se afaste dessa árvore!

            O céu começa a escurecer, o raio está cada vez mais próximo de cair. Não consigo me controlar e avanço em sua direção:

            — Katniss saia daí agora! KATNISS!

            As percepções seguintes são confusas: o raio cai, a flecha toca a cúpula e tudo ao nosso redor explode. Sou arremessado para longe, momentaneamente acima do chão, voando até que minhas e=costas encontrem o tronco de uma árvore falsa com a qual se chocar. O ar sai de meus pulmões com o impacto e caio sentado.

Minhas pálpebras pesam, mas tento focar em alguma coisa. Fogo, muito fogo, por todos os lados. Ouço um barulho se aproximando e olho para cima, bem a tempo de me desviar de uma viga de ferro que vinha na minha direção. Ela bate em meu braço e sinto uma dor aguda e profunda. Com certeza está quebrado. Katniss, onde ela está? Tomado pela dor, sentindo enjoos e dor de cabeça latejante, sinto que estou prestes a perder os sentidos, quando vejo uma sombra e sinto vento. Não sei quanto tempo se passa até que escuto um ruído de hélices, talvez cinco minutos ou uma hora. Olho para cima, um aero deslizador se aproxima. Dois na verdade. O primeiro está bem perto, alguns metros a frente, e quando ele baixa sua garra e a ergue novamente, reconheço brevemente o corpo magro que carrega. É ela, graças a deus, é ela, está inteira ao menos. Logo em seguida ele se desloca alguns metros e joga uma corda, para mim. De alguma forma engatinho até onde ela está e a agarro com toda minha força, com uma mão só.

            Uma vez dentro do aero deslizador, desabo. Sinto mãos me agarrando e instintivamente dou uma cotovelada para trás. Ouço o xingamento de uma voz rouca. Ergo brevemente o olhar para Haymitch. Nunca pensei que ficaria tão feliz em vê-lo. Ele e Plutarch, sim ele também estava lá, me ajudam a me levantar e andar até um assento. Alguém trás uma caixa de remédios e bandagens. Haymitch me ajuda a tirar rasgar a manga sobre o braço ferido e, quando o descobrimos, sinto ânsias. Está vermelho, inchado, um corte profundo onde a viga provavelmente bateu. Ele me dá morfina e alguém limpa a ferida. Depois tudo é enfaixado e coloco uma tipoia.

            — Cinco minutos para descansar. Depois venha até a sala à frente — diz Plutarch com sua frieza natural. É só agora que percebo como o odeio.

            Cinco minutos, certo. Respiro fundo, ainda meio tonto, a morfina ajudando a minimizar a dor. Olho para o lado e só então percebo que Katniss e Beetee estão deitados sobre macas com máscaras de oxigênio sobre o rosto. Estão vivos, ao menos estão vivos. Ficar sentado me faz sentir inútil, então me levanto devagar e vou até a sala de comando. Haymitch sorri quando entro e Plutarch permanece sério. Caminho até a outra ponta da mesa central, onde há um mapa e muitos, muitos dados desinteressantes sendo mostrados.

            — Muito bem. — falo com a voz rouca, respirando de vagar — O que aconteceu?

            — Muita coisa — Haymitch diz dando de ombros — Beetee tinha que ter lançado aquela droga de lança e feito o que a menina fez, mas acabou num campo de força e não acordou desde aquela hora. Sinceramente nem sei se vai acordar...

            — O que aconteceu com os outros? — pergunto com uma expressão séria. Ele se cala e fecha o rosto. Plutarch parece ser o próximo a falar, e se esse é o caso, posso esperar por más notícias. — Falem logo, onde eles estão?

            — Finnick... Brutus foi morto por Johanna, Enobaria levou uma facada de Peeta, mas sobreviveu — como se eu me importasse com Brutus e Enobaria — Johanna e Peeta foram levados. Pela Capital. O segundo aero deslizador veio ao mesmo tempo em que nós, cada um pegou quantos pôde, ou ao menos os que eram uma prioridade.

            Sinto uma tontura e fecho os olhos. Pegos, eles foram pegos. Eles foram levados para aquele covil. Com certeza seriam mortos, e se não fossem, ao menos passariam por torturas. Como Katniss reagiria ao saber que o garoto foi levado? Katniss... Ela era uma das prioridades, ela era o tordo, ela era um símbolo, não podia de forma alguma estar do lado inimigo. Mas... Eu? Por que raios eu seria uma prioridade? Por que eu tinha que estar com eles? Dessa forma me ponho contra a Capital. Mas não é como se pudessem me chantagear como com certeza farão com Katniss, usando o Peeta. Ah, é claro que eles podem, eles fazem o que quiserem. Olho para Haymitch e percebo que ele está me escondendo alguma coisa. Com tremor na voz pergunto:

            — Por que eu tenho a impressão de que vocês têm mais pra me contar? — Haymitch balança a cabeça e suspira. Plutarch permanece impassível com sua maldita frieza. — Falem logo!

            — Anne Cresta, Finnick! — diz Haymitch exasperado — Anne também foi levada! Desde que vocês vieram para a arena os pacificadores ficaram de olho nela. Quando a arena explodiu foram busca-la. Vão usá-la contra você, ou ao menos pra te atingir, como vão fazer com a garota.

            Por um momento fico sem chão. Sinto as pernas fraquejarem e caio, apoiando-me precariamente na mesa, com o único braço bom. Pressiono a testa contra o antebraço com força, tentando não pensar. Mas é impossível. Ouço a risada de Anne, seu lindo rosto em minha frente, seus olhos fitando os meus. Em seguida ouço seus gritos, implorando por minha ajuda. Lá está ela de novo, vestida de noiva, caindo, caindo, ela vai cair, eu vou perdê-la, eu não posso. Meu corpo todo treme e não tenho forças para me erguer de novo. Ouço os gaio tagarelas gritando com sua voz, lembro-me do choro dela no dia da colheita, lembro-me de como parecia aterrorizada quando ouviu seu nome. E uma única lembrança boa ressurge do fundo da minha mente. Somos nós dois, na semana em que nos conhecemos, quando ela era tributo. Uma noite de desfile, ela vestida com tecidos quase transparentes, azuis, como o mar. Uma coroa na forma de um tridente segura seus cabelos escuros para trás e a maquiagem ressalta seus olhos brilhantes. Ela estava maravilhosa, e quando me aproximei dela para beijá-la, tive a maior certeza de toda minha vida: eu amava. Eu amo. E por amá-la vou me levantar, vamos tirá-la de lá, ela vai voltar, ela tem que voltar.

            — E o que fazemos agora? — pergunto com a voz embargada.

            — Vamos para o 13 claro, é o único lugar para o qual podemos ir.

            Começamos a falar sobre a estrutura subterrânea do 13, mas não consigo me concentrar. Como poderia? Eles falam de andares, de armamentos, de defesas, de sistemas, e tudo em que consigo pensar é no corpo magro de Anne se contorcendo numa cela enquanto aplicam toda sorte de tortura nela. Plutarch continua falando sobre o que temos que providenciar assim que chegarmos, mas só olho fixamente para a mesa. Assusto-me quando ele repreende:

            — Senhor Odair, preste o mínimo de atenção. — olho para ele desconcertado e Haymitch interfere antes que eu fale tudo que está entalado em minha garganta.

            — Da um tempo Plutarch, deixe o menino em paz. Ei Finnick — olho para ele ainda em meu transe interno — Nós vamos resgatá-la, vamos trazê-los de volta, mas temos coisas pra fazer primeiro. A maior preocupação agora é encontrar abrigo e conseguir a proteção do 13. Eu prometo garoto, vamos dar um jeito.

            Nem tive tempo de agradecer. Ele mal terminou de falar e uma figura fantasmagórica armada com uma seringa aparece na porta da sala. Seus cabelos estão emaranhados e os dentes arreganhados como fosse um bestante. Ela olha para Haymitch e para Plutarch gritando, perguntando do que estamos falando. Então olha pra mim como se eu fosse um bastardo da Capital e a última pessoa que ela quisesse ver no momento.

            — O que ele está fazendo aqui? — viro o rosto. Não preciso de mais isso agora. — Cadê o Peeta? — Haymitch começa a andar na direção dela com os braços erguidos — Cadê ele seu desgraçado? Você disse que ia deixar ele a salvo! Você prometeu! — ele agarra o braço dela quando, trôpega, ela tenta ataca-lo com a agulha. Ele arranca de sua mão e ela começa a se debater. — Você prometeu, seu mentiroso você prometeu! — ele aplica morfina nela — Prometeu... prome...

            Ela cai como se estivesse morta, talvez tão morta quanto estou por dentro.


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