Em troca de seus segredos escrita por Sassenach


Capítulo 4
A garota em chamas




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É noite de desfile. Subirei em minha carruagem ao lado de Mags, daremos uma volta pela pista e pararemos diante de todo nosso público com a cabeça erguida e sorrisos estampados no rosto. Como estou fazendo agora. Olho para os tributos masculinos ao meu redor com a sobrancelha erguida, num desafio. E para os tributos femininos dedico os olhares sedutores. Cashmere balança a cabeça e sorri. Em alguns dias ela provavelmente vai sorrir desse jeito enquanto tenta me matar. Quando passo por Enobaria ela arreganha os caninos para mim. Sou obrigado a rir, imaginando como aqueles dentes rasgarão as gargantas alheias. Somos vinte e quatro. Vinte e quatro tributos que uma vez já venceram outros vinte e quatro... E agora apenas um de nós sairá com vida. De novo. Acompanhei seus jogos, o modo como jogaram, como mataram, como venceram.

Dentre eles Johanna Mason, que caminha até mim com um sorriso no rosto, falando um palavrão em alto e bom som. Os cabelos curtos com mechas vermelhas combinaram perfeitamente com seu temperamento. Não consigo evitar de sorrir quando vou até ela. É o mais próximo de amiga que consegui em todos esses anos.

— Vejam só! Meu modelo favorito está aqui! — ela me abraça e retribuo — Como vai Finn? Ah, porque eu não vou nada bem — e ai está a Johanna que conhecemos e amamos — Olha só, eu estava em minha casa, naquela porcaria que eles chamam de casa, e estava sentada na frente da minha televisão, aquela porcaria de televisão, quando aparece nosso querido presidente dizendo que, olha só, eu tinha que voltar pra essa porcaria! — diz “porcaria” pela milésima vez erguendo os braços, abrangendo tudo ao nosso redor.

— Ora Johaninha, não reclame tanto. Estamos entre amigos! — ela ri —  E veja só sua roupa. É uma incrível... — olho para seu corpo. O vestido que usa vai dos pés á cabeça, com uma armação em torno do pescoço. O cabelo preso no topo da cabeça, a maquiagem marrom. Ela parece uma... — Árvore? Os estilistas parecem inspirados esse ano.

— Há há ha — ela ri sarcasticamente — Não zombe de mim senhor Odair, estou resistindo à tentação de enfiar meu machado na sua testa — dá um soco em meu ombro — E o que dizer da sua roupa? Ou da falta dela... — Devo dizer que meu estilista se superou. Minha incrível “roupa” é constituída por uma rede cujas pontas fazem um nó que cobre os países baixos. E fim, nada mais. Mas é assim, quanto mais de Finnick aparece, melhor. Preciso admitir que estou incrível nisso. — Está mortalmente sedutor essa noite senhor Odair. — diz ela se aproximando de mim e pondo a mão em meu peito.

— Digo o mesmo, senhora Árvore — falo tocando seu rosto.

Johanna me empurra e ri. Depois se afasta para falar com o tributo masculino de seu distrito. Vou até uma mesa próxima onde uma pilha de torrões de açúcar me chama a atenção. Pego um cubo na mão e olho em volta. Lá está ela. A garota em chamas, Katniss Everdeen, acariciando o focinho de seu cavalo. Parece tão indefesa quando tudo o que tem é uma roupa que pega fogo... Mas todos conhecem seu potencial destrutivo com o arco na mão. Pego uma porção de cubos na mão e vou até ela com a melhor expressão sensual que consigo fazer.

— Oi Katniss — digo me aproximando. As faces da garota em chamas estão começando a pegar fogo.

— Oi Finnick — diz ela com a voz calma, casual, como se fosse uma velha amiga. Parece confiante, mas deve ter seu ponto fraco. Todos eles sempre têm um ponto fraco.

— Quer um torrão de açúcar? — falo estendendo a mão — É para os cavalos, na realidade, mas quem se importa? Eles podem comer açúcar por anos e anos ao passo que você e eu...

— Não obrigada — ela responde segundos depois — Mas adoraria pegar sua roupa emprestada algum dia desses — ela fala com um sorriso irônico, olhando brevemente para minha saia-rede. Sigo seu olhar e solto uma risada. Quer provocar garota em chamas? Bem, posso fazer isso a noite toda...

— Você está absolutamente aterrorizante nessa produção. O que aconteceu com os vestidos de menininha? — ela responde brevemente que ficaram pequenos. Isso me faz rir. Umedeço os lábios e ela parece ficar sem graça. Para mim isto está cada vez mais divertido. Seguro o colarinho de sua roupa. Katniss é realmente muito bonita. Acabo pensando em voz alta quando digo: — Você podia ter se dado muito bem na Capital. Joias, dinheiro, qualquer coisa que quisesse...

— Você gasta o seu com o que Finnick? — alguma coisa no modo como ela faz essa pergunta me faz sentir a vontade para responder sinceramente:

— Não lido com coisas como dinheiro há muito tempo. — então ela me pergunta como me pagam pelo prazer de minha companhia. A intenção era ser irônica, mas mal sabe ela o quão real essa situação é pra mim. Inclino a cabeça em sua direção para responder: — Com segredos — a respiração dela está acelerada, visivelmente sem jeito diante da nossa proximidade. Tento não ceder ao riso — E você garota em chamas, tem algum segredo que valha meu tempo?

— Sou um livro aberto — é o que ela responde, querendo encerrar a conversa.

— Infelizmente acho que é verdade — com o canto do olho vejo que o pobre coitadinho chamado Peeta Mellark está se aproximando. Ah, eu adoraria ver a reação dele. Sorrio para ela enquanto me afasto. Ponho outro cubo de açúcar na boca e vou embora com meu irresistível rebolado. Falar com ela foi estranho, mas... Interessante. Tudo isso está sendo estranho, estar aqui outra vez...

            Alguém cutuca minhas costas e ao me virar vejo Mags, esperando por mim. Seguro sua mão e a ajudo a subir na carruagem. E então o show começa. Conforme os tributos eram anunciados e suas carruagens entravam o público ia a loucura. Ouço quando anunciam: “Distrito 4, Finnick e Mags!”, e nossa carruagem entra, Mags sorrindo com os lábios fechados, a simpática senhora que se voluntariou por uma menina maluca. E ao seu lado eu, sorrindo e acenando, mandando beijos, piscando, rindo. As pessoas gritam meu nome. Eles me adoram. Eles me amam. Eles me veneram. Eles me querem, me desejam, me compram. E em poucos dias estarão torcendo por mim ou contra mim. Eu quero fazer alguma coisa, eu tenho que fazer alguma coisa. Algo que me liberte disso, de toda essa atenção forçada, toda essa exposição... Mas por ora é só sorrir. Sorrir e acenar.

            O desfile acaba e seguimos para os alojamentos. Pego o elevador até o andar de meu dormitório, por sorte, o elevador está vazio. Mags está conversando, ou gesticulando, com os tributos do 8. O vidro do elevador reflete minha imagem e fixo o olhar na rede. O que Anne pensaria se me visse assim? Um apito indica que cheguei. Caminho preguiçosamente para meu quarto, arrastando os pés pelo chão. A tributo do três está passando pelo corredor com pressa. Assim que a vejo endireito as costas e abro um sorriso. Ela me fita com impaciência e passa reto. “Boa noite para você também querida”, penso. Assim que entro caminho até o sofá mais próximo e me jogo nele. Apoio a cabeça num travesseiro e fecho os olhos. Levo um susto quando escuto um pigarrear. Ergo a cabeça e vejo Haymitch sentado no sofá à frente do meu. Que diabos ele está fazendo aqui?

— Boa noite Finnick — ele diz. Está com sentado com os braços cruzados, parecendo impaciente. Tento não deixar transparecer minha surpresa e sorrio para ele, deitando-me de lado, apoiando a cabeça na mão. Dobro uma perna e deixo a outra esticada, como se posasse para uma pintura.

— A que devo o prazer de sua visita Haymitch? — pergunto com a voz afetada. Ele franze o cenho e, atirando uma almofada em mim, diz:

— Poupe-me garoto, cubra isso — ele vira o rosto e percebo o por que: o maravilhoso nó não está mais em sua posição inicial. Ops — Não precisa encenar comigo menino. Estou aqui para falar de coisas sérias. Quero lhe fazer uma proposta. — ele ajeita o colarinho de sua roupa e parece terrivelmente sóbrio. É difícil reconhecer esse homem sóbrio. Da última vez em que o vi estava mais bêbado do que nunca esteve na vida. Sento-me com a almofada sobre o colo, mas as pernas abertas. Inclino-me pra frente.

— O que eu ganho se aceitar sua proposta? — pergunto sorrindo com o canto dos lábios. Ele parece irritado, então abandono o sorriso. Haymitch pula agilmente do sofá para uma poltrona à sua frente e arrasta a poltrona até mim. Está bem na minha frente, um metro de distância entre nós.

— Para começar — ele diz baixinho, quase sussurrando — Você nunca mais vai ter que fazer isso. Digo, essas coisas... — ele segura meus joelhos e fecha minhas pernas. Depois se aproxima ainda mais, como se alguém naquela sala vazia pudesse ouvi-lo. Por um motivo qualquer isso me deixa nervoso — E nunca mais terá que lutar nos Jogos, pois não haverá mais Jogos. Não haverá Distritos, nem nada disso. Você vai ser livre. É o suficiente ou quer mais alguma coisa? — estou mudo, não respondo. Haymitch se afasta e cruza os braços outra vez. Acrescenta num tom divertido — Ah, talvez você ganhe roupas mais descentes também.

— O que você propõe? — falo com a entonação mais séria possível. Ele parece satisfeito com meu interesse. — Como vai conseguir tudo isso?

— Não querido. Não sou eu quem vai, somos nós, todos nós, todos os envolvidos, e faremos isso graças a ela. — por um segundo não sei a quem ele está se referindo. Então a ficha cai — Isso, ela mesma, nossa menina carvão. Finnick, eu não sei em que mundo você vive, mas sei onde nós vivemos, eu, Katniss e Peeta, e vivemos num mundo de insatisfação e injustiça. E desde o ano passado, desde que ela fez aquele lance das amoras, as coisas mudaram menino. Há uma chama se alastrando pelos distritos, devagar é verdade, mas ela está lá. E queremos usar isso para...

— Uma revolta? Uma rebelião? Enlouqueceu Haymitch? — é a primeira vez em anos que eu discutia problemas de verdade com pessoas de verdade, não meus acompanhantes de marionete. O que Haymitch está propondo seria incrível, se não fosse impossível.

— Nós não estamos sozinhos Finnick, há líderes em todos os Distritos que podem se juntar à nós, há pessoas aqui mesmo... — arqueio uma sobrancelha e ele sussurra um nome, quase inaudível — Plutarch. E, além disso — ele se inclina abruptamente para frente — Temos o 13 ao nosso favor. — fico boquiaberto e repito o número que ele disse em voz baixa — Sim, sim, o 13 ainda existe, subterrâneo e está conosco. Eles são uma potência, podem enfrentar a Capital. E ainda vou falar com os alguns tributos, e outras pessoas de dentro pra ver o que podemos fazer com o...

— Haymitch — ele fica quieto quando chamo seu nome — Tudo isso é... Tentador, mas... Você acha mesmo que Snow não vai reprimir, não vai tentar...

— Obviamente ele vai menino. Não subestime minha inteligência, por favor. — irritar Haymitch era extremamente fácil — Pare de pensar que tudo vai dar errado. Se for para você pensar assim eu me levanto agora e vou embora. — fico mudo e ele relaxa os ombros, parecendo compadecido — Só quero saber se está conosco. — ele coloca a mão em meu ombro — Seja sincero Finnick, não está cansado disso tudo? — ele e olha de cima a baixo como se eu fosse o ser mais desprezível deste mundo — Não está de farto de ser usado como um boneco de pano por nosso querido presidente? — sinto as bochechas esquentarem. Ele sabe a resposta.

— É claro que estou — falo baixando a cabeça, me sentindo uma criança de dez anos — Quem não estaria? Olha pra isso — digo tirando a almofada de meu colo e apontando para o maldito nó. Taco a almofada longe — Isso é, é humilhante — ele aperta meu ombro em solidariedade e cubro o rosto com uma das mãos.

— Pense em Anne — ergo a cabeça e olho fixamente para ele — Pense na vida que poderão levar juntos quando tudo acabar. Pense em estar com ela todos os dias até o fim da sua vida, sem “emergências na Capital”, ou lá qual é a forma como você explica isso pra ela. — ele pigarreia e se endireita — Posso entender que está conosco? — aceno lentamente a cabeça em afirmação. Estou inteiramente dentro, não importa o quanto custe.

— Estou. Pela Anne. — e pela primeira vez na noite estou sendo... Eu.

— Boa noite Odair, é bom falar com você quando está sendo você de fato — ele diz adivinhando meus pensamentos. Então ele faz uma coisa estranha: ele sorri. Se Haymitch sorriu é porque o fim está realmente próximo.

— Volte sempre Albernat — digo ainda sentado no sofá enquanto ele vai até a porta e sai. Quando escuto a porta se fechar enterro o rosto nas mãos, apoiando os cotovelos nos joelhos. Um fim, um fim pra essa porcaria toda, nada de redes, nada de ameaças, nada de subornos, nada de segredos. Um fim. Será que isso é realmente possível? Desejo profundamente que sim.


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