Guertena escrita por KyonLau


Capítulo 3
Sua Figura Sombria


Notas iniciais do capítulo

Compensando minha demora de sabe-se lá quantos dias.... Tam-tam-TAAAAAAAM: capítulo 3 no mesmo dia! ♥
Aproveitem :3

>Soundtrack: "Disappearance"
https://www.youtube.com/watch?v=T6d9VEoWAdM



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Não pela primeira vez naquela tarde ensolarada a frágil porta de madeira do quarto de número 12 foi esmurrada pelo não tão frágil pulso de Ilka. Enquanto socava a porta com uma das mãos, a outra carregava um gato de pelagem preta e lustrosa. O bicho pendia molemente do abraço da moça, seus olhos estavam fechados e a ponta de seus bigodes pingavam sangue.

Ela bateu por longos cinco minutos até perder a paciência e chutar uma das milhares telas em branco, fazendo todas as outras que estavam recostadas à parede mal cuidada se espalharem pelo corredor.

Guiada pelo estrondo, uma senhora larga e de busto avantajado, vestida num avental cinzento cuja barra estava já puída pelo tempo subiu veloz as escadas de madeira que rangiam loucamente, o enorme rosto pintado de vermelho e uma expressão furiosa.

— O que você pretende fazer, menina? — esbravejou no momento em que chegou perto o suficiente de Ilka, ela mesma chutando algumas molduras pelo caminho — Destruir o hotel inteiro?

— E isso importa? Não é como se essa espelunca já não estivesse aos pedaços mesmo! — respondeu a outra sem nem parar de esmurrar a porta do quarto.

— Olha como você fala comigo, Ilka — esbravejou a mulher apontando o dedo na cara da mais jovem — Afinal, que bagunça é essa?

 Ilka parou de bater e, virando-se para a mais velha, as bochechas rosadas de raiva e os olhos escuros faiscando, praticamente esfregou o gato preto na cara da senhoria, que precisou se afastar para poder olhar direito.

— Olha isso, dona Bauer! Olha o que aquele maldito fez!

O animalzinho pendia sem um único suspiro de vida nas mãos trêmulas da jovem.

A mais velha examinou o bicho, das patinhas moles até o ferimento na cabeça. Franziu o cenho e coçou o queixo, massageando a enorme verruga que lá havia e causando em Ilka arrepios.

— Como sabe que foi ele? — perguntou por fim, num tom mais comedido, indicando a porta com o número 12 pregado à frente.

— Uma daquelas estatuetas horríveis dele estava caída ao lado do gato, quando eu o encontrei — contou Ilka — Cheia de sangue. Ele vive deixando aquelas coisas na janela sem nenhum cuidado!

— E o que você pretende fazer, vindo falar com ele? Esse bicho já morreu. Vai fazer o quê? Acertar o gato na cara dele? — e riu da própria piada.

Ilka precisou se segurar para não responder de forma mal educada. Era sua mãe, afinal de contas. Respirou fundo, recolhendo o pobre gato nos braços mais uma vez e contando mentalmente até dez para tentar se acalmar um pouco.

—Ele precisa entender que é só um ser humano como todos os outros — disse — E que precisa parar de agir como se fosse dono do lugar.

— É esse homem que nos dá a renda de que precisamos para sobreviver — lembrou Sra. Bauer num sibilo ameaçador e olhar decidido — Se ele não morasse aqui, e pagasse por isso, nós já teríamos sido despejadas.

Ilka bufou. Para ela, estar naquele hotelzinho decrépito de beira de estrada ou debaixo da ponte não fazia a menor diferença. E tratar como um rei um porco como aquele homem era ainda mais degradante.

— Você está com raiva, e eu entendo — continuou a dona do estabelecimento — Mas não vou permitir que fique arrumando brigas com nosso cliente. Além do mais — acrescentou enquanto virava-se para a filha e começava a descer os degraus para o andar térreo mais uma vez — Você sabe que mesmo se for discutir, não vai chegar a lugar nenhum com ele. É um sujeito muito excêntrico... Acho que todos os pintores o são — terminou vagamente — E limpe essa bagunça antes de descer, entendeu?

E saiu a passos firmes e determinados, deixando a jovem plantada no mesmo lugar. Não se sabia quem estava mais decidido a não se mexer, se era ela, ou o gato.

A primeira coisa que Iza pensou, parada em meio ao escuro, foi que a Galeria estava fechada, e ela ficara lá dentro. Seu coração batia forte à medida que o desespero aumentava. Um trovão chacoalhou as janelas e um raio cortou o céu lá fora, clareando por breves segundos o rosto pálido da menina.

No entanto, depois de pensar melhor, ela não precisava sentir tanto medo assim. Provavelmente fora apenas um apagão geral. E mesmo se a galeria estivesse fechada, certamente haveria algum funcionário, um faxineiro, talvez, que pudesse guiá-la para fora dali.

— Calma — disse para si mesma, respirando fundo — Calma, garota. Vamos sair daqui.

E dizendo isso, deu as costas para a janela, seguindo pelo corredor e evitando encarar O Mundo Fabricado novamente.

O plano era simples: refazer seu caminho até o primeiro andar. Mesmo assim, não era tão fácil quanto imaginou. Apesar de conseguir reconhecer os quadros e estátuas pelas quais passou anteriormente, a escuridão forçava-a apertar os olhos para poder distinguir algo além das silhuetas. Mais de uma vez ela se assustou com alguma forma estranha, mas continuava decidida a seguir em frente.

O silêncio combinado com o breu a fazia sentir-se dez vezes mais paranoica e logo ela se viu correndo, deslizando pelo piso e fazendo os tênis cantarem como pneus no asfalto sem o menor escrúpulo.

Iza não soube dizer quanto tempo ficou perambulando até finalmente distinguir com um alívio crescente a escadaria para o andar inferior, não muito a sua frente. Ela abriu um sorriso de alívio, que logo se apagou quando um miado ensurdecedor ecoou por toda a Galeria, fazendo-a parar, derrapando, o coração disparado e a respiração ofegante.

— Gatinho..? — arriscou a garota hesitante.

Mas não apareceu gato nem qualquer outro ser vivo que pudesse ter produzido aquele som.

Iza agora sentia as unhas fincadas contra a palma da mão a medida que ia fechando mais e mais seu punho. Olhou enlouquecida à sua volta. Aquilo era besteira. Tinha que ter alguém ali junto com ela.

O miado ressoou novamente, fazendo os quadros dependurados ao redor de Iza estremecerem em suas molduras.

E então a garota o localizou. Muito embora não estivesse nem um pouco preparada para aceitar uma hipótese tão absurda... Mas não havia mais nada, nem ninguém ali além dela própria e do pequeno quadro, localizado um pouco atrás de onde ela estava, onde a forma de um gato preto a espiava com seus olhos vivos. Eles estavam fixos em Iza e não iriam perdê-la de vista tão facilmente.

Por um breve momento, a garota sentiu a garganta seca e os olhos se encherem d'água.

Respirou fundo. Sentindo que as pernas não aguentariam outra corrida frenética, e amaldiçoando sua decisão de faltar às aulas de Educação Física desde os dez anos, ela recomeçou sua caminhada até as escadas, sem atrever-se a olhar o quadro com o gato preto novamente.

A visão da recepção foi como colírio para os olhos. Ela estava vazia, no entanto, isso já não importava mais. A menina passou direto e foi em direção às enormes portas de entrada sentindo um crescente nervoso na base do estômago. Elas estavam fechadas, mas nada a impediu de atirar-se contra as maçanetas.

Estavam trancadas, como a garota esperava, mas ela ainda tinha esperança de ativar alguma espécie de alarme.

No entanto, por mais que a maçaneta dourada girasse com violência para todos os lados possíveis, som nenhum, alarme nenhum, resolveu tocar. Iza permaneceu ali, insistentemente, por incontáveis minutos, até que finalmente desistisse.

— Droga! — esbravejou enquanto metia um chute bem dado na porta, que sequer tremeu — Argh!

E, largando a mochila ao seu lado, ela escorregou até o chão. De costas para a porta, abraçou os joelhos. Suas mãos tremiam e a vontade de chorar não passava. Tudo o que Iza queria era ficar sentada e esperar para alguém tirá-la dali. Mas algo lhe dizia, bem lá no fundo de sua mente, que isso não aconteceria. Que, de alguma forma, ninguém viria.

Ela não queria se levantar, muito menos se afastar da porta imponente. De alguma forma, era reconfortante saber que a rua estava logo ali. Mesmo assim, ela se levantou. Apanhou a mochila novamente e caminhou até a recepção ao lado da escadaria.

O velho e mofado livro continuava lá, aberto numa página qualquer. Mas suas páginas estavam todas rabiscadas num ímpeto raivoso, exibindo apenas uma frase: Venha para baixo.

Iza bufou. Até parece que ela iria fazer algo que um livro mandava. Aquilo era ridículo. Além do mais, não havia "embaixo" para onde ela pudesse ir. Havia apenas o andar onde estava e o superior, onde encontrara Ib...

Foi como se uma luz se ascendesse dentro da cabeça da menina. Ib! Ela certamente não tinha ido embora ainda. Se ao menos Iza pudesse encontrá-la...

Como que de repente, um barulho fraco se fez ouvir. Vinha da exposição, para além das portas do primeiro andar, e era como uma espécie de tosse repetitiva, como se alguém estivesse se engasgando. Talvez fosse Ib...Esse pensamento fez com que as esperanças de Iza crescessem mais uma vez. No entanto... Poderia ser outra pessoa. E se fosse esse o caso, quem seria?

A crise de tosse aumentava e parecia fazer com a urgência da decisão de Iza aumentasse também.

— Mesmo não sendo Ib, pode ser outro funcionário — disse para si mesma em voz alta e meio rouca, tomando a decisão.

A exposição do primeiro andar era separada da recepção por uma porta de vidro fosco. Quando se aproximou, Iza notou que ela já estava entreaberta, o que parecia confirmar sua esperança de ser um dos funcionários. A garota estendeu os dedos até a porta e a empurrou com leveza e cuidado. Quando finalmente a abriu por completo, as tosses pararam.

Ela se viu em uma sala quadrada e consideravelmente grande, o que era novidade, já que até agora só vira corredores infinitos no segundo andar. As paredes, é claro, estavam cobertas por quadros e mais quadros. Mas o que realmente chamou a atenção da menina foi o que havia no centro.

Cercado por cordões de isolamento, para evitar que as pessoas passassem por cima, havia uma espécie de pintura. Porém, uma pintura tão realista que facilmente se passaria por uma janela.

Sem conseguir conter sua curiosidade, Iza se aproximou um pouco mais. Os cordões de isolamento davam a volta, mas não se fechavam, o que permitiu que a garota se aproximasse mais. Era como se ela estivesse espiando o fundo do Oceano. A parte mais funda, a parte mais secreta. A forma de um enorme peixe encontrava-se em seu centro, um peixe horroroso, com dentes enormes e olhos mais profundos que o abismo em que nadava.

— O que será que esse cara tinha quando pintou isso, hein?

Vinda lá do fundo, uma pequena bolha de ar subiu até a superfície da pintura e estourou bem diante dos olhos perplexos de Iza. A garota aproximou-se até seus pés quase rasparem na borda da imagem. Queria agachar para poder ver melhor, mas ao mesmo tempo não queria. Enquanto encarava aquilo e tentava encontrar alguma explicação para o que vira, outras bolhas, um pouco maiores, subiram e estouraram. Parecia que havia alguém debaixo da água que estava se afogando. Mas o único ali era o peixe, que felizmente permanecia imóvel.

Vindo do nada, sem nenhum aviso prévio, Iza sentiu uma mão bater em suas costas e empurrá-la, fazendo-a despencar e cair de cara no peixe.

Iza fechou os olhos e projetou os braços para frente, preparando-se para o choque. Entretanto, ao invés da batida dura e fria que a menina esperava, ela sentiu os braços se afundarem na água que à pouco fora apenas tinta numa tela e, como se tivesse pulado numa piscina, ela afundou.

Sentindo a água gelada abraçar seu corpo, Iza procurou virar-se para ver o que havia acontecido.

Sua visão estava embaçada pela água e constatar isso quase a fez soltar a respiração, que prendia furiosamente. Havia um vulto escuro e turvo ali em cima. Ele a olhava, e ela devolvia o olhar. Tentou por tudo no mundo nadar até  a superfície novamente, mas uma forte corrente a puxava cada vez mais para baixo.

Para baixo.

Seus pulmões mal treinados clamavam cada vez mais por ar fresco e Iza, em meio ao tremendo esforço que fazia para não afundar, começou a sentir o peito queimar. Sua cabeça doía alucinadamente até que não conseguiu ver nada mais.


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Notas finais do capítulo

Não teve muito diálogo, né? Hahahaha x.x Desculpem por isso. É difícil fazer a personagem falar sozinha sem parecer maluca haushaushauhsua mas digam o que acharam o/



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