Guertena escrita por KyonLau


Capítulo 15
Olhos Vermelhos


Notas iniciais do capítulo

Ceeerto....
Repetição da Soundtrack parte 2!

Soundtrack: "Uneasiness"
https://www.youtube.com/watch?v=1EYnuMz9OjE



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A atmosfera estava cada vez mais pesada em meio ao pequeno grupo. Depois de derramar algumas lágrimas, Ib simplesmente virou-se de costas para os outros dois companheiros e seguiu caminho, sem dizer mais nada. Iza agora tinha certeza absoluta, assim como Ib, de que a mais velha já estivera na Galeria antes e, acima de tudo, com Garry. Estava, para dizer a verdade, ardendo de curiosidade par perguntar-lhe diversas coisas, mas sentia que agora não era a melhor hora. Contudo, uma coisa era certa: se Ib já estivera naquele lugar amaldiçoado antes e saíra, então por certo eles também poderiam fazer o mesmo agora. Aquilo fazia seu coração bater acelerado, esperançoso, e foi quase impossível segurar um sorriso diante de tal pensamento, no entanto, segurou-se. Aquilo não era hora e nem lugar.

Depois de ter se controlado melhor, ela olhou para trás. Galli a acompanhava de perto. Ele não notou a menina, entretanto. Seus olhos estavam fixos nas costas de Ib, como se estivesse hipnotizado e parecia estar imerso em pensamentos, tornando-o impossível de se entender naquele instante. A ruga provocada pelo franzir de suas sobrancelhas o fazia parecer um pouco mais velho do que era de fato.

Talvez ele estivesse preocupado, assim como Iza, mas não quisesse externar o que sentia ou pensava. Aquilo fez a adolescente finalmente se decidir a falar.

— Hm... Ib? — chamou baixinho.

Ib não parou, nem se virou, mas fez um sinal breve com a mão, indicando que estava ouvindo. Atrás de si, Iza pode ouvir Galli prender a respiração.

— Por acaso você pode me falar mais sobre você? Você esteve aqui antes, não é? Sei que não deve ser agradável, mas se você se lembrar como saiu, talvez tenhamos uma chance de escapar...

Uma risadinha se fez ouvir. Iza olhou para os lados e avistou o quadro de um palhaço na parede ao lado. Ele fazia malabarismos com algumas bolas coloridas, mas parara quando viu que a menina o observava e acenou alegremente. Sem saber como reagir, Iza voltou-se novamente para Ib, e logo dobraram o corredor, perdendo o malabarista de vista.

Por fim, Ib parou e virou-se para Iza. Seu rosto estava seco, mas os olhos ainda estavam vermelhos. Ela não conseguia olhar diretamente para a adolescente e manteve o olhar fixado nos sapatos.

— Eu... Eu ainda não tenho uma ideia clara do que houve — disse afinal, a voz trêmula — Eu era pequena... Não lembro direito como escapei. Mas eu lembro dele. De Garry.

— Ele te perseguiu da última vez também?

Ib balançou a cabeça violentamente de um lado para o outro.

— Não! Não... Eu não tenho certeza, mas... Garry me salvou — ela parecia estar cada vez mais distante — Foi ele que me tirou daqui. Ele era meu amigo.

— Seu amigo?

O tom de Iza foi categórico. Era quase impossível imaginar uma Ib em miniatura, sendo amiguinha com aquele cara alto, de olhos vazios e assustadores e um sorriso arreganhado. Entretanto, tudo o que Ib fez foi assentir devagar, ainda distraída.

— O resto é apenas um borrão — concluiu, dando de ombros — Mas agora eu me lembro ao menos dele. E isso deve ser o suficiente.

Seu tom decidido impressionou Iza, que lançou um olhar de esguelha para Galli, para ver se ele estava pensando o mesmo, contudo, o garoto ainda mirava Ib sem sequer piscar. Esta, por sua vez, virou-se e tornou a caminhar.

Continuaram em silêncio, afinal, Iza não sabia mais o que falar depois de tal declaração enquanto Galli e Ib talvez estivessem imersos em seus próprios pensamentos.

O final do corredor chegou não muito tempo depois. Ele terminava em uma escadaria que subia até uma porta. Curiosamente, aquela não possuía cor alguma. Era uma porta de madeira normal, recoberta unicamente em verniz. Decididamente não era a porta que levava à uma outra área. Era diferente e certamente não era diferente por motivo nenhum. Iza se aproximou dela e, levando a mão até a maçaneta e constatou que não se abriria.

— Deve haver uma chave, como em todas as outras — disse para os outros dois — Vamos procurar. Passamos por várias portas sem abri-las, não é?

Assim, deram meia volta e começaram a explorar. Abriram portas que davam nos lugares mais estranhos. Uma delas se abriu para aquilo que parecia a escuridão completa. Não era simplesmente tudo de um preto que não dá para se conceber na imaginação. Era profundo, como se absorvesse toda a luz a sua volta e Iza tinha a impressão de que, se estendesse a mão até ele, tocaria em algo sólido. Algo assobiava lá dentro, ecoando baixinho, passado por seus ouvidos, pela pele e pela espinha, provocando arrepios por toda a sua extensão.

Nenhum deles se atreveu a entrar. Iza fechou a porta sabiamente e eles foram até a próxima porta e assim seguiram. Ninguém parecia querer se separar e ficar sozinho, então mesmo que demorasse mais, todos seguiam pelos mesmos corredores, um de cada vez.

Abriram outra porta, provocando um rangido alto.

Nessa dava para ver seu conteúdo, felizmente. Iza deu alguns passos para dentro do quarto quadrangular. Havia dois móveis, um de cada lado do aposento, repleto de bonecos de pelúcia. Ao chegar mais perto, a menina os reconheceu como sendo coelhos, alguns eram rosas, outros de um verde bem leve, orelhas levantadas e olhinhos vermelhos de contas. Na parede ao fundo, um quadro de tamanho razoável retratando um dos coelhos rosados, o rabinho balançando docilmente. Debaixo dele, a plaquinha de identificação dizia seu nome: “Olhos Vermelhos”.

— Estranho! — observou a adolescente erguendo as sobrancelhas — Isso não parece nada com o que já nos deparamos antes nessa galeria, não concorda, Galli?

O menino se aproximara em silêncio e cabisbaixo. Quando Iza lhe virou o rosto, ele estava de olhos baixos, o pouco que dava para ver de seu rosto por debaixo do boné estava vermelho. Ele levantou a mão e segurou de leve a amiga pela mão.

— Iza, vamos sair daqui, por favor...

— Você está se sentindo mal? — ela perguntou, assustada — Dói em algum lugar?

O garoto sacudiu a cabeça, ainda sem encará-la.

— Não, não é nada di-...

Mas o barulho de um rangido fez os dois se sobressaltarem. Ib ainda estava do lado de fora, no corredor, e estava agarrada à maçaneta com as duas mãos, uma expressão angustiada estampada no rosto.

O coração de Iza saltou quando percebeu o que estava prestes a acontecer, mas já era tarde demais para tomar qualquer ação.

— Eu lamento muito — foi a única coisa que Ib quase sussurrou antes de bater a porta, fechando os dois menores do lado de dentro.

Iza correu até a porta e puxou com força a maçaneta, mas era inútil. De alguma forma, ela se trancara e não iria abrir por nada. Mesmo sabendo a inutilidade de tal ação, a menina não pode controlar o impulso de esmurrar a porta e gritar para que Ib voltasse. Obviamente, ninguém atendeu seus chamados.

— Não é possível! — choramingou.

Galli não disse nada, nem mesmo olhava para a porta. Em vez disso, seus olhos estavam pousados no Olhos Vermelhos. Ele encarava a pintura com seriedade, os punhos fechados. E então, as luzes se apagaram e os dois mergulharam no escuro total.

Instintivamente, Iza foi até onde estava Galli, guiando-se pela voz do garoto, enquanto tateava às cegas, as mãos à frente do corpo girando para todos os lados. Foi quase um alívio sentir as mãos menores do garoto agarrando as suas, um alívio que quase se apagou por inteiro quando uma risadinha gelada ecoou em seus ouvidos. Ela rasgava e doía e lembrava terrivelmente a risadinha de Garry, de uma forma infantilizada.

— O que foi isso? — Iza perguntou sem conseguir conter o desespero na voz.

Ela sentiu as mãos de Galli se apertarem ainda mais ao redor de seus braços ao ouvir aquela risada, o que foi resposta o suficiente para seus temores.

— Querem brincar de pique-esconde? — era como a combinação das vozes de uma porção de crianças ao mesmo tempo — Só uma de nós tem o prêmio...

A luz voltou.

A visão de inúmeras bonecas azuis de olhos vermelhos e vesgos receberam os dois. Estavam espalhadas pelo chão, pelos móveis, por todos os lados, cercando-os. Elas riam, zombeteiras, provocando um zumbido insistente, como o de mil abelhas enraivecidas.

Algo se mexeu.

Os olhos de Iza passaram do chão à parede a sua frente, num pulo de seu coração apertado. Embora os olhos vermelhos continuassem ali, já não pertenciam mais ao coelho fofo e alegre e sim à uma versão horrendamente maior das bonecas azuis. Duas vezes maior do que um ser humano normal, a boneca se mexia inquieta dentro da moldura, o sorriso costurado se contorcendo enquanto a boca se abria mais e mais. Um ruído gutural ecoou pelo pequeno quarto, fazendo Iza sentir o estômago cair aos pés. Com cuidado, ela pegou Galli pelo braço e puxou-o para perto de si, afastando-se pé ante pé até sentir as costas se encostarem na porta.

— Se você não achar o prêmio... Vai ter que pagar a prenda!

Várias risadinhas. Era ensurdecedor. Era insano.

A boneca levantou uma das mãos até a altura do rosto, os dedos finos passando pelo emaranhado escuro que era seu cabeço e enfim agarrando a moldura com tanta força que rachaduras começaram a estalar por sua extensão. Em um segundo Iza já havia entendido o que estava prestes a acontecer.

Olhou desesperada para os lados. De que prêmio eles falavam? Ela esquadrinhou todos os cantos, mas tudo o que havia lá eram apenas...

— Bonecas! Galli, temos que abri-las!

E, atirando-se ao chão, apanhou a boneca mais próxima e, com uma força que nunca pensou que teria antes, arrancou-lhe a cabeça, expondo seu interior repleto de palha, que caiu no chão. Não havia nada além daquilo, contudo, e a garota foi logo para a próxima boneca.

A outra mãozorra saiu da moldura e pousou com estrondo na parede ao lado.

Já era a terceira boneca que Iza dilacerava, sem encontrar nada dentro. Já estava começando a acreditar que estava enganada. Ela se virou, procurando Galli para ver se ele tinha tido mais sorte, mas deparou-se com o menino ainda de pé ao lado da porta com o olhar vidrado, a mão direita agarrando com força o braço esquerdo. Iza gritou qualquer coisa para chamar-lhe a atenção, as lágrimas embaçando seus olhos.

— Vem me ajudar!

A boneca conseguira içar seu tronco um pouco para fora do quadro agora. Seus olhos se arregalavam cada vez mais, e cada um olhava para um lado diferente, girando nas órbitas loucamente.

Galli, no entanto, ainda parecia indeciso. Olhava da boneca para Iza, que já voltara a rasgar todas as bonecas em que conseguia colocar a mão. Ele estava pálido e parecia estar prestes a chorar, mas engoliu em seco.

— Iza, e-eu... Eu não posso fazer isso...

Mas Iza já não prestava atenção. Na frente dela, a boneca gigantesca estendeu-se mais para frente enquanto a boca se abria continuamente e deixava escapar um líquido um pouco mais grosso do que água, vermelho vibrante, que caía ao chão, se espalhando, manchando. Um cheiro de tinta muito forte preencheu a sala. Os olhos pararam de girar e se fixaram nela.

O instante parou quando viu a pequena chave de cobre, de aparência meio gasta, entre seus dedos trêmulos. Ela não parou para comemorar ou avisar sobre o que encontrara. Simplesmente virou-se e derrapando sobre o chão liso, colocou-se de pé. A garota correu até Galli, que ainda permanecia imóvel, agarrando seu braço com uma das mãos enquanto a outra se ocupava em tentar enfiar a chave pela fechadura.

— Não vá embora, Iza — a voz volumosa fez vibrar os tímpanos da menina, os braços se estendendo lentamente, a nuca da garota pinicando — Fique comigo...

A chave se encaixou e foi virada com um clique que ninguém ouviu. Iza escancarou a porta e correu como nunca pensou que poderia levando o peso de Galli consigo, através do único caminho que conhecia. Passou pelas portas fechadas, sem se atrever a olhar para trás. Voou escadaria acima. Por algum milagre, a porta estava entreaberta, deixando uma nesga de escuridão espiar para fora. Nem isso fez a menina parar. Ela praticamente chutou a porta e, assim que terminou de puxar o pequeno amigo para dentro, bateu a porta novamente, fazendo-a estremecer dentro de seu portal.

Um barulhinho metálico indicou que a porta se trancara sozinha.

E silêncio.

Ele retumbava nas orelhas de Iza junto com as batidas aceleradas de seu coração descompassado. As mãos, ainda apoiadas na superfície de madeira da porta, tremiam cada vez com mais violência, travando alguma espécie de competição sádica com suas pernas bambas.

Não demorou muito para que ela finalmente desabasse no chão, sem forças para sequer olhar para cima, quando sentiu a mão leve de Galli em sua cabeça. Ela sentiu quando o menino se abaixou para ficar pertinho dela, mas ainda assim, não pode ver sua expressão.

— Desculpe, Iza — sua voz se fez ouvir, baixinha, macia — Desculpe não ter ajudado...

A adolescente fez força para balançar a cabeça numa negativa. O toque de Galli e o silêncio estavam finalmente diminuindo seu estresse. Seu corpo começou a ficar extremamente molenga, mas Iza levou a mão até a testa a fim de enxugar o suor que lhe escorria sobre os olhos, a respiração curta e quase asmática. O coração parara de ribombar, contudo, suas costelas ainda doíam.

— T-tudo bem... Sem problemas — disse debilmente — Mais importante... Precisamos saber onde estamos agora.

Pois aquilo que estava à sua frente era de certa forma, indescritível. Diferente dos corredores fechados pelos quais andara até aquele momento, aquele lugar era aberto e... Fechado ao mesmo tempo. A sensação era a mais caótica, onde as noções de apenas duas dimensões testavam os olhos. Eles estavam numa espécie de vila, com casas, árvores, flores. Todas desenhadas com giz de cera num fundo negro. E absolutamente tudo estava coberto com manchas de uma tinta azul. Uma plaquinha... Ou o desenho de uma plaquinha, se erguia, fincada no chão ao lado dos dois companheiros. Havia tinta ali também, espalhada de forma uniforme por toda a sua superfície pelo que parecia ser uma mão que era bem maior do que a de uma criança. Não dava para ver completamente o que estava escrito ali. As letras que estavam descobertas não faziam muito sentido: “Ca    o  e D  e  os”.

Uma voz rouca cantarolava alegremente. O homem esticou os dois braços e esfregou as mãos molhadas de tinta na parede. Desenho em cima do desenho. Era divertido, até. Aos seus pés, uma boneca azulada segurava a rosa de mesma cor, as pétalas pareciam estar se espreguiçando. Quando terminou, afastou-se para observar seu trabalho, satisfeito.

A figura rabiscada de um homem com o rosto escondido por tinta, de uma menina de cabelos castanhos e saia vermelha e de uma de cabelos dourados e um buraco azul no lugar de onde o coração deveria estar o observaram de volta.

Garry esfregou uma mão na outra e virou-se para trás.

— E então? O que achou, Ib?

A mulher, idêntica a menininha do meio que permanecera intacta por algum milagre, não ergueu os olhos, nem abriu a boca. Apenas respirou fundo.


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Notas finais do capítulo

Até o próximo capitulo! :3
#Peideiesaí