Alma Noturna escrita por Sama


Capítulo 5
Sans Ramen


Notas iniciais do capítulo

Atrasei um pouco, mas okay :/
Boa leitura!



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Acordo com a desconfortável - porém conhecida - sensação de solidão na cama.

Andy nunca passa mais que a noite com suas garotas.

Sinto meu corpo estremecer com esse pensamento, e logo o afasto. Sigo para o banheiro, tiro minha roupa e deixo a preguiça da manhã ser levada pela água quente do chuveiro. Analiso mais uma vez minhas coxas, onde as feridas já estão começando a melhorar. Visto calças largas e uma camiseta folgada, já que não pretendo sair de casa hoje.

Tomo um café decente, dessa vez, e vou para a sala, como sempre. Me jogo no sofá e puxo, de baixo da mesa de centro, um livro de feitiços. Deslizo meus dedos pela capa de couro, as letras douradas em baixo relevo, brilhando com a magia de um feitiço.

Ou talvez seja só o reflexo da luz.

Abro-o, procurando o último feitiço que tentei. Nunca consegui que um só desses funcionasse. Sei lá, acho que magia não é pra mim. Sussurro as palavras, concentrando todo o meu corpo nas letras cursivas e no efeito do feitiço. Tudo o que consigo é fazer as revistas que escondiam o livro chamuscarem e começarem a queimar.

Puxo as revistas, batendo a mão nelas até que se apaguem, então me recosto no sofá, olhando para o teto.

Por que nunca consigo algo certo?

Abro o livro mais uma vez, enfurecida, e procuro um novo feitiço, então pronuncio as palavras rapidamente, sem ao menos ler seu efeito.

Solto um grito quando um ponto negro se abre no ar, se expandindo e girando. Uma criatura escura, disforme e viscosa pula de dentro do buraco, e tudo o que consigo fazer é pular o sofá e correr para o meu quarto.

Um demônio. Você invocou um demônio, sua idiota.

Pego meu celular e ligo para a primeira pessoa que aparece na minha lista de amigos Dennitys. William.

Eu e a minha mania de deixar as listas organizadas de Z à A.

— Claire? - William atende.

— Acho que fiz merda. Estava tentando uns feitiços e... - solto um grito quando o demônio entra no quarto, saltando sobre mim. Rolo na cama, desviando dele, e corro de volta para a sala.

— Claire? - William repete, parecendo preocupado.

— Eu invoquei um demônio. - vou para a cozinha e pego uma das facas na gaveta.

— Você o que?! - ele grita.

— Foi sem querer! Vem me ajudar logo! - ele bufa, então desliga. O demônio rasteja do quarto até a sala, parecendo um pouco perdido.

Deve ter metido aquela cabeça feia e gosmenta na parede.

Epa, espere aí. Ele está sujando a minha casa com meleca de demônio!

— Ora, seu! - atiro a faca nele, mas me arrependo no mesmo instante. A lâmina o atravessa, como atravessaria gelatina, e se crava no chão, envolta em uma geléia preta viscosa.

Ele se vira para mim, recobrando a consciência, e voa em minha direção. Solto um grito, voltando para dentro da cozinha, e agarro outra faca. Aponto-a para o demônio, mas ele parece nem notar. Mais uma vez, ele ataca, e crava seus dentinhos dolorosos em meu ombro. Num súbito instinto de defesa, ataco-o com a faca, mas ela atravessa o demônio, se cravando no meu ombro.

Urro de dor, puxado a criatura de mim, mas ela é muito escorregadia. Sinto meu sangue ser sugado violentamente do meu braço, e isso me causa tontura. Caio de cara no chão justo quando William entra correndo na cozinha, armado algo estranhamente parecido com uma varinha mágica.

Revoltus Carmenae! - ele grita, e um raio azulado voa da arma. Por um momento penso que atingirá o demônio, mas a luz para de repente, como se ali entre nós houvesse uma parede invisível. Mas então, um buraco negro como o que abri pouco tempo atrás toma forma, sugando o demônio de mim. Logo que o buraco desaparece, solto um gemido, com a cara amassada no chão.

— Como diabos você fez isso? - William exclama, pausadamente.

— Eu estava com o Estrameno... - digo, rolando no chão para poder olhar para ele.

— Qual você recitou? - penso um pouco, mas não consigo me lembrar.

— Não li o nome.

— Tampouco os efeitos, não é?

— Tampouco? - ele revira os olhos cor de caramelo. William é um homem bonito, tenho que admitir. O apelido de "Shakespeare" se encaixa perfeitamente nele.

Ele tem cabelos mais longos, em parte lisos e em parte enrolados, como o de um cantor de uma boyband que vi em cartazes outro dia, porém negros. Está sempre de camisa bem passada, calça daquelas que se usa com terno e sapatos sociais.

Ele é rico, sim, mas não um daqueles que adoram esfregar na cara das pessoas a sua sorte. William não é nem tão magro, nem tão gordo, e seu corpo se encaixa bem nas roupas que usa. Nas poucas vezes que o vi sem camisa, pude confirmar que seu abdômen é quase tão lindamente intrincado quanto o de Andy, embora eu não goste muito desse tipo de coisa.

— Venha, deixe-me cuidar disso. - ele estende a mão para mim, mas recuso sua ajuda, me levantando sozinha - Meu Deus, como você deixou aquele demônio enfiar uma faca em você? - ele puxa o cabo lentamente, me fazendo estremecer.

— Eu não deixei. Foi um acidente. - William coloca a faca na pia, então abre um pouco mais o corte com seus dedos esguios.

— Ele drenou boa parte do seu sangue. Veja só, nem está sangrando tanto assim. - olho para o meu braço e vejo que é verdade. Pelo tamanho do corte, eu deveria estar ensopada de sangue, mas só uma fina linha vermelha escorre pelo meu braço.

— E como eu não desmaiei? - pergunto, me sentando na cadeira da mesa de jantar.

— É o que estou tentando entender. - ele abre as gavetas, uma a uma, até achar as bandagens, então umedece uma ponta para limpar meu ferimento - Seria de grande ajuda se você pudesse abaixar a manga da sua blusa. - encaro-o, perplexa.

— Grande ajuda? Quem fala isso? - mais uma vez, William revira os olhos. Puxo a manga da camiseta e ele começa o trabalho - Você pode me ajudar?

— Estou ajudando. - ele diz, concentrado.

— Ah, não com isso. Aquela coisa sujou minha casa toda. Me ajuda a limpar? - ele ri baixinho.

— Sempre adorei o humor dos Nightsoul. - franzo o cenho.

— Ahn? Como assim, sempre adorei? Mas eu sou a única Nightsoul viva... - ele balança a cabeça, e seus cachos pinicam minha pele.

— Eu conheci seus pais. Era pequeno, mas me lembro bem deles. Hector Nightsoul era um Dennity excepcional. - arqueio as sobrancelhas.

— Excepcional? Quem nesse mundo diz isso? - ele ri.

— Eu, Claire. - diz, apertando com força as bandagens em volta do meu ombro.

— O que era aquele negocio que você usou pra mandar o demônio embora? - pergunto, com a voz contida por causa da dor.

— Ahn, isso? - ele tira de novo o objeto do bolso, e agora vejo que é mesmo um tipo de varinha prateada, cheia de desenhos negros - É uma Platena. - inclino a cabeça em sinal de curiosidade - É como uma varinha, mas serve para mais algumas coisas.

— Tipo o que? - pergunto, tomando a arma de sua mão.

— Tipo atravessar gargantas de demônios. - deslizo meus dedos pela extensão da varinha, sentindo o baixo relevo dos desenhos incrustados no prata - Você gosta de tocar as coisas, né? - olho para ele, franzindo o cenho.

— Oi? - resmungo.

— Você sempre toca as coisas desse jeito. As armas, os pratos, as cicatrizes de Andy. - sinto o sangue quente ser direcionado para as minhas bochechas e tento ao máximo conter minha vermelhidão.

— Como você sabe? - pergunto, apertando a Platena.

— Ele me contou. Depois de Michael, sou a pessoa em que ele mais confia. - sinto meu rosto corar mais.

Pensei que eu fosse a pessoa em que ele mais confiava.

— Ah. - é tudo o que consigo dizer. Ele me encara por alguns instantes, como se quisesse dizer algo, mas então desiste.

— Por que você gosta tanto de tocar as coisas? - pergunta, acompanhando meus dedos enquanto volto a deslizá-los sobre os desenhos.

— Sei lá. Às vezes, se não toco nada, sinto meus dedos esquentarem e coçarem. É uma mania, acho. Quando fico sem analisar nada, começo a morder meus dedos até arrancar a pele. - digo, dando de ombros. Ele franze o cenho.

— E isso sempre aconteceu? - ele pergunta.

— Não. Começou há uns... - ouço alguém abrir a porta da frente, e logo algo cair com um ruído surdo no chão.

— Claire? - a voz rouca de Andy ecoa na casa - Claire?! - ele corre para o meu quarto, a respiração já começando a acelerar.

Eu e William observamos enquanto ele me procura no banheiro, então se vira para sair do quarto, encontrando meus olhos. A barreira dele desaba, como já vi acontecer muitas vezes quando ele realmente se desespera, e ele corre até mim, me apertando em seus braços.

— Cinco meses. - completo minha frase, soltando um gemido de dor - Ai. Meu ombro está doendo. - Andy se afasta, então segura meu rosto, apertando os dedos em minhas bochechas, como se não cresse que eu fosse real.

— Eu achei que... Tinha sangue de demônio por toda a sala... Pelos céus... - ele gagueja.

— Eu tô bem. William me salvou. - ele arregala os olhos ao ouvir o nome, então se vira para William, que exibe um sorriso entretido no rosto.

— Não sabia que nosso líder poderia parecer tão desesperado. - Andy fecha o rosto em uma expressão rígida, afastando rapidamente as mãos do meu rosto.

— Eu não estava desesperado. - ele rosna, puxando uma cadeira para se sentar. William se apoia na mesa.

— Por que você veio aqui? - pergunto, cutucando as bandagens em meu ombro.

— Eu fiz suas compras. - o rosto dele clareia, como sempre acontece quando ele se lembra de algo - Ah, elas estão lá na porta. - ele se levanta para pegar, mas William o impede.

— Pode deixar, eu pego. - diz, já seguindo para a sala. Andy volta a se deixar cair na cadeira, então olha para mim.

— Por que diabos tem sangue de demônio na sua sala? - pergunta.

— Eu estava brincando com o Estrameno, achei um feitiço e recitei. Você viu? Consegui conjurar um demônio! - ele me olha sério, e meu sorriso desaparece - Me desculpe. - sussurro.

— Eu deveria punir você... - ele rosna, tirando o cabelo dos olhos - Mas me sinto extremamente bondoso hoje. Então, essa vai passar. - solto a respiração, que nem sabia que estava prendendo, e uma onda de alívio percorre o meu corpo.

— Aqui. - William deixa cinco sacolas plásticas com o logo do Walmart caírem no chão da cozinha.

— Obrigada. - Andy diz, equilibrando a cadeira nas duas pernas de trás.

— Isso é incrível, não? - William pondera - Ela conseguir conjurar um demônio sem nenhum treinamento. Certo, era um Sans Ramen, mas isso não importa muito. Era um demônio, e ela o invocou. - Andy concorda com a cabeça.

— Talvez você tenha um dom pra isso. - diz, com amargura na voz - Não consegue matá-los, mas sabe invocá-los. Isso é deliciosamente estranho. - sussurra.

— Talvez não tão estranho assim. - William leva o polegar ao queixo.

— Dá pra vocês pararem de falar como se eu não estivesse aqui? - irrito-me, cruzando os braços, mas uma dor aguda me atinge no ombro, me fazendo gemer.

— Ora, é verdade. Você está aqui. - Andy diz, me encarando - Quem diria que consegue arrumar encrenca tão cedo num domingo! Você está sendo uma criança muito desobediente nessas últimas semanas, Claire. - sinto meu rosto queimar de raiva.

— Eu não sou criança. - digo, tentando dosar meu ódio no tom de minha voz. Ele arqueia as sobrancelhas.

— Não? - diz, rindo - Se não fosse, teria se salvado daquele demônio sozinha. - sinto meu coração acelerar.

Por que ele está fazendo isso?

— Andy? - William sussurra, também confuso.

— Sim? - Andy inclina a cabeça ao responder, mas William não diz nada. Pelo olhar rápido e quase imperceptível dos dois, percebo um entendimento. William sabe de algo que não sei.

Talvez Andy não confie mesmo tanto assim em mim.

Cerro o punho esquerdo em volta da Platena até meus dedos doerem. Andy franze o cenho.

— O que você tem aí? - pergunta. No mesmo instante, William empalidece.

— Nada. - digo, escondendo a mão atrás da cadeira.

— Me mostre, Claire. - ele rosna, rígido.

— Eu disse que não é nada. - William começa a suar. Num momento de distração, Andy puxa a minha cadeira e arranca a Platena da minha mão.

— Por que diabos ela está com isso? - ele rosna, se contendo para não gritar. Imediatamente, seu olhar se volta para William - Você deu isso a ela?

— Eu tive que usar para salvá-la, senhor. Eu só... disse a ela como funcionava. - a palavra senhor sai gaguejada e carregada de medo.

Não sei se é reconfortante ou aterrorizante saber que mais pessoas sentem medo de Andy.

— Você disse a ela o que é uma Platena? - ele se levanta num súbito, empurrando a cadeira com tanta força que ela cai para trás.

— Só a parte dos feitiços, senhor. - William diz, se agarrando mais à mesa. Andy passa as mãos pelo cabelo, então sorri, como se nada daquilo tivesse acontecido.

— Certo. - ele se senta de novo na cadeira, e William volta a respirar, a cor preenchendo seu rosto de novo lentamente.

Me levanto, com os punhos cerrados. Andy não me olha, simplesmente continua encarando o teto.

— Qual é a sua? - exclamo - Pensei que ele fosse seu amigo! Por que o tratou assim? - ele olha para mim calmamente, como se cogitasse me mandar calar a boca e ir brincar.

— Veja bem, você é minha amiga, e o que eu faço com você? Te torturo, não é? Por que seria diferente com ele? - de repente, sinto o ar faltar em meus pulmões.

— Por que está fazendo isso? - minha voz sai num sussurro. Ele me olha, entretido.

— O que, minha querida? - o sangue jorra em meu coração, levando toda a bomba de adrenalina para todo o meu corpo.

— Sendo um filho da puta desgraçado e orgulhoso! - berro, empurrando-o na cadeira, que quase cai para trás, mas ele se equilibra com um pé no chão.

Ele estreita os olhos para mim, então se levanta com graciosidade e rapidez. Antes que sua mão voe para o meu pescoço, William se põe entre a gente.

— Você bebeu, não é? - ele diz. Andy fecha o punho no ar, e de repente vejo o quão cansado ele está.

— Não conte aos mestres. Por favor. - ele sussurra.

— Não contarei. Mas é melhor você ir. Vou ajudar Claire com a limpeza. - os olhos de Andy de repente se enchem de tristeza.

— Eu posso ajudar. - ele diz, ainda com o punho parado no ar, a poucos milímetros do peito de William.

— Não, não pode. Volte para casa. E não vá de moto. - me surpreendo com a firmeza com a qual William fala agora.

Nem parece o homem que estava prestes a cagar de medo alguns minutos atrás.

Andy se afasta, então sai da cozinha. Esperamos o rangido da porta se fechando ecoar na casa, e só então relaxamos os músculos.

— Ah, merda. O que tem dado nele ultimamente? - pergunto, apoiando a testa no ombro de William.

— Quem diz ultimamente? - ele debocha, me fazendo rir baixinho.

 


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Notas finais do capítulo

~fazendo ritual dos comentários~



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