O CAMALEÃO SIDERADO escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 9
Capítulo 9




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/673114/chapter/9

Ao chegar no campinho não foi difícil ver a barraca de camping que fazia as vezes de casa para Franco. Ao lado havia carvão incinerado dentro de um forno de tijolos improvisados. Devia ter sido ali que ele queimara sua mãe. Olhou ao redor e viu o quanto aquele lugar era afastado dos primeiros aglomerados de palafitas que se debruçavam sobre o rio de esgoto. Juntou uns restos de galhos secos que o velho usava para acender o fogo e completou com qualquer coisa inflamável que ia encontrando por perto. Com um resto de cachaça no fundo de uma garrafa esquecida na entrada da barraca ele acendeu o fogo usando o isqueiro que trouxera de casa. Tornou a olhar ao redor para evitar testemunhas, jogou o conteúdo dos sacos quando o fogo já crepitava.

 

— Desculpe por isso papai.

 

Enquanto os ossos ardiam no braseiro, ele entrou na barraca. Viu uma cama improvisada com tres camadas de colchões velhos e forrada com pedaços de retalhos manchados de vômito ressecado. Várias garrafas vazias ao redor com larvas de insetos se mexendo dentro. Um cheiro de urina impregnava o ar viciado da barraca, que àquela altura se transformava numa fornalha ao por do sol. Uma pilha de papéis velhos tomava conta de um dos cantos e neles viu algo que lhe sugeria ser um carcomido álbum de fotos. Ao abrir, logo percebeu do que se tratava. Crianças de idades variadas, nuas e em poses nada convencionais. Folheou com horror aquele objeto de desejo de psicopatas e logo se deparou com uma imagem que tomou sua atenção. Aquele rosto, aquele rosto. Não! Como esquecer aquele rosto mais jovem! Era ela mesmo deitada na cama sorrindo com as perninhas abertas e dando tchau ao fotógrafo? Meu Deus, Selma! Não deveria contar com mais de quatro anos.

 

Diolindo não saberia dizer se ela lembrava do ocorrido, mas por via das dúvidas tirou a foto do álbum e a guardou no bolso, se recusando a ver quem mais fazia parte da subvida do pedófilo. Saiu da barraca enojado com o que testemunhara quando já não havia muita coisa dos ossos. Com apenas um dos sacos de aninhagem, recolheu o que pode das cinzas do seu pai e saiu daquele lugar macabro sem olhar pra trás.

 

Entrou em casa e logo viu Franco, que estava acordado e tentando se desvencilhar das suas algemas improvisadas. Pousou o saco num canto da sala e pegou a pá.

 

— Não, por favor meu bom homem, não. Prometo me comportar como um coelhinho da páscoa. Mas preciso muito tomar um trago, só assim consigo manter os nervos no lugar. Você consegue isso pra mim? Até uma cervejinha eu aceito de bom grado, já que não adianta pedir cachaça nessa casa não é? Você têm álcool de farmácia? Já me serve.

 

Ele tirou a garrafa de pinga de jaca da sacola e tirou a rolha. Pôs uma dose generosa num copo grande, pegou uma faca na cozinha e desamarrou as mãos do homem, mantendo as pernas presas.

 

— Obrigado meu caro, você não sabe o que esse gesto significa para mim. Não precisa ficar com essa faca na mão, não tenho nenhuma outra má intenção. O que fiz com os seus pais foi errado, mas você não me fez nada que eu não merecesse – Disse tomando um longo gole da bebida.

— Não fique bêbado, você vai me casar em alguns minutos – Proferiu Diolindo olhando atentamente as expressões no rosto do velho que não se alteravam com mais nada devido aos hematomas.

— Casar? Você está louco?

— Nunca estive tão sóbrio. Vou preparar a noiva para a ocasião. Para você trouxe todos os paramentos de padre. Quero que seja real, dentro da minha realidade. Não quero a versão longa, a curta já me basta. Ande com a pinga para deixá-lo pronto.

 

Pela primeira vez Franco teve medo do homem franzino a sua frente. Nunca em toda a sua vida mundana topara com alguém com aquele grau de alienação e olhos que pareciam fumegar em delírio. Aqueles sinais de desatino só poderiam piorar caso ele o perturbasse ainda mais. Teria que se comportar muito bem até pôr as mãos no seu diamante.

 

Diolindo e Desirée tomaram banho juntos enquanto ele cantarolava uma de Fernando Mendes.

 

Esse amor que eu trago em mim

Eu não sei se é certo

Encontrei o meu jardim

Em pleno deserto

 

Toda vez que tento te falar

Não contenho minha emoção

Eu queria dizer que te amo

Numa canção

 

Levou-a para o quarto e a vestiu como uma rainha. Como aquele vestido lhe caia bem. As mesmas medidas. Mesmo um pouco atrapalhado com a complexidade da roupa conseguiu deixá-la linda e perfumada. Deu-lhe um beijo na testa e foi arrumar o ex-padre que àquela altura parecia um gambá de tão bêbado e fedido. Arrastou-o sob protestos até o quintal e abriu a mangueira direcionando o jato d´água no homem que rolava no chão de cimento preocupado em não deixar a água entrar na garrafa que tampava com uma das mãos.

 

Depois de rasgar os trapos com a faca, Diolindo o deixou apenas com uma ceroula velha. Lhe jogou uma toalha para que se enxugasse, o que ele fez com receio da determinação que conseguia ver naqueles olhos faiscantes. Depois ficou de pé com dificuldade e se apoiando no muro vestiu os paramentos um a um como não o fazia há anos. Inicialmente não sentira nada tocando naquelas vestes cheias de significado.

 

Primeiro se ornou com a batina preta que significa a morte para o mundo, com trinta e tres botões (a mesma idade de Cristo) e cinco abotoaduras (as chagas de Jesus), pôs a casula que simbolizava a sujeição a Deus como um fardo que não é pesado, cobriu os ombros e o pescoço com o amito, pôs a túnica branca, o cíngulo e a estola que era como uma farda de polícia, ou seja, quando com ela, estava pronto para exercer os seus deveres eclesiásticos. Só lhe faltavam as bençãos de Deus e com estas não poderia contar. Lamentava por Diolindo e sua, digamos, futura esposa.

 

— Estou pronto!

— Ainda lembras do que tens que falar, não lembra?

— Sou bom de improviso meu bom homem. Já que não temos vinho canônico posso manter minha pinga no altar? – Indagou sério.

— Contanto que faça a sua parte.

— Você não vai se arrumar?

— Não preciso de roupas. Casarei despido dos males da consciência e dos prazeres mundanos.

E assim se despiu e ficou nu diante do velho que tentava ficar bêbado mas não conseguia.

 

Diolindo arrastou a pesada penteadeira de madeira da mãe para perto da cama, tirou-lhe o espelho e tudo o mais que havia por cima, pôs a bíblia da sua progenitora em cima e sentou-se com Desirée na cama, enquanto o ex-padre ficava do outro lado do que ele chamou de altar.

— Dê início – Ordenou o homem abraçado alegremente à sua futura esposa.

 

Franco pigarreou algumas vezes, abriu a bíblia, mas não quis se ater a ela. Quando daria início ao seu improviso, Diolindo o interrompeu.

— Espere! E saiu em direção a cozinha. Voltou trazendo a caixinha de cinzas da mãe e um punhado das cinzas do pai em um copo. Abriu a caixa e misturou-as. Tornou a fechá-la e pôs a caixa no altar improvisado.

— Prossiga.

O ex-padre tendo ali a sua frente duas de suas vítimas transfiguradas em pó, começou a suar, mas seguiu adiante, temendo alguma reação intempestiva do homem.

— Diolindo e Desirée, estamos aqui para celebrar o vosso matrimônio, que ele seja firmado com o sagrado selo de Deus. Cristo vai abençoar o vosso amor conjugal, vai fortalecer-vos com esse sacramento para poderdes assumir o dever de mútua e perpétua felicidade e as demais obrigações do matrimônio. Diante da igreja, vou, pois interrogar-vos sobre suas disposições.

 

Quando Franco já caminhava para abreviar a cerimônia improvisada, alguém bate a porta com insistência. Franco olha pra Diolindo que sai de um transe momentâneo e se dá conta da situação. Algo no seu interior pedia para ignorar o ser lá fora, mas o lado que implorava sanidade com uma voz fraca e rouca se fez ouvida por ele. Pôs rapidamente a calça e uma camiseta e foi ver quem era que tinha se auto convidado para o seu casamento. Como sua porta não era dotada de olho mágico e na cabeça dele era muito estranho perguntar quem era que batia antes de abrir a porta, então abriu logo. E ficou meio confuso com o rosto que viu.

 

— Atrapalho alguma coisa Lindinho? – Questionou uma Selma vestida para matar com uma calça de veludo cotelê bege e um top branco.

Ele achou que ficou tempo demais sem responder e gaguejou atrapalhado.

— Na...na..não. Imagina. A que devo a honra? – Respondeu embarreirando a porta para que ela não viesse a se convidar a entrar, ou apenas para dizer sem palavras que não era uma boa hora.

— Como você vai sair travestido de noiva no carnaval sem um buquê nas mãos? – Falou a mulata levantando as duas mãos juntas segurando um lindo buquê de margaridas colhidas há pouco.

— É ver..ver..dade você têm razão – Retrucou sem jeito tomando-lhe as flores das mãos um pouco rápido demais.

— Lindinho você está bem? Há alguém aí com você? Me desculpe se eu.....

E foi interrompida por uma voz de homem vinda de dentro da casa.

— Lindinho, vamos terminar logo com isso por favor, aqui tá muito quente! – Implorava Franco lá do quarto.

—Êi, eu conheço essa voz. Franco esta aí com você? Pra terminar o quê? Não me diga Diolindo que vocês dois estão, estão.... – Ia dizendo a mulata ao mesmo tempo em que o seu rosto se fechava numa decepção dolorida.

— Claro que não Selma, por favor, me ouça.

— Me deixe entrar por favor. Esse homem pode lhe fazer mal.

Como não queria que ela fizesse mal juízo dele, ao menos sobre uma possível relação carnal entre ele e o velho, ele a deixou entrar entregando aos céus a interpretação que ela teria ao se deparar com a cena que estava montada no seu quarto.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O CAMALEÃO SIDERADO" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.