O CAMALEÃO SIDERADO escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 8
Capítulo 8




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A terça feira gorda já havia amanhecido. Saiu cedo de casa, não sem antes se certificar que Franco estava bem imobilizado e dar-lhe água. O filho da puta havia cuspido na sua cara, mas aquele gesto só piorava as coisas. Para ele. Já tinha um roteiro traçado e foi cumprí-lo à risca. A igreja estava fechada, mas sabia como entrar ali com facilidade. Nunca havia roubado nada na sua vida, mas consideraria aquele ato como um empréstimo. Entrou sorrateiramente nos aposentos do Padre Getúlio e pegou o que precisava, pondo tudo numa sacola de viagem, com cuidado para não fazer barulho ou deixar pistas. Saiu da casa de Deus pé ante pé, pedindo perdão pela invasão. Passou no boteco e viu Selma servindo dois clientes no balcão.

 

— Vai viajar Lindinho?

— Não. Vou levar umas roupas de Mamãe pra doar no asilo.

— Vai querer alguma coisa?

— Bote uma daquela de jaca, e me venda uma garrafa.

— Vai ter festa em casa?

— Não.

 

Pra desconversar, Diolindo lembrou do embrulho.

— Eu esqueci outra vez de levar o embrulho – Disse levando o copo com a bebida à boca.

— É verdade. Se você não aparece aqui eu ia bater na sua porta.

Ele quase regurgita a bebida só de pensar na cena que Selma poderia encontrar. Um homem amordaçado espancado e sangrando na sua sala e sua Desirée inconsolável na cama.

 

— Selma, você sabe onde eu consigo um vestido de noiva com urgência? – Questionou tentando soar o mais normal possível.

— Meu Deus, quem vai casar assim de última hora?

— Ninguém. Era pra mim mesmo – E deu outro gole na pinga de jaca olhando a cara de espanto da mulata, que hoje vestia uma calça de elastano zebrada. Onde ela arranjava aquelas calças?

— Quê?

— É um sonho antigo sair travestido no carnaval. Não me olhe assim. É só uma maneira de celebrar a vida sendo outra pessoa, já que sendo eu mesmo, acho que não consigo.

Dito daquela maneira, a vontade dela era de segurar o homem no colo.

— Vixe, agora você me apertou. O único vestido de noiva que consigo assim rápido é o da minha Mãe. Mas é uma relíquia de família que já foi usado pela minha irmã de criação e está aguardando a minha vez. Mas nem sei se um dia vou querer isso pra mim. Não desse jeito, da maneira tradicional.

— Eu acho que entendo você. A pompa, a tal da pompa, do protocolo. Tudo pra manter as más línguas no seu devido lugar, ou seja, dentro da boca – Dito isso, ele riu sozinho.

 

Selma ficou a li pensativa, como a não acreditar que Diolindo estivesse falando a verdade. Mas com o que esse homem tinha passado na sua vida era pra estar internado no manicômio e não querendo se divertir. Achando que valia a pena emprestar o vestido, lhe disse.

— Vou emprestá-lo. Prometa apenas não derramar cerveja nele e não sujá-lo de batom ok? Há, tente não urinar nele também!

— Muito justo – Relutou em mostrar a surpresa na cara, mas exultante que estava por dentro não deixou de pegar a mão da mulher e beijá-la delicadamente. Com o crescente movimento do bar, ela deixou um funcionário no seu lugar e lhe trouxe alguns minutos depois uma caixa enorme. Abaixou-se atrás do balcão e pegou o embrulho que ele pedira que guardasse. Embrulhou uma garrafa da pinga famosa e o viu partir. Não parecia feliz, ao contrário, lhe parecia ansioso, talvez até com medo nos olhos. Achava que aquela estória estava mal contada, mas não iria se intrometer na vida do homem por quem se apaixonara há muito tempo e somente agora se dava conta.

 

Diolindo saiu apressado do bar carregado de sacolas e logo chegou em casa. Sabia que Selma não havia acreditado numa só palavra sua a respeito de sair travestido no carnaval. Ele teria coragem pra muitas coisas nessa vida, mas se vestir de mulher nem que fosse pra escapar da forca. Nunquinha. Aquilo tinha outro propósito e ele estava perto de acontecer.

 

Entrou em casa, largou os embrulhos e foi esquentar o resto da sopa que estava na geladeira pra alimentar o verme. Quando chegou com um prato, ele estava acordado. Os olhos estavam quase fechados de tão inchados e roxos, mas o seu semblante era de alguém que estava ali para almoçar num restaurante caro. Era muito topete para Diolindo suportar. A vontade era de aplicar-lhe mais uma dose do remédio que lhe dera por toda a noite, mas se conteve. Queria saber o que o desgraçado teria para lhe contar.

 

— Lindinho, meu bom homem. Agora já não sei se tão bonzinho assim – Balbuciou passando a língua num pedaço de sangue seco no canto da boca. – Quase me mata e agora quer me alimentar. Para que me queres vivo? Porque não acaba o seu trabalho de uma vez?

—Porque quem vai trabalhar aqui é você.

Sem entender, o velho olha o prato de sopa.

— Essa sopa tá uma merda – Disse fazendo uma careta.

— Como sabe?

— Porque fui eu quem fiz. Você gostou da cena romântica que preparei pra vocês dois? Sua bonequinha sentadinha de pernas cruzadas com um pratinho ainda fumegando, esperando o seu amado? E a bosta que deixe boiando no seu vaso sanitário? Você limpou a bundinha dela também?

— Cale a sua boca, seu pedófilo desgraçado – Diolindo reagiu e instintivamente jogou a sopa quente no peito do velho.

— Ahhhh! Seu merdinha. Seu filho da puta, é isso que você é. Sua mãe era uma vadia lá na boca do inferno, perto de onde o esgoto da favela inteira chega naquela merda que chamam de rio. O rio das tripas alheias. Vendia o corpo onde a bosta dos outros se misturava. Naquele época ela era bonitinha, valia a pena investir pra comê-la.

 

Diolindo tapava os ouvidos com furor e andava em círculos na pequena sala, alucinado com tamanho desaforo vindo daquela boca imunda. Pensou em pegar a pá, mas precisava daquele miserável. Ele entrara na sua casa mais de uma vez e deveria saber muito mais. Quanto mais?

 

— Não perca a cabeça Lindinho! Aliás como aquele esqueleto desmontado lá no quintal. Você deve ser mesmo o idiota que a sua Mãe falava que era. Como é que vive com uma boneca achando que é gente? Como é que a trata como se fosse humana? É só uma boneca porra! Bem real, impressionantemente real, mas no fim é só uma porra de uma boneca, compreende? Não, você não compreende. Você é um merda de um retardado de bosta. E ainda por cima chegou quando eu já tava quase gozando. Ou você acha que eu só curto garotinhas?

— Como aquela que você matou? – Gritou Diolindo chorando de raiva.

— Você não sabe de nada. Aquela menina fodia como uma mulher. Por isso cansei dela, e quando me ameaçou eu não deixei barato. Sabia que você ia levar o cão pra enterrar com a sua mãe. Aahahah! Tão previsível, meu bom homem.

— O que você fez com o corpo da minha Mãe?

— Ela tá em cima da geladeira, bem ali – Apontou com o beiço inchado para o eletrodoméstico.

Diolindo viu apenas o pinguim de louça, um vaso de flores artificiais e algo parecido com uma caixinha de jóias. Aproximou-se e pegou a caixa. Ao abrí-la viu o pó. Não era pó, eram cinzas.

 

— Não tinha grana pra cremar, então queimei mesmo. Lhe poupei das suas viagens noturnas.

— Como você sabe disso?

— Tinha meus motivos para vigiá-lo de vez em quando. Você nem mesmo sabe do que sua Mãe morreu não é mesmo?

— Causas naturais.

— Isso foi o que aquele médico de rabo preso lhe disse.

Agora ele recuperava mentalmente as imagens do médico e enfermeiras desconversando.

— Resolvi usar a arma das confissões para obter vantagens.

— E do que minha Mãe morreu?

— Você está olhando para a causa.

— Não compreendo os seus joguinhos. Fale de uma vez seu homicida de garotinhas.

— Não só de garotinhas, mas também de coroas malcriadas.

— Você matou a minha Mãe?

— Com estas mãos que você amarrou.

— Porque? Como? – O mundo dele rodava e nada parecia se encaixar.

— Vamos por partes. Sua Mãe, a puta da boca do inferno, me disse que ia te contar a verdade sobre a morte do seu pai e eu simplesmente não poderia deixar que isso viesse a tona.

— Porque?

— Porque fui eu que o matei e enterrei no seu banheiro.

Diolindo por instinto olhou pra porta que dava no quintal e apontou pra fora sem ter coragem de falar nada.

— Sim, aquela ossada é de papai. Fiz isso pelo diamante. Cadê a pedra?

— Não há pedra alguma. Não estava na dentadura como você falou.

— Tinha que estar. Ela me garantiu que estava. Eu o matei a pedido dela. Íamos fugir juntos, mas parece que ela mudou de idéia depois do crime.

 

A voz do velho era como uma abstração sem sentido. Como alguém tentando falar debaixo d´água. Mas ele compreendia cada palavra que lhe entravam pelos ouvidos, como um rolo de arame farpado dilacerando lentamente a sua massa cinzenta.

 

— Como a minha Mãe morreu?

— Você quer a versão longa ou a curta?

Como viu que o seu algoz estava perdendo a paciência, resolveu abreviar.

— Eu a enforquei com o seu próprio terço lá na cama do hospital. Irônico os papas chamarem-no de arma espiritual. Enquanto eu rezava as aves-marias, via os seus olhos revirando nas órbitas, as faces arroxeando, os pés se debatendo, a língua sobrando dentro da boca, os dedos das mãos encrispando e tentando alcançar o meu pescoço que mantive providencialmente fora do alcance. Quando tudo acabou, um médico entrou para uma visita de rotina e flagrou a cena. Aquele sodomita se confessava com regularidade e por várias vezes me fez perder a crença na humanidade. Todo o séquito de enfermeiras que trabalhavam para ele naquele hospital brincavam de espancá-lo secretamente quando dizia a esposa que estava de plantão. Gostava de apanhar e fazer sexo grupal enquanto se esvaia em sangue. Hemorragia mesmo. Foi fácil calar-lhe a boca.

— Você já teve um caso com a minha Mãe?

— Caso? Não considero uma trepada como caso. – E recebeu um soco violento no olho direito que o fez desmaiar.

 

Apesar do mundo estar girando em velocidade máxima, parecia a ele que as coisas estavam se encaixando rapidamente como um bólido descontrolado num túnel que daria para um lugar melhor que aquele, nojento e sem alma.

Pegou o pulso do velho. Estava vivo. O que pensar de tudo o que estava ouvindo? Que motivos teria o ex-padre em torturá-lo com tantas mentiras? Se encarasse tudo como verdade talvez sofresse mais, porém seu arremedo de consciência o daria o que conseguisse de paz pra viver o resto dos seus dias.

 

Foi ao quintal e abriu a tampa do jazigo improvisado do seu pai. Abriu a boca dos sacos e ficou olhando para os ossos. Pensou em queimá-los e misturar as cinzas com as da sua mãe. E foi o que fez, mas não ali, em casa, onde todos sentiriam o odor forte de ossos humanos em brasa.


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