O Legado de Pontmerci escrita por Ana Barbieri


Capítulo 8
O Coração do Governo Britânico


Notas iniciais do capítulo

Boa Leitura!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/670990/chapter/8

Capítulo 8

Em Baker Street, Holmes havia deixado Anne para se entender com seus fantasmas sozinha. Não era uma posição em que gostasse muito de ficar, ao menos não desde que se casara e seus problemas se misturaram aos de seu esposo e ela, intimamente, não tivesse nenhum maior do que o eterno dilema a respeito de jogar ou não Sherlock Holmes ao Tâmisa. Detestava admitir que perdera a habilidade de debater consigo mesma a sensatez de seus passos sobre o que fazer a respeito de um dilema pessoal. No entanto, em sua defesa, gostava de pensar que aquilo não traria consequências apenas a si mesma, mas também a seus filhos que se veriam, de repente, envolvidos com uma completa estranha. Portanto, uma discussão mais profunda com seu marido, fazia-se necessária.

 Achava, de certa forma, ridículo que precisasse ouvir a voz de Sherlock aquiescendo a uma decisão sua, quando, no início de seu casamento e muito antes quando ainda não eram nada, sempre fizera exatamente o que queria. Mais do que nunca, tinha a plena certeza de que seu casamento a mudara. E agora não saberia dizer se fora para melhor ou pior. Fosse qualquer outro momento, ela não hesitaria nem por um minuto em dizer que, sim, para melhor... mas a perspectiva de não conseguir encarar os velhos tormentos quanto a história de sua família sozinha, como fizera ao receber a notícia da morte deles anos antes, a deixara angustiada demais.

E embalada por tais sentimentos, decidiu que tomaria o cabriolé para o Clube Diógenes. No fundo, não responsabilizava Mycroft pela aparição de Josephine de Pontmerci em sua casa e, na iminência de uma crise consigo mesma, não havia nada melhor do que alguns minutos com a mente sempre pragmática de seu cunhado. Antes de sair, no entanto, subiu até o quarto dos gêmeos. O silêncio de seus filhos sempre a enchera de calafrios; ele queria dizer que seus meninos estavam ocupados demais tentando esconder alguma coisa dela.

  ─ Eu deveria ter previsto isso. – murmurou ao adentrar o quarto e não encontrar nem mesmo Violet sentada em sua cama. Mirou o lado de fora e também nem sinal de que estivessem brincando com as crianças do quarteirão. Além disso, a velha caixa de maquiagens de Holmes mal fechada num canto só poderia significar uma coisa... – Senhora Hudson, eu vou sair para o Clube Diógenes.

  ─ Pois bem, querida. – respondeu a senhoria com um sorriso gentil, enquanto Anne fazia seu caminho pelas escadas.

    ─ Caso eu volte depois das crianças...

    ─ Eles saíram?!

  ─ Diga-lhes para me esperarem na sala. – concluiu friamente e a senhora Hudson assentiu. Aquele já era um código conhecido entre as duas. Esperar na sala significava mantê-los sob extrema vigília, sem jantar, aguardando o sermão mais extenso de suas vidas.

††

Mesmo após o casamento de Sherlock, quando Anne passara a efetivamente fazer parte da família Holmes, os membros mais velhos do Clube Diógenes ainda tinham certa reserva em deixá-la passar pela porta sem relembrá-la de que mulheres não eram aceitas ali. Tanto, que a senhora Holmes sempre remedava-os ao cruzar o caminho que a levaria até o Stranger’s room, após citar o nome de Mycroft a Winston na recepção. Aproximava-se da hora do chá e ela sabia que seu cunhado lhe ofereceria uma xícara, de modo que, sem esperar sua iniciativa, já foi avisando ao outro lacaio que conhecia, Barrow, para que trouxesse a bandeja.

Sentindo-se mais à vontade, sentou-se numa das poltronas e pôs-se a retirar as luvas cantarolando uma das óperas favoritas de Holmes. Seu cunhado encontrara-a naquele estado e sorriu de lado ao fechar a porta. No entanto, o semblante de sua visita assumiu um ar mais sério assim que o avistou, mas ela ainda mantinha os lábios erguidos em um sorriso gentil. Indo contra seu costume, não se levantou para beijar-lhe as bochechas de pronto e Mycroft logo percebeu que aquela não seria uma visita puramente social. Sua cunhada buscava informação e ele foi capaz de deduzir sobre o que, ou, mais precisamente, sobre quem, antes mesmo que ela começasse a falar.

─ Posso começar dizendo que sinto muito se sou o responsável por todo este alarme? – disse carinhosamente, fazendo com que o sorriso dela se erguesse mais alguns centímetros.

─ Você sabia? – indagou Anne brandamente.

─ Não me lembrei até que as vi cara a cara no hall em Baker Street. – assegurou ele em tom solene. Em seguida, a porta se abriu e Barrow entrou com a bandeja de chá. Serviu-os, perguntou polidamente se desejavam mais alguma coisa e com a resposta negativa de Mycroft, que não deixou de olhar para sua acompanhante nem um segundo, saiu, deixando-os novamente à sós.

Anne rodava sua colher dentro da xícara parecendo completamente desinteressada e então posicionou-a delicadamente no pires, levando o líquido até os lábios, sorvendo uma pequena quantidade. Seu irmão não tocara em nada. Esperou até que ela fizesse o próximo movimento, analisando seus olhos caídos. Por fim, ela suspirou e respirando fundo continuou com o interrogatório.

 ─ Há quanto tempo a conhece? – quis saber. Seu tom de voz permanecia brando e ela não dava sinais de que fosse atacá-lo, o que encorajou Mycroft a ser o mais preciso possível.

  ─ Para dizer a verdade, minha cara, eu só a vi uma vez. Porém, nunca a esqueci. Lembro-me de que a rainha Vitória havia acabado de ganhar o título de Imperatriz da Índia e o momento foi oficializado com um grande evento no Palácio... acredito que há poucas semanas do famoso baile da embaixada. À época eu ainda estava em meus trinta anos, e, por mais reconhecido que fosse, dava meus primeiros passos dentro daquele mundo cheio de entrelinhas. De forma a comparecer em qualquer uma das reuniões em que houvesse chances de fazer uma nova conexão... Ora, não me olhe dessa forma, minha querida irmãzinha, é assim que as coisas são. – ralhou de forma carinhosa diante das sobrancelhas arqueadas de Anne.

  ─ Então, ela estava de passagem em Londres quando a viu. – pontuou ela se servindo de outra xícara de chá.

  ─ Estava. – assentiu Mycroft e um sorriso de devaneio brotou em seus lábios sem que percebesse. – Seu inglês não era muito bom naquele tempo e ouso afirmar que ela só deu-se ao trabalho de aprimorá-lo após nosso encontro. Afinal, naquela noite, qualquer um que a vislumbrasse de braços dados com seu marido saberia que o último lugar onde gostaria de estar naquele momento era no meio de um ninho de ingleses. No entanto, com que graciosidade fez sua reverência à sua majestade. – comentou.

 ─ E o que, meu querido irmãozinho, poderia ter dito a ela para que sentisse vontade de aprimorar seu inglês? – indagou Anne com um sorriso zombeteiro.

  ─ Eu a desmascarei, é claro. – riu Mycroft com um brilho esperto nos olhos, ao que sua cunhada adquiriu um olhar mais atento. – Estávamos em seis. Uma roda com alguns membros do grande escalão, eu incluso, e a via pela primeira vez longe de Sebastian. Observava toda a conversa com a mesma expressão, imagino eu, com que uma serpente espreita sua presa; afiada. Todas as outras senhoras envolviam-se em suas próprias rodas e creio que nenhuma delas saberia dizer uma palavra a respeito do que falávamos, mas ela... o modo como sorria por detrás do leque, como revirava os olhos com certos comentários, encheu-me de curiosidade. – à medida que falava, Anne percebeu, parecia chegar cada vez mais perto de ser o seu eu de trinta anos novamente e não seu eu atual de cinquenta e três.

  “Quando dei por mim, estava abordando-a. Constatei seu tédio, mas ela arqueou as sobrancelhas querendo me dizer que não conseguia me entender, mas é claro que entendera. De que outra forma poderia durante todo aquele tempo ter reagido a qualquer um dos comentários dos outros cavalheiros. Só não queria dar-se ao trabalho de parecer ridícula com seu inglês gaguejado. Então, continuei em sua língua materna. Nos apresentamos e ela pareceu finalmente se divertir ao dar-se conta de que estava falando com o célebre monsieur Holmes... as deduções, não as usava com a mesma eloquência de Sherlock, mas, conheciam minha habilidade de reconhecer os caráteres das pessoas.”

    ─ E ela lhe pediu para que fizesse a análise do dela. – concluiu Anne sem entender porque aquilo lhe soava excitante.

   ─ Já constatara que estava insatisfeita ali e ela, em sua vaidade, pareceu querer me desafiar. Ver até onde eu era capaz de ir. Recusei-me prontamente, mas ela continuou a insistir, dizendo que não se importaria nem se eu afirmasse que havia traído seu marido. – continuou Mycroft, seu ar agora era sério e sombrio ao mesmo tempo. – Lembro-me de que foi quando travei para analisá-la melhor, não para decidir se havia ou não cometido a dita traição... Se estivesse lá, acho que entenderia melhor, minha cara. Eu a fitei o tempo inteiro e em nenhum momento ela vacilou. Algo nos olhos dela parecia implorar para que eu dissesse justamente aquilo: que a chamasse de adúltera e a julgasse por isso, seu sorriso era de pura pretensão, maior do que o de qualquer dama inglesa. Havia algo quebrado e remendado a seu respeito, talvez pela traição, que de tão insistentemente estampada em seus olhos, acreditei ser verdadeira, mas o mais importante e o que me marcou em Josephine de Pontmerci... ela me pareceu ser o tipo de mulher que jamais perderia a compostura, independente da ocasião.

Ao final do relato de seu cunhado, Anne sorria. Talvez, pelas razões erradas, mas sorria. A conclusão de Mycroft a respeito do caráter de Madam de Pontmerci não fora muito diferente da sua primeira impressão a seu respeito. Sorria, no entanto, porque tomara o cabriolé até ali atrás de uma conversa pragmática; o que era sempre certo com seu cunhado. Todavia, o que conseguira fora uma declaração inflamada sobre Josephine de Pontmerci pelo declarante mais improvável de Londres. Até onde sabia, Mycroft nunca demonstrara qualquer interesse por nenhuma mulher e, nas palavras de Holmes, era casado com o governo britânico. Não obstante, ali estava ele, afirmando que houvera uma que atiçara sua curiosidade, independente de qual tipo e que, segundo ele, “nunca esqueceu”.

Não queria dizer que esperava que seu cunhado tivesse sentimentos românticos por sua suposta tia, mas descobrir essa nova faceta de seu caráter daquela maneira fazia-a pensar que possivelmente tornar-se mais íntima a Mycroft Holmes do que seu próprio irmão. E aquilo a fez sorrir.

─ Entendo. – murmurou baixando os olhos para seu chá, sorvendo outro gole. – E o que disse a ela na época que a trouxe até aqui tantos anos depois? – quis saber imbuída de tensa curiosidade.

 ─ Não a chamei de adúltera, na verdade, não correspondi ao desafio. Ao término dessa análise, houve um entendimento silencioso entre nós... acho que mencionei o direito de uma senhora ter seus segredos, ao que ela riu por reconhecer o clichê. No final da noite, ela se despediu com o único sorriso sincero que a vislumbrei cedendo a um inglês... mesmo tendo ganhado dela no xadrez.

 ─ Xadrez! – exclamou Anne, rindo confusa.

 ─ Na época ainda abriam algumas salas onde os mais velhos podiam se esconder do barulho do salão. Os velhos jogadores de cartas na língua popular. – explicou Mycroft.

 ─ E ela não chegou a mencionar sua família... – Anne procurou saber, tentando afastar o pensamento de que Sherlock e ela também costumavam se envolver em bravas batalhas de xadrez.

  ─ Mencionou o filho, que na época estava com dezesseis anos, segundo ela e ansioso para completar seus estudos na universidade. E chegou a dizer como sentia falta de usar seu nome de solteira, Bergerac, embora o de Sebastian lhe abrisse mais portas. Infelizmente, não disse nada sobre sua mãe... – respondeu ele com pesar. – Eu juro que não me lembrei quando a levei até...

  ─ Eu sei. – interrompeu ela, gentil. – Você nunca me magoaria de propósito irmãozinho. Não outra vez. – acrescentou com um pouco de veneno, lembrando-o de quando escondera dela a verdade sobre a morte de Sherlock.

   ─ Certamente. – assentiu ele com um aceno polido de cabeça, após um pigarro irritado. Anne nunca o perdoara por sua omissão, a seu ver, inocente. – Sinto muito se o que sei não foi de muita valia.

   ─ Não respondeu a todas as minhas perguntas internas, mas me deixou mais calma do que eu estava esta manhã depois de nosso encontro. – comentou a senhora Holmes mexendo no relicário em seu pescoço. – Sherlock já está agindo para resolver o caso dela...

    ─ Imaginava que sim.

    ─ E John e Violet foram com ele...

    ─ Contra sua vontade, suponho. – deduziu Mycroft, soltando um risinho abafado ao sinal afirmativo dela. – Minha cara, eles são uma mistura divertida sua e de Sherlock. Como conseguiu que eles não se metessem desde que aprenderam a formar frases completas é o grande mistério. – Anne riu com ele.

    ─ Você não deu à grande dama o que ela queria e mesmo assim é a quem vem pedir socorro, tendo o conhecido por apenas uma noite. Não me parece uma atitude muito sensata quando ela deveria supor que você a esqueceu depois de tanto tempo... – ponderou ela recolocando as luvas pronta para voltar para casa.

    Mycroft agora estava de pé, as duas mãos em seus bolsos do colete quando lançou a ela um de seus olhares mordazmente espertos e disse:

    ─ Sabe por que perde-se tanto tempo em festas fazendo conexões? Porque em momentos de desespero, não podemos nos dar ao luxo de não usar cada uma que tivermos. Por mais tênues que sejam.

    No caminho de volta para casa, Anne refletiu repetidas vezes aquelas palavras. Queria dizer que seu cunhado considerava o pedido de socorro de Madam de Pontmerci uma atitude puramente interesseira ou seria sua forma pragmática de ver as coisas a fim de tentar não se envolver com os próprios fantasmas de seu passado? Afinal, tal qual uma mulher, um homem também tem o direito de ter seus segredos e no que concernia seu encontro com Josephine de Bergerac, Anne estava convencida, pela forma inflamada de seu discurso, que Mycroft Holmes possuía vários deles.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Feliz Sexta-feira para vocês, meus caros/queridos leitores!!
Este capítulo... vou ser franca com vocês. É o meu favorito. Porém, devo dizer mais... no momento, escrever com Mycroft está sendo muito gostoso, pois ele não era um personagem que eu costumava explorar tanto, mas, agora, essa fic envolve também o passado dele e me permite desenvolvê-lo um pouco melhor dentro da minha concepção de quem é Mycroft Holmes. Além disso, temos a figura imponente de Josephine sendo um pouco desmistificada, mas nem tanto, o momento para a decaída final ainda está por vir e por óbvio, envolverá demasiadamente o mano Mycroft haha.
Espero que tenham gostado! Deixem suas opiniões nas caixinhas de comentários para eu saber o que acharam; se o capítulo é realmente ou não tudo isso que foi para mim... Enfim, vamos conversar! Um beijo e bom final de semana a todos!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O Legado de Pontmerci" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.