O Legado de Pontmerci escrita por Ana Barbieri


Capítulo 17
Perdedores do mesmo jogo


Notas iniciais do capítulo

Boa Leitura!



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Capítulo 17

Seguindo as recomendações de Holmes, Watson deixara Baker Street para sua casa em Queen’s Road a fim de reunir tudo de que precisariam para aquela noite. Anne, portanto, encontrou seu marido sozinho no apartamento ao descer. Não mais nas roupas de Ralph Escott, mas inteiramente na pele de Sherlock Scott Holmes; o que, para seus fins, era conveniente. Encontrava-se sentado em sua poltrona, com o estojo de limpeza de armas sobre a mesinha de canto e o velho revólver em suas mãos. Seu semblante não mais abatido, mas determinado. E, se não estivera disposta a se irritar com ele antes, naquele momento seria capaz de finalmente atirá-lo dentro do Tâmisa sem remorso.

— Agora entendo porque não deveria ser tão dura com Violet. – desdenhou batendo a porta.

Sherlock não demonstrou reação, apenas continuou a limpar sua arma calmamente; divergindo entre apontá-la contra a parede e retorná-la para seu colo. Anne tentou estudá-lo, incrédula com a ideia de que pudesse ter o sangue tão frio. Ela vira em seus olhos, quando adentrara o apartamento, quão acabado a situação o deixara. Parecia-lhe impossível que apenas uma conversa com Watson fosse capaz de revitalizá-lo a ponto de fazê-lo ignorar as lágrimas que provocara em sua filha. Certamente, ela não seria capaz de admitir conhecer a profundidade da relação entre os dois, sendo ela datada desde muito antes da sua própria chegada àquele mundo em que viviam. Ainda assim...

— Holmes... o que aconteceu? – perguntou ela unindo as mãos delicadamente, num visível gesto de contenção emocional. Seu marido, no entanto, ignorou-a, continuando com a limpeza. – Se não quiser essa arma apontada contra a sua cabeça, Sherlock Holmes, me responda! – advertiu-o, erguendo o tom de voz com imponência.

O pomposo detetive limitou-se a encará-la por um segundo, um sorriso de esgar abrindo-se aos poucos pelo canto direito de sua boca. As mãos da senhora Holmes começaram a se fechar em punhos inconscientemente. Estavam os dois voltando no tempo. Para 1885. Para Holmes e Bergerac; dois estranhos para o casal de 1900... dois estranhos para o casal de crianças no andar de cima.

— Pobre senhora Adler, sua memória tão facilmente esquecida e substituída pela figura de uma camareira praticamente analfabeta. – desdenhou ele mirando-a de baixo para cima, com escárnio.

— Parece que elas compõem o seu tipo agora, já que isso não o impediu de...

— Por Deus, Bergerac! – exclamou o pomposo detetive, batendo uma das mãos contra o braço da poltrona. – Eu realmente não tenho tempo para isso! O caso Pontmerci deverá ser resolvido esta noite ou eu perderei o prazo de Milverton. – disse levantando-se com energia em direção ao quarto, a fim de carregar a arma (todos os revólveres permaneciam descarregados em casa, devido às mãos curiosas de Nikolai).

Anne permaneceu parada com os punhos fechados, sentindo suas unhas contra a pele da palma de sua mão, ouvindo os passos de seu marido e o barulho do tambor do revólver sendo selado. Sua cabeça doía e o chão do apartamento parecia engoli-la à medida que Holmes passava por ela sem, de fato, vê-la. Aqueles dois dias foram suficientes para deixar seus nervos em frangalhos como há muito não ocorria, e tudo graças a Madame Josephine de Pontmerci; ela e sua insistência em permanecer omissa a respeito de seus pais; de manter-se metafórica e escorregadia. Nada daquilo: sua dor e a de Holmes, que ela não duvidava existir, por Violet e o beijo, teriam acontecido não fosse por ela. A maldita irmã de sua mãe...

— Se passar por essa porta, não precisa se preocupar em voltar. – Anne tornou a advertir, seus olhos vermelhos e com lágrimas contidas por orgulho. Aquilo fez Sherlock parar com a mão na maçaneta, voltando-se para ela brandamente e com olhos indagadores. “O que há com você?” eles diziam. – Você me traiu. E o primeiro reflexo que tem é o de cumprir com sua obrigação para com aquela maldita mulher? Nada disso teria acontecido se seu irmão jamais houvesse aparecido com ela em nossa porta! Violet-

Eu não preciso de um sermão sobre Violet! – interpôs Holmes, também com a voz elevada, caminhando lentamente para onde sua esposa estava prostrada. Ouvira às outras acusações atentamente, mas o chamamento de sua pequena para aquela conversa cruzara um limite psíquico. – Não tente voltar aos velhos ares de rainha da razão! Eu estava lá! Eu vi o modo como ela olhou para mim! Por acaso acha que tudo isso é mais fácil para mim? Que me esquecerei do que aconteceu mais rápido do que ela?! – bradou com o rosto bem próximo ao da esposa.

— É o que parece. – retrucou ela, com veneno, afastando-se um passo para trás, mirando-o de cima a baixo. – Aqui está você: pronto para sair e ser Sherlock Holmes.

— Ah sim, eu serei Sherlock Holmes. – assentiu ele, levando as mãos às costas, compartilhando do tom venenoso empregado por sua esposa. – O homem que, segundo muitos, a senhora conseguiu humanizar. Não o suficiente, ao que parece, afinal ele ainda é capaz de transpassar limites morais, bem como alguns votos sagrados para conseguir resolver um caso. Sairei para ser a máquina pela qual você se apaixonou em primeiro lugar! Não ouse questionar algo que você começou...

— Eu comecei? – desdenhou Anne, cruzando os braços.

— Antes do nascimento deles. – lembrou-se Holmes. – Não foi você quem disse que nada precisava mudar? Que ainda poderíamos ser os mesmos Sherlock e Anne Holmes de Baker Street? Acredito que tenha se esquecido do que isso significava, de como era-

— Quer que eu vá atrás dos floretes?! – bradou a senhora Holmes, interrompendo-o furiosa. – E o que quer dizer com isso? De repente, o nojo pela ideia de imaginá-lo com outra mulher me torna doméstica demais?! – indagou num riso agudo de impaciência, esforçando-se cada vez mais para manter suas lágrimas para si. – Nos meus cálculos, sermos nós mesmos nunca envolveu...

— Não se trata daquela mulher. Eu não me importo com aquela mulher... – Holmes interrompeu-a com um aceno irritado de mão.

— Bom, isso não me surpreende! – exclamou Anne, tornando a rir com desdém. – Já o vi brincar com as emoções de criadas assustadas e até mesmo mães do subúrbio! Você nunca pensa nelas; essa parte do trabalho é de Watson, o responsável pelo, assim denominado, sexo frágil. Realmente não importa a criada de Milverton, como seu coração ficará partido quando descobrir que seu precioso encanador é, na verdade, um grande pomposo aproveitador!

— Isso, vindo da mulher que se orgulha em ser a esposa do grande pomposo aproveitador, me cai como um enorme elogio. – desdenhou Holmes, com um aceno irônico de cabeça.

— Não me provoque, Holmes. – interpôs Anne, vermelha, a mão erguida pronta para um tapa. – Ou eu o jogarei...

— Ao Tâmisa? – tornou ele a desdenhar, arqueando as sobrancelhas. – Depois de dez anos com a mesma ameaça, acha que ainda me preocupo?!

— Então, o tédio o levou até as saias da empregadinha?! – bradou ela erguendo suas mãos num gesto impulsivo de estrangulamento contra a garganta dele, rapidamente censurado pelo sentimento de que havia atingido a gota d’água, deixando um soluço agudo escapar junto às lágrimas; se afastando para a lareira, apoiando uma das mãos sobre o console e a outra na cintura, tentando respirar fundo.

O repentino surto de Anne fez com que Sherlock baixasse a guarda. Ele não a vira daquela maneira desde o dia em que discutiram a morte do pequeno Ozzie e nas noites subsequentes à tentativa de assassinato contra sua vida. Um período verdadeiramente de trevas, como ambos se lembrariam. Os infindáveis pesadelos que não a deixavam dormir. A vela que deveria ser mantida acesa durante toda a noite, pois o escuro a levava de volta para trás daquela parede recém-fechada sobre seu corpo quase completamente despido. Todo aquele tempo somado a outro sentimento que Holmes não discernira em seus olhos ao chegar em casa e que, no entanto, deixava algo certo: estavam os dois derrotados por aquele caso.

— Minha cara, não foi isso o que aconteceu... – começou a dizer, de forma apologética, tentando se aproximar da esposa ainda impassível. – Anne... nós dois sabemos por que eu a beijei. – acrescentou calmamente, sentando-se ao sofá.

— Pelo seu maldito método, sim. – retorquiu ela, ainda abalada, mirando-o de soslaio. – Foi o que eu disse às crianças.

— Você nunca ligou para ele antes. – comentou Sherlock, com um suspiro longo de cansaço, abaixando a cabeça em direção às mãos. – Mais uma prova de que estamos perdendo...

— Perdendo o que? – perguntou ela, impaciente.

— Quando nos casamos, a pedido seu, minha vida continuou como se o nosso matrimônio não mudasse demasiadamente os fatos. O meu estilo de vida, como diria Watson, permaneceu o mesmo..., mas, agora... Eu sou Sherlock Holmes, mas não quero ser Sherlock Holmes! Pois sê-lo me custou mais do que sou capaz de suportar... Violet... – concluiu terminando de afundar seu rosto nas mãos.

Lentamente, Anne voltou-se completamente na direção de onde Sherlock estava sentado. Sua raiva aos poucos se esvaindo em pena, ao compreender um pouco da mente de Sherlock Holmes. Ele se jogara de repente na resolução prematura daquele caso numa tentativa de escapar do julgamento de sua abelhinha. Escapar do medo que sentia ao imaginar que, talvez, ela jamais voltasse a sê-lo.

— Não é para sempre, Holmes. – assegurou a senhora Holmes, unindo-se a ele no sofá, repousando uma mão sobre seu ombro. – Ela ainda é só uma criança para entender, mas nós dois sabemos que não é para sempre.

— Você não estava lá e não viu como ela olhou para mim. – falou amargamente, tornando a se erguer. – E, sendo quem sou, não posso prometer que limites não tornarão a ser ultrapassados em virtude de respostas, no futuro. – acrescentou.

— Está planejando beijar mais criadinhas? Entendo. – troçou Anne, também com amargor.

— Não seja ridícula, Bergerac! – ralhou Holmes, sentando-se corretamente para encará-la.

— Não estou sendo ridícula. – ponderou a senhora Holmes séria. – Ouça-se falando! Eu passei por coisa pior com meus pais e tudo porque não tive fibra o suficiente para sair do meu antro de dúvida. Violet, por outro lado, demonstrou grande coragem ao questionar, imagino, nós dois a esse respeito. Ela não vai duvidar para sempre. – concluiu afagando uma das mãos dele. – E esteja certo quanto a existência desses limites!

— Estou prestes a invadir a casa de um cidadão inglês ilegalmente. – desdenhou Holmes, fazendo Anne suspirar longamente. Então era isso que discutira com Watson enquanto ela estivera no andar de cima.

— Holmes... nós dois já cruzamos vários limites da lei... mas no que diz respeito a você e eu. Sentimentos... o nosso casamento... nossos filhos...

— Acredite, Bergerac, eu sei... – interrompeu Sherlock, repousando uma mão sobre a dela. De fato sabia, e, naquele ínterim, uma constatação decisória se formara em sua mente... – Anne, eu...

— Já está pronto, Holmes? – interpôs Watson, abrindo a porta bruscamente. – Oh, me desculpem... Anne, minha cara, você...?

— Está tudo bem, John. – intercedeu a senhora Holmes, erguendo-se animadamente a fim de quebrar o constrangimento do doutor. Contudo, o bom médico já havia presenciado discussões suficientes daquele casal para saber melhor. – Bem, boa sorte com Milverton. Vou subir e verificar se as crianças estão com fome...

— Não nos acompanhará? – perguntou Watson, sondando território.

— Não desta vez..., mas, tenho certeza de que serei premiada com todos os detalhes mais tarde. – respondeu-lhe ela gentilmente.

— Você nunca perdeu o fim de um caso antes, se pudesse evitar. – comentou o doutor, aflito.

— Este caso, em particular, não me é de nenhum interesse. – retrucou ela duramente. Watson assentiu, com um sorriso amarelo. – Vão partir agora?

— Tomaremos uma ceia fria antes, e depois tomaremos um carro às onze. – respondeu Sherlock.

— Vou pedir a senhora Hudson que traga a bandeja. – disse lhes dando as costas.

— Anne... – chamou seu marido, dando um passo ansioso à frente para segurá-la delicadamente pelo cotovelo.  

Holmes tinha sua máscara de seda preta em mãos e seus olhos fitavam-na num misto de expectativa e aflição. Anne lhe devolveu o olhar, no misto característico de determinação e dor de quando chorava. Porém, o sorriso que lhe concedeu era de genuíno carinho.

— Agora não. – disse removendo a mão dele calmamente, retornando a tomar o caminho para o andar de baixo.

 Atrás dela, Holmes assentia consigo mesmo. O assunto certamente não estava concluído, mas ela não mais aceitaria ter suas aflições expostas diante do bom médico, muito embora tenha acontecido repetidas vezes no passado. Todavia, muito daquele sorriso queria dizer que estava disposta a aceitar uma pequena trégua, por enquanto. De fato, os deuses ou o destino não poderiam ter lhe concedido uma companheira melhor.

— Você contou a ela sobre seu noivado? – perguntou Watson diretamente, seu tom desprovido do veneno ou troça que a pergunta poderia carregar por si só. Seu amigo limitou-se a assentir. – Bem, eu sinto muito, mas não acredito que tenha chegado a crer que ela deixaria passar em branco. – acrescentou o doutor, seguindo-o para dentro do apartamento.

— De fato, meu caro. – anuiu, parando ao vislumbrar os gêmeos descendo as escadas também para o andar de baixo, pela porta entreaberta. – De fato, eu nem sei mais o que pensar...


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Notas finais do capítulo

Boa tarde, meus queridos!! Vou começar fazendo um apelo: eu estou acompanhando as visualizações da fanfic, está um nível consideravelmente alto e vocês não estão me dando alô... Queridos, não precisa de textão, basta dar um alôzinho, eu fico tão mas tão feliz! Por favor, por mim... Em todo caso, obrigada por lerem de qualquer maneira!

Segundo, e agora passando para as considerações do capítulo, espero do fundo do meu coração que gostem! Eu sei que prometi floretes... talvez eles apareçam depois? Ho-ho-ho... Enfim, apenas me justificando aqui na parte de promessas não cumpridas, eu achei que essa briga deveria ser a típica "old married couple" e, portanto, não deveria envolver situações prévias, como, por exemplo, os floretes ou mesmo eles se sentindo à vontade por brigar na frente do COITADINHO do Watson. Foi algo sério e que irá repercutir muito ainda, estejam avisados que voltarei para essa briga depois...

Terceiro, explicando a linha: como vocês sabem, essa história se baseia, sem vergonhamente, no caso Charles Augustus Milverton de A Volta de Sherlock Holmes. Sendo assim, na história, Watson está no apartamento e Holmes lhe conta a respeito do noivado falso com Agatha e também lhe explica a atitude que pretende tomar a seguir: invadir a casa de Milverton. Na fanfic, como vocês tão astutamente perceberam, esse diálogo ocorre enquanto Anne está com as crianças, então, não saberemos como se deu a descoberta de John, mas, pelo visto, ele não foi condescendente com o amigo tampouco (querido, querido Watson). Porém, não se aflijam, a invasão à Appledore Towers será amplamente narrada! Ho-ho-ho...

É isso! Espero que tenham gostado. A ordem era tiro, porrada e bomba. Os dois primeiros já foram. Falta o último. Estejam preparados! E avisados! Nos aproximamos do fim... Um beijo a TODOS!! Até a próxima!



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