Pais e Filhos escrita por Luh Castellan


Capítulo 2
Erik – Os números


Notas iniciais do capítulo

Obrigadaa a todos que leram o último capítulo, que marcaram nos acompanhamentos, favoritaram e/ou me deixaram imensamente alegre com os comentários! Este capítulo é dedicado a vocês ♥
A música-tema do Erik é Ainda é Cedo - Legião Urbana.
Se ainda não a conhece, pode ouvi-la clicando no link que deixarei no início do capítulo e/ou ver a letra aqui http://www.vagalume.com.br/legiao-urbana/ainda-e-cedo.html
Espero que gostem!



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Erik

“Eu não tinha mais ninguém” — Ainda é Cedo

 

Números. Eu assistia mecanicamente enquanto o professor de matemática enchia o quadro com eles. Porém, minha mente estava longe dali, focada nos meus próprios números. Enquanto o Sr. Ronaldo pensava que eu tomava notas sobre sua “fascinante” aula, minha caneta trabalhava numa pequena lista com os números da minha vida.

17 anos

6 orfanatos

4 famílias adotivas

3 casas comunitárias

8 visitas a abrigos para menores

16 visitas à delegacia

5 expulsões de escolas

5 namoradas

3 empregos

1 coração partido

Eu não fazia ideia do objetivo daquilo, se era para arranjar um passatempo qualquer que me tirasse do tédio ou para eu constatar mais uma vez o quão ferrada minha deprimente existência era. Seja qual for, estava funcionando.

Pais e Filhos

 

Hanna não apareceu na escola àquela manhã. Certamente estava de ressaca, devido ao porre da noite anterior. Sério, vê-la naquele estado acabou comigo. Não foi só por vê-la bêbada, ou beijando outros caras. Acima de tudo, o que me deu ânsias foi ver aquela pessoa no corpo da minha Hanna. Tinha o rosto dela, mas não agia como tal. A forma como estava abatida de manhã, e aquela estranha parecendo uma drogada, rindo alto e se jogando no primeiro macho que aparecesse pela frente.

Há tempos eu notei que ela estava diferente. Tentei ajuda-la como ela me ajudou. Porém, de nada adiantava se a garota dava de ombros e dizia que era tudo bem, “só besteira da sua cabeça”, como ela falou. Poucas coisas me abalavam, mas ver a minha namorada ruir aos poucos e não poder fazer nada... Foi como um terremoto de grau 7 na escala Richter do meu mundo. Ex-namorada, corrigi-me mentalmente.

Deixei a cabeça tombar sobre meus braços na mesa. Meu suspiro foi tão audível, que o professor interrompeu a sua explicação.

— Algum problema, Sr. Erik? — Ergueu uma das sobrancelhas.

Quer que eu liste? Ah, eu acabei de fazer isso, pensei, mas não disse em voz alta. Ao invés disso, endireitei-me na carteira e respondi o mais educadamente possível.

— Não, senhor.

Ele ergueu um canto da boca, num indício de sorriso de deboche, e eu já sabia o que estava por vir.

— Então, já que sabe tanto do assunto ao ponto de soltar suspiros de tédio, venha aqui e mostre para a turma como se resolve este problema — Gesticulou para a lousa branca atrás de si.

Engoli em seco enquanto dirigia-me para a frente da sala e vasculhei desesperadamente o quadro, a fim de absorver qualquer informação que me fosse útil. Já havíamos feito uma das provas e ele estava revisando o assunto da próxima, para enfim fecharmos o ano letivo. Por sorte, o assunto era estatística, o que eu já possuía uma noção básica.

A única coisa que manteve meu interesse pelos estudos e não me fez abandonar a escola foi o meu grande sonho de me formar em engenharia. Por isso, apesar dos empecilhos (que não foram poucos) eu não larguei a escola para trabalhar. Com um pouco de esforço, consegui conciliar os dois. Quando se nasce pobre, lascado, estudar é o maior ato de rebeldia contra o sistema.

Nosso colégio, diferente da maioria, possuía quatro anos de ensino médio, pois integrava cursos técnicos junto ao currículo normal. Além disso, era necessária uma prova para ingressar, o que explicava a rigidez e o nível consideravelmente alto dos alunos.

O professor pigarreou, devido a minha demora. Li o enunciado novamente, tentando entender o que ele estava pedindo. Quando encostei a ponta do lápis de quadro pilot, o sinal tocou, me salvando.

Soltei o ar, aliviado, e dei de ombros para Ronaldo, inocentemente. Ele encarou-me com ar de desaprovação.

— Dessa vez você se salvou, Erik. Mas não pode contar com a sorte para sempre.

— “Sorte” está no topo da lista de coisas que eu não tenho, professor — afirmei, com um sorriso zombeteiro.

Com os anos, aprendi que zombar da minha desgraça era melhor que entrar em depressão. Para você ter uma ideia, eu fui achado numa caçamba de lixo. Sequer conheci meus pais. Fui rejeitado pela vida antes mesmo de saber falar a palavra “rejeição”. Mas não se lamente por mim. Se tem uma coisa que detesto é que sintam pena de mim.

“Coitadinho, já é a segunda família adotiva que o rejeita.” Ouvi atrás da porta do orfanato, no auge dos meus cinco anos.

“Pobrezinho, tão pequeno e sozinho no mundo.” Tive que engolir, numa das entrevistas em busca de uma família, sob o olhar de pena de uma mulher nariguda.

“Nossa, tão jovem e já envolvido no mundo do crime, esse aí já está perdido.” Escutei um dos policiais cochichar, na minha primeira visita à delegacia, depois de roubar um doce para dar a um amigo meu. Eu tinha onze anos.

De tanto ouvir essas e outras frases, um sentimento de independência foi crescendo dentro de mim. Queria trabalhar, ganhar meu dinheiro através do meu suor. E foi esse sentimento que me impediu de entrar de cabeça no mundo do crime. Propostas tentadoras me apareceram, ganhar dinheiro fácil através de drogados idiotas, trabalhar de “aviãozinho” e até fazer serviços mais “sujos”.

Claro, fui várias vezes à delegacia, mas nunca por delitos graves. Pequenos furtos, pichar prédios, fazer bagunça... Eles aconteciam com mais frequência quando eu era mais novo. Agora, eu não tinha tempo para quase nada, muito menos para fazer baderna pelas ruas de Natal.

Uma pessoa esbarrou em mim, arrancando-me dos meus devaneios. Saí para o intervalo, à procura dos meus amigos. Do nosso grupo, somente eu, Hanna e Victória cursávamos o terceiro ano, sendo esta última de outra turma. O restante do pessoal estava dividido entre as turmas de segundo ano.

As pessoas estavam esquisitas, cochichando pelos corredores. Não sabia por qual motivo, mas sentia que elas estavam me encarando. Talvez fosse impressão minha.

Senti meu celular vibrar. Uma mensagem do Caio piscava na tela.

“Erik!!! Já tá sabendo?!!!”

Assim mesmo, com todas essas exclamações. Encarei as letrinhas, confuso, como se houvesse um estranho código que pudesse ser extraído delas.

“Sabendo do que?”

Segundos depois, ele respondeu.

“Venha para a cantina. Agora”

Ainda confuso, segui para o local indicado. O que poderia ser tão importante ao ponto de Caio usar tantas exclamações e precisar falar pessoalmente?

Encontrei o grupo reunido numa das mesas. Estavam todos cabisbaixos, de aparência abatida. Victória ergueu o olhar para mim e... Espere, ela estava chorando?

— Erik! — Luana mal esperou-me chegar e se lançou nos meus braços. Seu corpo pequeno tremia levemente com os soluços. — Sinto muito... — murmurou, com a voz embargada.

— Sente muito pelo que? Será que alguém poderia me dizer o que está acontecendo?! — Irritei-me.

Caio estendeu-me o celular tristemente, onde estava aberta uma notícia.

Garota se joga do quinto andar de prédio em Tirol

Nesta manhã foi encontrado o corpo de uma adolescente na calçada de um residencial, no bairro Tirol, em Natal – RN. A perícia constatou suicídio, de causas ainda não esclarecidas.”

Eu ainda estava sem entender aquilo tudo. Sim, uma garota morreu, que pena... Mas, qual o motivo de tanta comoção? Se eu fosse entrar em desespero a cada vez que uma adolescente morria, ficaria completamente maluco. Balancei a cabeça e retomei a leitura.

A jovem foi identificada como Hanna Cavalcante de Medeiros, 17 anos...”

Parei de ler naquele momento. Deveria haver algum engano. Não era possível. Meu coração estava prestes a saltar pela boca. Li a notícia novamente, em busca de qualquer indício de que fosse mentira, qualquer mísero erro. Não possuía fotos. O restante da matéria era falando sobre a equipe responsável pela investigação.

— Não pode ser ela — arquejei. — Só pode ser engano... Existem outras garotas com esse nome...

Tentei, em vão, mentir para mim mesmo. Eu sabia que era impossível existir outra pessoa com mesmo nome e sobrenome, morando no mesmo bairro.

Caio mordeu o lábio e pegou o celular de volta, balançando a cabeça negativamente. Victória colocou a mão no meu ombro.

— Também pensamos isso, mas... É coincidência demais — Nunca a tinha visto daquela forma, a voz rouca, sem resquício nenhum da animação de sempre.

Minha boca estava com um gosto amargo. Um turbilhão de sentimentos agitou-se dentro de mim. O ar me faltou. Eu queria gritar, chorar, xingar, procurar alguém... A confusão interna era tão grande que eu era incapaz de decidir o que fazer. Eu só tinha certeza de uma coisa: eu não queria ficar parado ali.

— Temos que ir lá saber se é verdade, não pode ser, t-temos que ver se minha Hanna está bem, temos...

— Ei, boy*, tenha calma — Tori segurou os meus ombros e me sacudiu de leve, como se fosse para me trazer de volta à realidade. Ela era de longe a mais equilibrada diante daquela situação. — Não podemos fazer muita coisa. Luana está tentando falar com a mãe da Hanna.

A loirinha estava andando de um lado para o outro, soltando xingamentos com o telefone grudado ao ouvido.

— O telefone da Dona Rosa só dá caixa postal — resmungou.

Quanto mais eu buscava o ar, mais ele me fugia. Parecia que eu estava me afogando. Os batimentos do meu coração estavam tão altos que eu achava que seria capaz de ouvi-los do outro lado do pátio.

— O que... está... acontecendo... comigo? — indaguei, com dificuldade.

Luana arregalou os olhos.

— Você está tendo um ataque de pânico. Caio, vá buscar um copo d’água!

Tori, que estava mais próxima de mim, começou a massagear levemente meus ombros e murmurar frases relaxantes.

— Calma... Inspire lentamente pelo nariz e expire pela boca. Pense em coisas positivas.

Se eu conseguisse falar, perguntaria como raios eu pensaria em algo positivo depois de receber a notícia da morte da garota que amo.

Fiz o que ela instruiu, tomei a água que Caio trouxe e, aos poucos, fui me estabilizando.

— É melhor você ir para casa e se acalmar — Victória aconselhou. — Qualquer informação nova que soubermos, te ligamos para avisar.

Assenti, derrotado.

— Eu vou com ele — Felipe ofereceu.

Ele me deu uma carona de moto até o meu cafofo. Era basicamente um cômodo, que dividi em quarto e cozinha, e um banheiro. Tinha uma cama de casal, uma televisão, um guarda-roupa (que eu usava para dividir o quarto) e a “cozinha”, que era uma formada por uma pia apertada, geladeira, fogão e micro-ondas, onde eu requentava as sobras do almoço para comer no jantar.

Há cerca de um ano, consegui um emprego na construtora do Seu Jailson. Eu já havia completado 16 anos e a assistente social, que era responsável por mim, avisou-me que era bastante difícil ser “adotado” nessa idade. Eu precisava de um tutor. Seu Jailson me ofereceu um quartinho para morar, em troca de trabalho na sua empresa. De início, comecei no escritório, nas vendas telefônicas, orçamentos, etc. Depois de um tempo, deixei a parte burocrática para “meter a mão na massa”, literalmente. Eu aprendia com facilidade. Logo consegui o trabalho de ajudante, pedreiro, carregador... Basicamente um “faz tudo”. Como recompensa pelo trabalho pesado, Seu Joaquim começou a me pagar uma quantia em dinheiro. Não era um salário, mas dava para sobreviver. Sua esposa, Dona Joana, nutria um grande carinho por mim. Comprou-me roupas, comida e cuidava de mim como se fosse um filho. E eles eram meus responsáveis, de fato, até eu atingir a maioridade. Porém, eu estava mais para escravo do que para qualquer laço familiar.

Me deixei cair sobre o colchão gasto e a cama velha gemeu pelo esforço. Eu sabia que qualquer dia ela iria desabar. A mesma cama onde, outro dia, eu me envolvi nos braços de Hanna e deixei-a arrastar-me para o seu infinito particular. Oh, céus, ela me tratava como um rei.

Fechei os olhos com força para não deixar as lágrimas caírem, pois eu sabia que se começasse a chorar, não conseguiria mais parar.

Senti a cama oscilar quando Felipe sentou-se na ponta. Eu nem me lembrava que ele ainda estava ali. Seu sorriso zombeteiro havia desaparecido completamente do rosto e um olhar condolente escapava-lhe por baixo dos cabelos cacheados. O garoto sempre sabia o que dizer para amenizar diversas situações, mas desta vez, preferiu (ou não sabia) falar nada. Em vez disso, tomou a liberdade de ligar a TV, talvez em busca de uma distração. Péssima ideia.

Estava passando o noticiário local, onde a apresentadora anunciava, coincidentemente, o suicídio de Hanna. Mostraram uma foto tirada do perfil dela do Facebook, depois imagens da rua onde ela morava, lotada de curiosos. Um momento em especial atraiu minha atenção.

A mãe de Hanna, Rosa Cavalcante de Medeiros, está detida há três meses na Penitenciária João Chaves, acusada por tráfico de drogas. A mulher ficou desolada com a morte da filha e afirma que Hanna não apresentava comportamento anormal ou práticas suicidas. — A voz da repórter declarou enquanto a câmera mostrava imagens do exterior do prédio do presídio.

Meu queixo caiu com aquela informação.

— Espera aí... A mãe da Hanna estava presa? — Felipe falou exatamente o que eu estava me perguntando. Depois virou-se para mim com cara de interrogação. — Você sabia disso?

— Ela... Não me contou nada — Minha voz saiu falhada. — Mas eu sabia que ela estava me escondendo algo.

— Eu nunca esperaria isso da Dona Rosa — Ele estava com os olhos na tela novamente, onde exibia-se uma foto de Hanna com a mãe, ambas sorridentes, semelhanças visíveis nos traços da face.

Eu já estava sentado naquele momento. Enterrei o rosto nas mãos. Agora tudo fazia sentido. A estranheza, o comportamento esquisito que começou exatamente há três meses... E eu, egoísta que sou, não a ajudei. Eu era seu namorado, deveria estar ao lado dela exatamente em situações assim. Eu deveria ter insistido mais...

Meus dedos subiram até meus cabelos e os fechei ao redor dos fios, causando um pouco de dor, mas não importei-me. A cena de ontem voltou à minha mente. Seu olhar de medo, até meio desesperado, quando eu disse aquelas coisas e a deixei. Eu a deixei quando ela mais precisava.

— É culpa minha... — constatei num sussurro esganiçado.

— O que?? — Felipe arregalou os olhos castanhos. — Mas é claro que não é!

Balancei a cabeça negativamente.

— É sim. Eu não deveria ter terminado com ela.

— Escute, você não teve nada a ver com a prisão da mãe dela, sequer sabia disso, então não tem a mínima...

— É como uma bola de neve, Felipe. — interrompi-o. — São um monte de fatores que vão se acumulando até ela estar grande ao ponto de engolir tudo. A prisão da mãe dela foi só mais um fator. Quem sabe o que mais essa garota teve que aguentar? O que ela vinha aguentando todo esse tempo, em silêncio? E eu, ao invés de servir de apoio, ativei a bola de destruição no alicerce do seu edifício.

Ele abriu a boca para rebater, mas tornou a fechá-la.

Uma raiva súbita apoderou-se de mim.

— Por que tudo tem que dar errado nessa minha droga de vida?! Não é justo, não é justo!! — esbravejei, esmurrando furiosamente o travesseiro. — Eu sou um idiota. É tudo minha culpa. Se não fosse por minha causa, ela ainda estaria aqui!

Felipe observou a minha crise por um momento, sem saber o que fazer. Tentou se aproximar, mas atirei-lhe o travesseiro como resposta.

— Me deixe sozinho! — cuspi. — Eu sempre fico só, não é mesmo? Sempre fui um abandonado nessa porra de existência deplorável.

Ele estacou. Então desligou a TV e caminhou silenciosamente até a porta, onde parou com a mão na maçaneta.

— Ficar se culpando não vai trazê-la de volta, Erik. Só vai destruir você também.

***

Não entrarei em detalhes quanto ao funeral, até porque eu mesmo evito reviver a cena. Nunca fui do tipo religioso, mas a família de Hanna era católica, então fizeram uma missa e tudo mais. Dona Rosa estava cabisbaixa, de xale preto, recebendo as condolências e abraçando conhecidos ao lado de dois policiais carrancudos. Perdi a conta de quantas pessoas vieram falar comigo, dizer que sentiam muito e jogarem aquele conhecido olhar de pena para cima de mim. Até pessoas que eu jamais havia visto antes vieram me cumprimentar como se fossem meus amigos de longa data.

E por falar em amigos, os meus permaneceram cabisbaixos e taciturnos durante toda a cerimônia. As meninas estavam abraçadas umas nas outras, os olhos vermelhos de tanto chorar. Caio estava agitado, estalando os dedos nervosamente e tentando ao máximo manter suas mãos ocupadas, ora na barra da camisa social, ora nos passadores do cinto. Felipe estava com a mesma expressão abatida dos outros, quieto ao lado dos pais.

Assim como os pais dele, os “meus” também foram convidados, mas só Dona Joana pôde comparecer. Ela era uma mulher de meia idade, cabelos curtos e loiros, com vários fios brancos se fazendo aparecer. Tirou o seu vestido preto de renda do armário especialmente para aquela ocasião e ficava abanando um leque no rosto para afastar os mosquitos. Joana nunca teve filhos. Era simpática e paciente na maioria das vezes, principalmente com o marido ranzinza que tinha.

— Coitada da Hanna... Era uma menina tão boa! — Ela comentou, levando um lenço aos olhos.

Eu estava num estranho estado de entorpecimento, como se tudo que se passasse a minha volta fosse cenas embaçadas de um filme. Me aproximei do caixão onde jazia minha garota. Em meio ao leito de rosas brancas, Hanna parecia estar dormindo. Sua pele estava mais pálida, deixando bem visível o pontinho preto de sua bochecha esquerda. Colocaram-lhe um longo vestido branco e trançaram os cabelos, roupas e penteado que ela detestaria, com certeza. Parecia que ela levantaria a qualquer momento e diria “Quem diabos colocou essas roupas cafonas em mim?!”. Então me abraçaria, daquele jeito de sempre, quase me derrubando ao pular sobre mim. E nós sairíamos de fininho, para nos beijarmos atrás de um carro qualquer. Porém, nada disso aconteceu.

Suas mãos estavam juntas sobre o peito. Toquei uma delas, pequena e fria. Um turbilhão de memórias invadiu a minha mente, como estava acontecendo desde manhã.

***

Eu estava novamente no segundo ano, encolhido no fundo da sala. Boatos sobre o novato já haviam se espalhado por todo o colégio. Minha expressão mal-humorada e o hábito de fuzilar todos com o olhar contribuíram para as especulações. Eu havia esquecido o caderno, então pedi um folha emprestada a uma garota qualquer. Logo, todos estavam dizendo que eu era “o valentão que roubou o caderno de uma garota do segundo ano”. Sério, eu não tinha paciência para aquilo.

As pessoas desviavam de caminho quando me viam passar e os cochichos eram frequentes pelos corredores. Mas uma menina em especial não parecia se importar com isso. Ela tinha cabelos longos e castanhos, pulseiras indie preenchendo os antebraços e um constante delineador preto ao redor dos olhos. A garota me olhava de forma zombeteira, como se quisesse deixar explícito que não tinha medo de mim.

Quando Sr. Ronaldo nos colocou juntos em um trabalho de matemática, vi Hanna debruçar-se sobre o papel onde eu fazia anotações e debochar da minha caligrafia:

— Seus números são estranhos.

Sim, Hanna Cavalcante de Medeiros, meus números são e sempre foram estranhos, não só no quesito caligrafia.

E foi àquela garota, a que tinha um pontinho preto na bochecha esquerda, que, quando sorria, formava vincos dos lados da boca, que falava palavrões sem pudor, que tinha as sobrancelhas arqueadas de forma misteriosa, que dizia que fora acima do peso na infância, mas agora tinha o corpo de qualquer modelo morrer de inveja, foi a ela que me agarrei. Porque eu não tinha mais ninguém.

***

Não eram só os meus números que eram estranhos. Os da Hanna eram também, não por serem tortos, mas por acabarem cedo demais. Agarrei firmemente sua mão enquanto me debruçava sobre o caixão.

— Ainda é cedo, minha pequena. — sussurrei, alto o bastante somente para ela ouvir.

Mas eu sabia que ela não ouviria. Nunca mais.

Uma lágrima escapou de um dos meus olhos, trilhou um caminho marotamente pelo meu rosto e pousou na face pálida dela. Curvei-me e depositei um beijo suave em sua testa.

— Me desculpe. — Meu murmúrio perdeu-se em meio a voz embargada pelas outras lágrimas que já estavam por vir.

Então fechei os olhos com força e dei as costas para o caixão. Eu não queria que minha última lembrança de Hanna fosse aquela.

O sol já estava mergulhando no horizonte, colorindo o céu em tons de rosa, vermelho e laranja. Lembrei-me do seu rosto sorridente, em outro dia, num horário parecido com aquele, quando fomos ver o pôr-do-sol no litoral de Tibau do Sul. A Cidade do Sol não recebeu este apelido à toa, dona de praias e vistas estonteantes.

Para mim, não havia nada mais bonito que ver o tom dourado da luz do sol refletido nos olhos da minha morena.

Guardei essa lembrança enquanto corri dali, em direção ao sol, como um camundongo correndo em vão numa roda. Como um adolescente de coração partido querendo mudar inutilmente o ponteiro do relógio para retardar o tempo. Para ter mais números.


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Notas finais do capítulo

* Como a história se passa em Natal, haverão algumas gírias e expressões regionais, principalmente porque os protagonistas são adolescentes. Listarei aqui as principais e mais usadas:
* Boy: A cada 10 palavras que se houve nas ruas de Natal 9 são "boy" e suas "variações" (boyzinho e boyzinha). O detalhe é que este substantivo não varia em gênero.
* Resenha: pode significar praticamente tudo! Quando apareceu uma fofoca nova, quando teve uma festa, quando teve uma briga, quando está conversando, quando aconteceu algo divertido, engraçado, quando se está brincando (tirando onda)... enfim...
* Galado: Este vocábulo pode significar "gente boa", "amigo" como "imbecil", "idiota".
Acho que só usarei estes.

E voltamos àquelas perguntinhas:
O que achou deste capítulo? Gostou?
Encontrou algum erro? Se sim, por favor, indique o trecho para que eu possa corrigi-lo.
E sobre o personagem desse capítulo, o que achou sobre ele?
Já tem algum personagem favorito? Está ansioso para saber o que acontecerá com algum deles?
O que poderia ser melhorado? Tem sugestões?

Ou, se quiserem, podem fazer uma pergunta diretamente para o Erik, que ele irá responder.
Beijinhos e até o próximo