Vida e Morte de Zachary Walker escrita por Florels


Capítulo 1
Prólogo




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A manhã nebulosa combinava com o humor de Zachary Walker naquela tarde, o mesmo que lhe acompanhava nos últimos vinte anos. Tinha apenas dezenove, mas eram dezenove há muito tempo. Encostado na parede fria do quarto escuro, ele se entretia com Rimbaud em um pequeno livro surrado, seu último furto da biblioteca central. Os barulhos ocasionais no resto da casa eram rotina, pouca coisa o assustava. Acreditava que já havia visto de tudo, que os anos haviam lhe dado toda a experiência necessária. Todavia, ainda tinha apenas dezenove. Os anos de angústia adolescente lhe haviam pagado com um niilismo sufocante e um humor instável, que o fazia se inflamar do tédio à raiva com pouco. Gostava da própria companhia. Era a única que não o abandonava, afinal.

Ele evitava ao máximo que podia abrir a janela e sentar-se no telhado. Era irresistível, mas sempre lhe causava uma chuva de lembranças, o que se tornou desagradável. A morte é saudosita, isso ele havia descoberto da maneira mais dura possível. Lembrava dos anos ensolarados, os anos de skate e os anos em que acreditava que seria o próximo Cobain que o mundo viria. As paredes ainda tinham as marcas de sua breve passagem por aquele quarto de sótão, que um dia fora um pedaço de seu mundo. Hoje, ele sentia que nada mais físico de fato lhe pertencia.

Não sentia frio, não sentia fome. Ele olhava os braços: neles ainda havia as mesmas cicatrizes das agulhas com que se injetava heroína durante a rápida e conturbada vida. Nas coxas, as mesmas tatuagens. As raízes dos cabelos nunca cresciam mais do que haviam crescido um dia, e se ele o tentasse cortar, em breve o tamanho se retomava como se nada houvesse acontecido. Mas os novos ferimentos, as novas transformações, estas desapareciam assim que ele se desse conta. Tentara diversas vezes se mutilar, na tentativa desesperada de por um fim ao que já havia paradoxalmente acabado. Mas antes mesmo que ele terminasse, a pele estava novamente intacta. Ele era portanto, uma imagem estática de seu último suspiro. Depois deste, tudo o que ele fizesse não deixaria mais marcas. Era como se ele não existisse mais.

Os gatos de Alice as vezes cruzavam o jardim. A menina dos cabelos loiros e encaracolados frequentemente os seguia, numa busca eterna. Zachary gostava de gatos, eles pareciam compreendê-lo, vê-lo através de seu semblante. Quando seu humor lhe apetecia, sentava no gramado com a pequena menina, ambos esquecendo um pouco da terrível desventura em que se encontravam e se entregando apenas à simplicidade dos risos despreocupados da infância. Ela tinha apenas 11, porém há mais tempo do que toda a existência dele. Além das mesmas lamúrias, tinham a casa vitoriana em comum, que era como um lar que lhes fora roubado.

E assim a eternidade se discorria, preenchida por imensos e inexoráveis vazios. Acostumado demais sua solitária companhia, acreditava que tinha esquecido como se relacionar com outras pessoas. Seria melhor assim, pensou enquanto contemplava pela janela a melancólica paisagem do jardim dos fundos abandonado. Já havia estragado vidas o suficiente. Mas ele não se arrependia de nada. O garoto imprudente que fora em vida ainda flamejava em seu peito. Mal saberia ele que a plenitude só seria alcançada, paradoxalmente, após seu fim.


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