A Órfã Doce 2.0 escrita por morangochan


Capítulo 5
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Notas iniciais do capítulo

Oi morangolinas, aqui é a Morangochan :3
Feliz ano novo (mega atrasado)! Este é o primeiro capítulo do ano e é com grande felicidade que afirmo a inexistência de capítulos "enchedores de linguiça" nessa versão.
Neste capítulo Lílian pode se meter em problemas, será?
Boa leitura ♥



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Inspirava e expirava devagar. Meus passos eram os únicos sons ecoantes no apartamento solitário. O relógio informava cinco e meia da manhã. A frustração tomava conta de mim, tanto que me forcei a sentar à mesa para ordenar meus pensamentos. Por uma fração de segundos tudo que consegui foi praguejar: maldita memória!

Os primeiros raios de sol nasciam preguiçosamente no horizonte. Tal fato deixou-me boquiaberta visto que Shaper's Green não costuma ser uma cidade ensolarada. Andei até a janela, contemplando o céu azul. O calor gostoso batia em minha face, os pássaros cantavam e alguns vizinhos estavam se exercitando na rua. Senti que estava presa num comercial de absorventes.

Mais uma vez meu lado positivo e meu lado negativo despertaram para ter sua cota de discussão. O otimista apreciava o dia e me encorajava a aproveitar o máximo possível. Porém, o negativo recordara que todos os dias "bonitos" são complicados para mim. Tenho a teoria de que um ser superior avista bombas prestes a estourar em cima de mim e tenta me consolar com dias bonitos.

Beethoven apareceu em minha mente, apartando a briga entre minhas duas metades. Ele balançava os braços em busca de minha atenção e respirou comigo profundamente. Qual lado venceu naquela manhã? Não sei dizer. Eu sabia que não era sensato deixar minha paranóia arruinar tudo, mas também tinha em mente que não poderia esperar um dia magnífico. Manter-me preparada para o pior seria uma forma de não perder a fé em meu lado otimista. Por fim, decidi começar a me aprontar para ir à escola.

A mente ainda conturbada, o humor nada bom. Como lamentava por ter me permitido esquecer algo tão importante. Quanta burrice! Tentava recordar das outras vezes em que tinha cometido o mesmo erro. Pois bem, não conseguia lembrar uma ocasião positiva em meio desse esquecimento. Será que eu era tão incontrolável ao ponto de não viver um dia bom sem aquela coisa? "Hoje será diferente daqueles outros dias?", refleti.

Segui com minha rotina matinal. Infelizmente o mundo fica de mal com você quando você resolve ficar de mal com o mundo. O desjejum parecia estar tão sem sabor que só conseguia sentir o calor do café, nada mais. Refiz minha trança na frente do espelho várias vezes. Era para ela se parecer com uma coroa de flores, e não com uma minhoca retorcida. Frustrada, encarei meu reflexo e desejei ter comprado mil quilos de cimento na loja de maquiagem do shopping. Mas por outro lado, não adianta ter ferramentas se você não sabe como usá-las. Nota mental: aprender a usar maquiagem.

Já que estava bem adiantada, resolvi mandar um recado para Mila informando a mesma que já poderia vir me buscar no Green Place. Meus avanços massantes pelo corredor aguçaram meus olhos para cada detalhe que os cruzasse. Em meu andar, por exemplo, notei algumas pontas soltas do papel de parede, as casas de aranha no teto e o quão mal iluminado era aquele lugar, mesmo que o sol estivesse brilhando lá fora.

Entrei no elevador com a mochila nas costas e as mãos enfiadas nos bolsos. Ao invés de estar acompanhada por vários moradores apressados, me vi apenas na presença de Nathan, meu vizinho de porta. Ele estava tão aéreo que sequer notou minha presença, mas isso não me causou aborrecimento. Eu, mais do que ninguém, sabia o que era se desligar do mundo por ter muitas coisas sobrecarregando a mente.

“Nathan deve estar pensando no que aconteceu ontem entre Amelie e ele” opinei. Não me permiti teorizar sobre o caso, pois logo as portas do elevador se abriram e o loiro despertou de seu transe. Foi só então que fui notada pelo menino, mesmo que estivesse a meio metro dele. Sem graça com a situação, deu um sorrisinho amarelo:

— Hoje é um dia ruim. — Nathan falou como se estivesse se justificando para mim.

Saímos do elevador, mas eu não o acompanhei. Mordi o lábio e refleti sobre a previsão do biscoito no Culinária Mágica. E se o que estava escrito naquele papel ainda não tivesse se concretizado?  “Você vai se ferrar de verdade”, recordei.

— Isso não está ajudando. — murmurei para mim mesma.

As árvores brancas e rosadas soltavam suas pétalas cheirosas por todo o chão. As carpas virtuais ainda residiam no lago, balançando suas nadadeiras tranquilamente. E mesmo que o sol estivesse brilhando nos céus de Shaper's Green, os hologramas ainda estavam bem visíveis. Não houve conversa alguma no carro a não ser os cumprimentos de "bom dia" e o educado "cuide-se". Mila, apesar de cansada, ainda estava belíssima. O glitter intenso no cabelo rosa dava sinais de que não sumiria tão cedo.

Naquela manhã eu não estava tão diferente de Nathan. Por mais que tentasse evitar e até mesmo lutar, para não ficar pensando em minha mudança, acabei cessando meus esforços. Era como estar presa em névoa, me sentia tão perdida. Várias coisas me vieram à cabeça como o fato de eu não saber absolutamente nada sobre Mila, por exemplo. Claro que eu sabia algumas coisas: ela é modelo e filha da diretora Ana, que é a que dirige o Colégio Militar de Shaper’s Green. Entretanto, o que eu mais sabia sobre a vida dela? Ela é minha tutora e eu nem ao menos tinha conhecimento que em sua casa residiam duas pessoas. E afinal, quem morava com ela? Será que Mila era casada ou tinha alguém? Um cara ou uma moça? Será que era só um amigo ou uma amiga? E essa pessoa seria legal cuidando de mim?

Tantas perguntas, tantas perguntas! Não ter resposta alguma me trazia frustração. Qual era o problema de detalhar tudo de uma vez só? Seria melhor para mim, assim não sofreria em enlouquecedoras sessões de teorização comigo mesma.

— Ufa, achei você. — disse a voz amena de Elizabeth Faber.

Meu transe se desfez no minuto em que a ruiva agarrou meu ombro, usando-o de apoio enquanto recuperava seu fôlego. Olhei por cima do ombro, ela ofegava. Seu corpo subia e descia levemente, o que por consequência fazia seus cachos acobreados quicarem no ar.

— Bom dia. — cumprimentei com um leve sorriso.

— Bom dia. — ela respondeu. — Eu quase não te achei no meio dessa gente toda.

— Pois é.

Olhei em volta discretamente. Eu, no final do universo do corredor de armários infinitos, conseguia enxergar estudantes por toda a parte até onde a vista alcançava. Sendo cedo ou perto do sinal bater, nunca vi tanta gente ocupando o primeiro andar.

— Eu sei que você deve ter ficado confusa e se perguntando o porquê de tudo estar diferente hoje.

Na verdade, não, mas tentei fingir ao máximo que Elizabeth estava com completa razão em sua tese. Assim, ela prosseguiu tagarela:

— É dia de se inscrever nos clubes. — gesticulou com a mão.

— Mas por que todos estão tão amontoados assim?

Antes de me responder a ruiva deu uma pequena risadinha. Fechei meu armário e seguimos juntas pelo corredor lotado.

— É que todo ano surge um boato. Este ano disseram que o CLEAS só aceitará membros que subirem a escadaria depois deles.

— Aceitar? Mas os clubes não são abertos?

— Todos são, exceto o CLEAS. É o único clube que precisa de avaliação para entrar. Mas não faz diferença, sabe? Eles nunca aceitaram outro membro.

— E o que exatamente os membros do CLEAS fazem para que todos estejam tão interessados assim?

Elizabeth Faber deixou outro risinho escapar e após encolher os lábios para conter-se, disse de vez:

— Ninguém sabe o que eles fazem.

— Então por que estão todos interessados em se afiliar?

— Porque são burros, Lílian.

Todo nosso bom humor virou fumaça assim que chegamos aos pés da escadaria. Minha mão já estava agarrada ao corrimão quando trombei com outra pessoa. De início não soube bem quem era, mas assim que avistei o cara negro, a asiática e o cabisbaixo menino de cabelos compridos, deduzi que o condutor dos outros três não era ninguém menos do que Charlie Peters. Eu o olhei de cara fechada, já ele me olhou como se eu fosse uma formiga da qual ele poderia soprar facilmente para fora de seu caminho, se fosse essa sua vontade. Elizabeth Faber agarrou e puxou meu braço com força na intenção de deixar os quatro passarem em nossa frente.

Virei-me para a ruiva, prestes a questionar sua ação, porém deparei-me com um pânico tão genuíno em seu rosto que a sensação de choque foi imediata. Nada saiu de minha boca, nem mesmo um “a”. Uma gota de suor escorreu em sua testa e sua respiração estava tão ofegante quanto agora a pouco quando nos encontramos. E todo esse estado só começou a se dissipar quando os membros do CLEAS já haviam sumido de nossas vistas. A ruiva respirou tão fundo que tive a impressão de ver eu mesma quando passei mal no Culinária Mágica.

— Elizabeth, você está bem? — indaguei preocupada.

— Sim. — respondeu a garota repousando sua mão em meu ombro, ainda respirando profundamente.

Não era simples pânico como quando uma barata sobe na sua perna. Um medo profundo estava claramente estampado em seus olhos. O mesmo medo que ontem quase me fez perder o controle sobre mim mesma. No meu caso, era o temor de ficar sozinha novamente. Mas e o medo dela? Não demorou muito para que puxasse na memória as imagens de Nathan e seus óculos escuros seguindo comigo para casa. A paralisia dele ao avistar os caras no sinal se parecia muito com o que acabara de presenciar. Elizabeth Faber tinha medo de Charlie Peters.

Qualquer palavra de consolo existente não me veio à cabeça, e me odiei por isso. Após toda a tremedeira abandonar seu corpo e sua respiração voltar ao normal, subimos as escadas, pois logo as mesmas estariam lotadas. Foi dito e feito: atrás de nós estavam vários alunos enchendo os degraus. A grande maioria, senão todos, deveriam estar apenas aguardando a subida do CLEAS para irem às salas de aula.

Logo que tomamos nossos assentos, a professora Lopes surgiu. Sem sombra de dúvida aquela foi a aula de matemática mais confusa da história. Por um minuto me senti tentada a levantar a mão e perguntar se a direção do colégio decidira lecionar grego e não havia nos notificado. Ocorreu-me pedir ajuda de Elizabeth quando passamos para os exercícios de sala, já que ela demonstrava ser boa em matemática, mas a ruiva estava tão aérea que repensei a possibilidade.

O comportamento da minha amiga passou a me incomodar muito no decorrer das outras aulas. Ela não estava mais com aquele pânico no rosto, mas mantinha-se acuada e tal estado não costuma ser o estado normal da mesma. Pensei no que dizer ou em como conversar no intervalo, porém minha deficiência em diálogos estava atrasando meus planos. Foi então que o ódio por Charlie Peters começou a borbulhar dentro de mim. Se ele realmente havia pagado aqueles caras para bater em Nathan, não merecia o apreço que lhe davam os alunos da Elite Acadêmica de Shaper’s Green. Na verdade ele sequer merecia o chão que pisava.

“Quem me dera poder dar um soco naquele nariz empinado dele”.

O intervalo pareceu demorar uma eternidade para chegar, entretanto o mesmo me soava como um sopro de ar fresco, visto o tanto que me senti sufocada numa sala com Elizabeth naquele humor. Minhas tentativas de diálogo acabavam sempre parecendo tolas e artificiais demais. Mas o que eu poderia fazer? Sentia-me nervosa, nada bom sai de mim quando sinto pressão. Eis que Elizabeth troca os livros de sua bolsa e deixa em mãos uma revista de capa curiosa.

— O que é isso? — perguntei.

— Eu cheguei mais cedo e elas estavam num suporte de frente à escola.

Faber virou a capa para que meus olhos pudessem identificar a figura iconicamente desagradável de Charlie Peters. Entre os títulos da capa estavam “Como lidar com a pressão da escola”, “Seu estilo combina com estampas galáticas, arco-íris ou glitter? Faça o teste” e o mais importante, em letras mais notáveis “Entrevista exclusiva com Charlie Peters”. Na foto, o garoto exibia um sorriso muito lindo, devo admitir, porém isso não significava que eu era como as outras pessoas que esperaram o CLEAS subir as escadas.

— Garota Mística?

— É a revista adolescente de Shaper’s Green. — explicou Elizabeth. — Para ser franca eu não gosto muito desse tipo de revista, mas adoro o horóscopo e os testes. Por que quem não gosta dos testes, né?

Aqueles corredores nem mesmo pareciam os mesmos de horas atrás. Todos os estudantes que antes povoavam o primeiro andar, agora estavam dispersos pelo prédio. Elizabeth me explicou que cada clube usava uma sala do segundo andar como sede. No caso, a concentração de alunos foi redirecionada para o segundo andar por conta das inscrições. Elizabeth e eu fomos até o refeitório, que também contava com a presença de pouquíssimas pessoas. Tal fato me alegrava muito, devo ressaltar, pois a fila para comprar o almoço estava muito menor se comparada com a de dias normais.

— Ler essa entrevista com o Charlie Peters me deu raiva, ele mente na cara dura. — comentou a ruiva enquanto esperávamos na fila.

— Ele mente sobre o que?

— Bom… Lê-la é a melhor forma de compreender.

Os pratos do dia pareciam mais caprichados, apesar de poucos alunos estarem comendo. Minha escolha foi um delicioso creme de frango acompanhado por um arroz muito apetitoso, mas havia tantas coisas que eu poderia comer para sempre se quisesse provar de tudo. Elizabeth e eu nos acomodamos em uma das várias mesas do refeitório e começamos a comer e bater papo. No meio da refeição ela parou a conversa e me estendeu a revista.

— Agora que estamos sentadas você já pode ler. — ela ofereceu. — Uma dica: faz o teste depois para melhorar seu humor.

Aceitei todas as sugestões bem humorada. Estava me sentindo bem melhor por ver que Elizabeth se tranquilizara por completo. Ela nem ao menos tremeu quando disse o nome do garoto enquanto estávamos esperando para comprar o almoço.

Abri a revista e fui direto no sumário para me informar qual página começava a entrevista com Charlie Peters. Passei as páginas até quase chegar no final e antes de começar aquele show de horrores, resolvi ler meu horóscopo. Nele dizia:

“Você está prestes a enfrentar muitas mudanças. Mas corajosa que é, claro que não pode se abalar! Não desista e continue de pé”. Pff, que tipo de previsão clichê é essa?

A página seguinte era a introdução da entrevista. E aparentemente aquela revista tinha um protocolo antes de exibir o texto contendo as perguntas e as respostas do entrevistado. Este protocolo consistia em duas páginas inteiras de fotos variadas. De terno a sem camisa. Fazendo careta, arrumando o cabelo, com a língua de fora exibindo a pedra reluzente de um piercing, entre outras. Até tive a impressão de que algumas fotos tinham o intuito de mostrar o lado sexy de Charlie Peters, mas creio que tiveram muita pouca vontade quando fizeram o ensaio fotográfico. E só depois de toda essa enrolação, achei o que procurava:

“E: Primeiramente eu e toda a equipe da Garota Mística agradecemos demais a sua presença. Bom, todos os leitores de outros veículos de entretenimento estão acostumados a ver sua figura em artigos sobre economia onde você se pronuncia ao lado de sua mãe. Foi estranho receber o convite de uma revista adolescente?

Charlie Peters: Para ser sincero, foi sim. Mas não tive motivos para rejeitar a oferta. Quer dizer, é uma revista adolescente. Eu sou um adolescente. Fora o fato de que eu adoro experiências novas e achei que essa seria divertida.

E: Você por si só já é divertido. Então aproveitando esse clima vamos falar sobre seus amigos. No colégio Elite Acadêmica de Shaper’s Green você tem um clube?

Charlie Peters: Sim, o CLEAS. Eu e meus amigos somos os fundadores. Nós tínhamos dez anos, foi muito gratificante e ainda é muito gratificante ter essa memória sempre intacta em mim. Eles são os melhores do mundo.

E: E quanto a sua mãe? Todos nós sabemos que Lexa Peters é uma das, senão a maior, empresária de Shapers Green. Diga-nos, Charlie, é muito difícil ter uma mãe tão popular assim?

Charlie Peters: Mais ou menos. Bom, por ela ser uma figura pública nossa vida sempre foi muito exposta, entende? Mas ao mesmo tempo, já sou acostumado a isso visto que a presença da mídia não é nada nova para mim. Crescer nesse meio ajuda a saber lidar com tudo isso.

E: Por falar em Lexa Peters, falemos sobre a polêmica de seu atual discurso, onde ela critica o tabagismo e também o dono de uma indústria de cigarros que estava presente na cerimônia. Qual é a sua opinião sobre jovens que são influenciados todos os dias ao consumo desta droga?

Charlie Peters: Tenho o mesmo posicionamento de minha mãe. Afinal, não tem como ser a favor de algo que degrada o corpo, tem? Meu conselho para os jovens é que repensem bem suas escolhas, principalmente se estas podem comprometer a saúde.

E: Você é um rapaz bem polêmico assim como a sua mãe, não é, Charlie Peters? Chegou a nossa equipe um boato de que você pagava pessoas com ordens de espancar alunos da Elite Acadêmica de Shapers Green dos quais você teria desentendimentos. O que tem a dizer sobre isso?

Charlie Peters: Nossa, que horror. Eu não sabia que as pessoas estavam inventando esse tipo de mentira sobre mim. Jamais machucaria alguém, muito menos pagaria para que terceiros machucassem. Isso é coisa de gangster, não? Na minha opinião não há nada que um diálogo não resolva”.

Elizabeth tinha razão, eu estava com tanta raiva que minhas mãos pesavam sobre o papel querendo amassá-lo. Fechei a revista delicadamente, mesmo que não fosse minha vontade. A especulação de que Charlie Peters foi o autor da barbaridade cometida contra Nathan veio da boca de dois caras desconhecidos no corredor, por isso tive minhas dúvidas sobre o assunto. Mas agora estava claro que ele era o culpado e havia mentido na entrevista. Também era compreensível o motivo pelo qual Elizabeth ficou tão aterrorizada quando esbarramos em Charlie. Ela tinha medo de ser a próxima, de sofrer o mesmo que Nathan sofreu.

— Ah, não. — lamentou a ruiva.

— O que foi?

Elizabeth apontou com o queixo para uma garota incrivelmente bonita parada no meio do refeitório. Seus cabelos eram negros, brilhantes e tão longos que ela poderia ser a próxima Rapunzel. Uma câmera estava fixada no meio do peito por um suporte elástico preso em seu busto e em suas mãos se encontrava um microfone retrô. Os olhos claros da garota afiavam-se a cada segundo a procura de algo. E assim que reparei o quão debruçada na mesa a minha amiga estava, entendi quem a garota Rapunzel queria encontrar.  Mas é claro que Elizabeth jamais poderia se esconder com aquela juba ruiva enorme.

— Amanda Byron. — cochichou Elizabeth para mim enquanto a garota vinha em nossa direção.

— Quem é?

E antes que pudesse me responder, Amanda chegou à nossa mesa exibindo sua postura confiante. Ela sorriu tão meiga que não consegui ignorá-la.

— Bom dia, eu sou Amanda Byron, poderia responder umas perguntas?

— Acho que não, querida. Quem sabe ano que vem? — respondeu Elizabeth de má vontade.

— E quem disse que eu falei com você? — a calma e objetividade nas palavras da morena pareciam amplificar aquele coice. — Lílian Maxine?

— Sim?

— Você poderia responder algumas perguntas? Não levará nem cinco minutos.

“Não fale com ela” ouvi Elizabeth resmungar entre os dentes. Seguramente afirmo que Amanda Byron também ouviu o pedido da ruiva, mas resolveu empinar o nariz e ignorar a existência da garota. Então fiquei no dilema se atendia ao pedido da morena bonita ou se dava ouvidos à Elizabeth. Não tive que pensar dois segundos para concluir qual era a decisão mais sensata, todavia aquela que parecia uma repórter se mostrou bem insistente.

— Vamos, por favor. — ela implorou manhosa, tomando meu braço e erguendo-me da cadeira. — Só precisa ficar de pé aqui e responder as perguntas olhando para a câmera.

Era altamente esquisito atender uma garota que gemia de leve enquanto falava e que, ainda por cima, me mandava olhar para uma câmera sufocada por seios tão volumosos. Será que essa era a estratégia dela para fazer as pessoas cederem?

— Pronta?

— Eu acho que sim.

— Mas antes de começarmos… — Amanda pausou, umedeceu os lábios e jogou uma mecha de cabelo por cima do ombro, fazendo aquela cara de esnobe que eu achava ser invenção de Amelie. — Por que você decidiu ser amiga justo da Elizabeth Faber?

Arqueei minhas sobrancelhas em resposta à cara de pau daquela menina em falar daquele jeito como se Elizabeth não estivesse logo atrás de nós. Além de zangada, me senti mal por não ter recusado o pedido. Senti seus olhos atravessarem minha nuca, mas eu merecia, não é?

— Como é?

— Ah, perdão, eu te ofendi? — indagou Amanda cinicamente. — Era apenas uma mísera curiosidade minha. É que você é tão boa para se acompanhar de alguém como ela.

— Não vejo como a Elizabeth pode ser pior que o CLEAS, por exemplo.

Meu tom exaltado revelou que em breve daria as costas para ela, por isso Amanda resolveu acelerar antes que isso acontecesse. Mas a garota seguiu fingindo que não havia acontecido nada, o que acabou me irritando também.

— Não temos muitos novatos na Elite Acadêmica de Shaper’s Green, por isso faço essa pergunta por todos: o que você fez para entrar na escola militar?

Eu não sabia se ficava brava, se ria da cara dela por ser uma burra ou se ficava intrigada por ter entendido que muitas pessoas estavam curiosas a meu respeito. Então pensei em minha vivência no Colégio Militar de Shaper’s Green e me peguei imaginando o que a diretora Ana responderia.

— A mesma coisa que fiz para estudar aqui: me matriculei. — não satisfeita com a resposta, prossegui. — Ao contrário do que muitos pensam, colégios militares não são reformatórios. E informo que nenhum aluno ou ex-aluno de colégios militares se agrada com alguém perguntando o que ele fez como se tivesse cometido um crime e ido parar na cadeia.

Pela cara de Amanda Byron, eu a havia forçado baixar um pouco a bola. Seria bom ter olhos na nuca para conferir a contorcida face de Elizabeth segurando a risada. Constrangida pelo fora, a repórter prosseguiu:

— Qual é a sua visão da Elite Acadêmica de Shaper’ Green?

Franzi a testa em confusão. Que decepção ver que os questionamentos da garota eram tão desinteressantes. Já que seria assim, daria respostas desinteressadas.

— É uma boa instituição. — disse. Amanda esperou alguns segundos, achando que eu prosseguiria com o comentário. Mas não, por isso passou para a próxima pergunta.

— Já se inscreveu em algum clube?

— Não, e nem pretendo.

Desta vez foi Amanda que franziu a testa em confusão. Minha atitude estava deixando a repórter desconcertada. Ela encarava o chão em busca de uma nova pergunta, era como se estivesse desorientada. A meu ver, era uma vitória, já que não demoraria muito tempo para ela desistir e ir embora. Mas então um sorrisinho sutil habitou seus lábios por não muito mais do que dois segundos.

— Nem o CLEAS?

— Muito menos o CLEAS.

— Francamente. — falou Amanda Byron em meio de uma risada. — Está claro que a Elizabeth Faber te manipulou para detestar o CLEAS. Que pena, não é mesmo?

Se eu ainda fosse a mesma pessoa de oito meses atrás, talvez, teria arrancado seus cabelos e a faria comê-los, mas essa não era a Lílian Maxine que eu havia me tornado. A sensação de vitória foi muito mais poderosa quando pensei em como responder.

— Aproximadamente oitenta por cento dos alunos ficaram no primeiro andar até o CLEAS subir a escadaria porque foi dito que  — dei ênfase nas três últimas palavras para sugerir que o autor do boato poderia ser qualquer um. — o CLEAS só aceitaria candidatos que subissem as escadas depois deles, em sinal de subordinação. Mas sou eu quem estou sendo manipulada pela Elizabeth, não é mesmo?

Amanda relaxou os ombros e arfou como se acabasse de sofrer um golpe no estômago. A menina já mostrava sinais de rendição, mas não era agora que eu recuaria. Ela se deu o trabalho de vir a nossa mesa, me fazer levantar, menosprezar a minha amiga e insinuar que sou delinquente por ter estudado em um colégio militar, então agora teria que ouvir calada o que eu tinha para dizer.

— Você quer saber o que eu acho dessa escola? Eu vou te dizer o que eu acho, especificamente sobre os estudantes. — minhas palavras foram ágeis e demonstravam indignação. A repórter recuou o rosto levemente para trás como se quisesse fugir de mim, porém ainda repensava se seria o mais sensato no momento visto que eu poderia segui-la e quebrar sua cara. — Tem gente aqui tão burra, mas tão burra que se tornou fanática, e que faria qualquer coisa para participar de um clube cujo as atividades nem se sabe. Enquanto isso o objetivo educacional desta instituição é ignorado. — arfei. Meu coração se agitava embebido em sangue fervente. Rangi meus dentes entre uma pausa que durou segundos. Então urrei. — Charlie Peters é um apêndice. Ninguém precisa dele, mas todos estão tão obcecados em serem reconhecidos como amigos dele que nem percebem que estão ficando cada vez mais ridículos e estúpidos. E se você quer saber...

Meu corpo foi violentamente jogado para trás. O ponto de impacto foi o ombro esquerdo, que latejava, o mesmo havia sido empurrado com muita força. Para minha surpresa o autor do feito era Nathan. O mesmo estava parado de frente para mim tapando a boca com as mãos.

— Ah, meu Deus, você se machucou!

— Não. Eu estou bem… — respondi. Todavia qualquer tentativa minha de discordar do garoto foi abafada pelo alarme de sua voz estrondosa.

— Você se machucou! Preciso levá-la a enfermaria.

Sem mais avisos o loiro me pegou nos braços e saiu correndo do refeitório. E apesar dos berros e das várias ordens para me soltar, ele continuou seguindo. Porém, não para a enfermaria como ele disse que ia me levar. Quando vi, já havíamos cruzado o portão da escola e ele virava à esquerda, em direção ao corredor de árvores. Eu nunca havia ido para lá, mas se não fosse meu desespero e minha confusão, teria apreciado mais o efeito da luz em nossos corpos.

Nathan parou, me pôs sentada em um dos bancos que residiam ali. Seus braços sacudiram violentamente no ar enquanto ele trovejava:

— Você tem noção do que acabou de fazer?


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Notas finais do capítulo

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