Safe-Zone escrita por Agatha, Amélia


Capítulo 2
Hopper


Notas iniciais do capítulo

Não era pra ter sido desse tamanho, mas acabamos nos empolgando com o capítulo e demorou mais que o previsto.
Obrigada pela recepção. Já estávamos animadas com a ideia da fic, agora então...
Responderemos os comentários lindos assim que possível, nós resolvemos dar preferência à postagem do capítulo. Logo vocês terão suas respostas.
A respeito do que dissemos no primeiro capítulo (sobre ser uma história sobre nada), surgiram novas ideias e parece que essa fanfiction terá uma trama.
Boa leitura!



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— Bom trabalho, pessoal! – Avery exclamou para seus companheiros quando o caminhão finalmente parou, decretando o fim demais um dia exaustivo de trabalho. Alguns iriam para suas casas com o intuito de descansar para enfrentar outro dia de labuta quando o Sol voltasse a se erguer, enquanto a maioria se reuniria em frente à fogueira para cantar e beber a noite toda. – Para os que não vão ficar, até amanhã!

Uma a uma, as pessoas foram descendo da traseira do caminhão. A mulher costumava brincar que tinha escolhido aquele emprego por ser um dos poucos que permitia o uso de um veículo movido a gasolina. Em tempos como esses, seria inconcebível esbanjar combustível, por isso era raro encontrar um morador da Zona-Segura que tivesse andado em um carro nos últimos anos. Avery Hopper tinha orgulho de dizer que fazia isso quase todos os dias. A equipe de construção tinha vários motivos para precisar daquele caminhão: primeiramente, os materiais de construção eram pesados demais, transportá-los a cavalo gastaria muitos animais e mais tempo ainda; em segundo lugar, a quantidade de construtores era grande demais, de forma que muitas montarias teriam que ser disponibilizadas em tempo integral para supri-los.

A sua equipe saía ordenadamente do veículo. Javier estava parado logo abaixo dele, ajudando as mulheres a descer. Poderia lembrar uma cena de conto de fadas, se o príncipe em questão não tivesse três cicatrizes no rosto, barba e longos cabelos que passavam dos ombros. Ele até que se esforçava para parecer polido, entretanto na maioria das vezes parecia um animal enjaulado, alto como era e com o excesso de cabelos. E Avery adorava isso. Seu charme estava todo nesse mistério, na sua forma de viver.

A primeira garota que recusou ajuda foi Emma, obviamente, que dispensou o homem dando um tapa em sua mão antes de pular do caminhão. A jovem caiu de maneira meio desajeitada, porém rindo. Avery, por outro lado, revirou os olhos para a amiga e aceitou o auxílio com todo o prazer. Logo em seguida veio a princesa, que foi sequestrada por seu cavaleiro. Assim que a loira mais jovem pegou na mão de Javier, ele simplesmente a colocou no ombro e, apesar dos protestos dela, não a colocou no chão até alcançar o restante do grupo.

— Você é impossível! – Melanie reclamou claramente irritada.

— Às vezes – Javier respondeu com um sorriso encantador. Apesar de contrariada, ela não impediu que o homem a abraçasse.

— Ótimo, não podíamos acabar o dia sem mais um show do casal – Hopper comentou para Emma enquanto caminhavam com o restante do grupo.

— Eles nem são um casal...

— Claro que são. Os dois moram juntos há muito tempo, e não é só para cuidar da irmã dela.

— Avery, agora você está seguindo a rotina deles? Vai me dizer que você sabe o que eles comem no café da manhã?

— Não, eu só acho que essas demonstrações públicas de afeto são muito irritantes e desnecessárias – não eram as demonstrações, e sim o casal. Javier e Melanie brigavam frequentemente, na maioria das vezes por culpa da mulher, mas sempre estavam juntos.

— Além de perseguidora, você virou uma daquelas velhas conservadoras que foram para Alexandria para fugir da “vida leviana que as pessoas têm no Alto do Morro”? – a amiga provocou, repetindo o que uma idiota qualquer dissera certa vez. Não que a tal velha tivesse razão, contudo o Alto do Morro era certamente a comunidade mais liberal. Havia mães solteiras, namorados que viviam juntos, casais gays e festividades não tão bem vistas assim, tudo que desagradava os mais antigos. Houvera vários confrontos entre as mulheres conservadoras e os jovens “levianos”, até que Jesus sugerira que as incomodadas se mudassem para Alexandria, uma comunidade mais tranquila. Aquilo a irritava muito. Já tinham sofrido demais e ainda assim havia pessoas que implicavam com coisas tão simples. – Ou você só está dizendo isso por causa da Melanie?

Emma sempre dizia que a vida era muito curta para perder tempo odiando uma pessoa e que o ódio era um sentimento tão profundo que seria difícil de ser despertado com tanta facilidade como as pessoas diziam. Provavelmente lera isso em algum dos livros de Athena. Então o que sentia pela garota de cabelos cor de ouro? Melanie Clarke nunca havia feito nada contra ela, e era provável que nunca fizesse, simplesmente por ser perfeita e estar num nível mais alto do que as demais pessoas. A loira parecia conseguir as coisas fácil demais. Entrara para a sua equipe de construção, mesmo que, no início, não fosse capaz de erguer um mísero tijolo. Além disso, era fresca demais para uma sobrevivente do apocalipse, era simpática e agia como se fosse melhor que os outros e soubesse algo que ninguém mais sabia. Com vinte e quatro anos, chamava atenção por sua beleza onde passasse e conseguia transformar simples olhos castanhos em poderosos orbes hipnóticos. E, para coroar, mesmo com todos os homens aos seus pés, ela ainda conquistara o mais difícil deles: Javier Monaghan. E Avery não estava exagerando. Apesar do excesso de qualidades e da falta de defeitos, Melanie era uma pessoa fechada e solitária. Só era vista com a irmã, o namorado e a única amiga.

A chefe dos construtores não tinha inveja de Melanie, longe disso, apenas não a suportava e odiava o fato de ter que passar quase todos os dias de sua vida ao lado dela. Hopper amava a sua vida, não a trocaria por nada, nem mesmo pela felicidade aparente da outra. Clarke vivia como se estivesse tudo bem, como se os mortos não tivessem voltado à vida e uma guerra não tivesse acontecido. Talvez para ela estivesse tudo bem. Melanie tinha um namorado lindo, uma irmã que a adorava e um trabalho legal. Embora soubesse que não gostava da jovem, ela nunca era capaz de explicar para a amiga o motivo daquilo, Emma nunca entenderia. Às vezes Avery não conseguia explicar para si mesma.

— Ela age como se fosse superior, fica bem de amarelo e namora o Javier. Precisa de mais alguma coisa? – agir como a dona do mundo só porque de vez em quando dava alguns palpites na construção do centro não a qualificava muito.

— Ela não é assim.

— Você fala isso por experiência própria ou porque a sua namorada disse?

Emma nunca responderia. Primeiramente porque o grupo chegara ao centro do Alto do Morro, onde eram feitas as reuniões noturnas; e por ser a pessoa mais leal que Avery conhecia. Poderia muito bem ser por experiência própria. Athena, a namorada dela, era a melhor amiga de Melanie e era possível que as duas tivessem se conhecido em algum momento. E, se tivessem se conhecido mesmo, era óbvio que Emma teria gostado da loira, pois ela tinha o dom de gostar de todos.

— Sabe do que você precisa? De uma bebida. Quem sabe depois de algumas eu não te convença a cantar? – logo em seguida a garota saiu para ajudar os outros a preparar a festa.

Beber era uma boa ideia, mas cantar não. Avery não se lembrava da última vez que cantara, deveria ter sido em um passado muito distante, quando ela fora outra pessoa. Se os tempos fossem outros, a mulher teria roubado a rabeca de um dos músicos e tentado tocar de improviso, como teria feito com um violino décadas antes. Porém aquilo fora em outra vida, e a nova não era tão alegre quanto a antiga tinha sido. A vida profissional não ia mal, muito pelo contrário. Hopper supervisionava a equipe de construtores, estava fazendo o que amava e, pela primeira vez em muito tempo, era um projeto grande. Depois de meses construindo postos avançados ao longo de toda a Zona-Segura, a loira recebera de Rick e Jesus o projeto do Centro de Convenções da Zona-Segura, chamado por muitos de centro comunitário. Apesar do apelido, o lugar era muito mais que isso. Quando ficasse pronto, seria um lugar que reuniria habitantes das quatro comunidades e seus líderes e, além disso, tinha a parte de que Avery mais gostava: o local teria um memorial que homenagearia todos os mortos da Guerra Total.

Por outro lado, Carl tivera outra recaída. Ela não ousava dizer isso em voz alta, o namorado odiaria ouvir isso, entretanto era a verdade. Ao longo dos dezessete anos pós-guerra, foram várias as vezes que ele ficava deprimido por conta do que perdera. A guerra mexera com a sanidade de muitas pessoas, Avery sabia que também tinha mudado muito, mas com Carl era outra história. Hopper ainda não entendia como tinha continuado bem, enquanto tantos tinham enlouquecido. Gabriela dizia que só tinha continuado sã porque houvera muito trabalho a fazer, contudo a filha não podia dizer o mesmo. Uma parte de todos tinha morrido naquele conflito, isso era visível. As quatro comunidades eram cheias de pessoas marcadas ou mutiladas, mas havia uma ferida que nunca cicatrizaria. Não importava quantos anos se passassem, era impossível esquecer aqueles que tinham ficado para trás e tudo que tinha acontecido.

Ela sempre pensara que poucas coisas poderiam abalar Carl Grimes, o garoto que dera um tiro na própria mãe para que ela não retornasse com um andarilho, e uma dessas poucas coisas acontecera. A perda da maior parte do seu membro inferior esquerdo fora um golpe terrível para ele. No começo, todos estiveram esperançosos, pois haviam acabado de vencer uma guerra, e não poderiam ter sido mais tolos. O jovem Carl tinha acordado perguntando de sua mãe e do bebê que iria nascer, como se tivesse esquecido os últimos cinco anos. Rick tentara explicar as coisas da melhor maneira possível, no entanto a reação de Carl ao saber da morte da mãe e da irmã não fora nada boa. Quando, no dia seguinte, ele acordara com a memória restabelecida, todos tinham ficado aliviados, até o momento em que o jovem havia percebido que tinha uma perna a menos. Dali em diante, Carl nunca mais fora o mesmo.

O namorado de Avery se tornara um homem esquivo, que tinha momentos de irritação, pânico, flashbacks e se afastara cada vez mais da família. Com o tempo, esses momentos ruins passaram a acontecer em intervalos de tempo maior, o que não significava que fossem menos intensos ou mais curtos. Grimes nunca admitira e nunca admitiria esse quadro de estresse pós-traumático, o que acabava dificultando o tratamento. Apesar de tudo, a pior parte para Hopper era ver como ele se afastava dela. Avery sentia falta dos tempos em que não havia segredos entre eles, de quando o assunto nunca acabava e o silêncio não existia. No fundo, ela só queria que o namorado se abrisse novamente, que dissesse o que sentia ao menos uma vez.

O tempo só servira para afastá-los mais. Carl mergulhava cada vez mais no trabalho de ferreiro, chegando ao ponto de dormir na forja algumas vezes. A namorada acabara por fazer o mesmo, ficando atarefada demais com a liderança de seu pequeno grupo. Apesar de o trabalho ser recompensado com mantimentos, ambos tinham motivos diferentes para exercer seus ofícios. Ele trabalhava para esquecer, ela, para construir o novo mundo.

O fim da Guerra Total trouxera um longo período de instabilidade, com sua paz frágil e sua política jovem. Foram necessários alguns anos até que as leis fossem estabelecidas em conjunto, e mais anos se passaram até que todos se acostumassem com isso. Os líderes haviam optado por não criar uma moeda, em vista dos problemas que o dinheiro causara no passado. Dessa forma, as pessoas trabalhavam pelo direito de receber comida toda semana, além de roupas e outros itens básicos com alguma frequência. Tudo que era produzido em qualquer uma das comunidades era usado para fazer trocas com as demais, de forma que cada lugar acabara se especializando em algo. O Alto do Morro tinha foco nos trabalhos com metal e madeira, o Reino se destacava na agropecuária, Alexandria era voltada para a manufatura e a Fortaleza era responsável pela defesa da Zona-Segura. Apesar disso, todas as comunidades possuíam plantações, criações de animais, oficinas e quarteis.

A fogueira foi acesa, com o cheiro de carne impregnando o local e a madeira estalando, ao mesmo tempo em que as canecas de cerveja eram passadas pela roda. Não demorou muito até que a música começasse, com homens e mulheres cantando alegremente. Algumas pessoas começaram a chegar, amigos e parentes dos construtores. Entre elas estava Athena, que trazia consigo a pequena Wendy. Ver a menina fez com que Avery se esquecesse dos problemas imediatamente, mesmo que ela fosse irmã de Melanie. Já fazia algum tempo que ela passara a ver crianças com outros olhos, e isso já dizia tudo. A loira nunca pensara que crianças pudessem ser tão boas para alegrar ambientes, porém nos últimos meses essa ideia a perseguira constantemente. Talvez... Não.

Essa decisão teria que ser tomada em conjunto, e tudo que o casal fizera nos últimos meses foram ações individuais. Essa era outra questão que a deixava com raiva de Carl. Hopper já havia demonstrado antes seu desejo de ter filhos várias vezes e parecia que o namorado ignorava isso. Ele sempre adiava essa conversa, e Avery sabia que em algum momento isso não poderia mais ser adiado. Ela tinha trinta e seis anos, logo não poderia mais engravidar. Mas havia outra opção. A loira tinha pensado algumas vezes em adotar, da mesma forma que tinha sido adotada por Gabriela, e lhe parecera uma boa ideia. Havia orfanatos em todas as comunidades com crianças esperando por pais.

A menina e a mulher se juntaram ao grupo, e Avery percebeu que Emma não voltaria mais. Ela e Athena eram muito próximas, tinham uma relação especial e pareciam se conhecer muito bem. Apesar de serem completamente diferentes, as duas se davam muito bem e já tinham cinco anos de namoro. Emma tinha nascido da Fortaleza, e se mudara para o Alto do Morro aos quinze anos depois de ser adotada por um morador da comunidade. Assim como muitos, a jovem era uma órfã da guerra, cujos pais lutaram e morreram por Negan. Ela fora criada por todos e por ninguém, nunca tivera alguém para chamar de pai ou mãe. A melhor amiga de Avery era avoada e inocente, algo que definitivamente não combinava com o ambiente oferecido pelos Salvadores, muito menos com o trabalho pesado da construção. Essa personalidade só era conhecida por pessoas realmente próximas, pois, diante dos demais, Emma era introvertida e séria. De certa forma, Avery tinha a impressão de que ela só se abrira verdadeiramente para Athena Hall, sua irmã adotiva e namorada.

Hall era uma mulher inteligente, de pele pálida, longos cabelos loiros, olhos cor mel aguçados que sem dúvida eram sua marca registrada, além da voz calma e da pequena pinta sob os lábios. Ela trabalhava como professora e encantava qualquer criança com as histórias que contava no final da tarde. Emma, pelo contrário, mantinha seus cabelos castanhos acima dos ombros, tinha olhos igualmente castanhos e a pele levemente bronzeada. A morena, por sua vez, atuava na obra como uma espécie de engenheira ou arquiteta.

De repente, um som melódico e hipnotizante invadiu seus ouvidos, as conversas aos poucos cessaram e outros instrumentos começaram a ser tocados, em sua maioria instrumentos de corda e sopro. Nada como música, pensou, sentindo-se relaxada apenas por escutar as primeiras notas de uma canção. Avery não tocava havia muito tempo, contudo escutar era algo completamente diferente. Em meio a tantos instrumentos, o som da flauta de pã atraía Hopper de maneira embriagante. A pequena flauta era tocada por Javier, que parecia outra pessoa enquanto soprava os pequenos cilindros de madeira. Olhando com atenção, a loira percebia que ele não era tão bonito assim, todavia era o charme que chamava atenção.

A expressão séria constante e as cicatrizes faziam com que a maioria evitasse um segundo olhar, porém Avery não conseguia. Seus cabelos castanhos e espessos terminavam no final das costelas, enquanto a barba cobria a maior parte do rosto. Hopper nunca descobrira a cor dos olhos dele, apenas sabia que eram claros e penetrantes. As cicatrizes profundas no rosto tinham origem incerta, ninguém na Zona-Segura parecia saber o que as tinha provocado e ninguém se sentia muito à vontade para perguntar. De qualquer forma, elas eram a primeira coisa que alguém reparava nele. A menor delas era uma pequena linha acima da sobrancelha direita; outra marcava a bochecha direita com o formato de um raio invertido; a maior de todas percorria o lado esquerdo do rosto, indo da têmpora ao lábio superior.

Tão misteriosa quanto as cicatrizes, a vida de Monaghan era desconhecida. Ele chegara exatamente no momento em que Daryl precisava de um substituto, estabelecendo-se naturalmente como caçador oficial da Zona-Segura. Depois de sua chegada, os estoques de carne aumentaram consideravelmente, fato que desagradava Dixon e divertia Avery. Inicialmente fora um nômade, mas nos últimos tempos parecia estar se instalando no Alto do Morro. Ninguém sabia ao certo de onde ele viera, o que fizera antes e durante o apocalipse ou quem realmente era, isso era um mistério para todos. Melanie deveria saber. Ela era certinha demais e ele, errado demais para os padrões dela, por isso Hopper não compreendia como eles poderiam estar juntos, mas estavam.

— Oi – um homem sentou-se ao lado da loira, cortando seus pensamentos.

— Sam! – Avery teve que se conter para não gritar de susto e de alegria pela volta de seu irmão. Ela queria abraçá-lo ou embalá-lo em seu colo como fizera tantas vezes em público apenas para irritá-lo, entretanto apenas roubou a grande caneca escura em sua mão, cheia de cerveja. A irritação desejada foi a mesma. – Sempre tão preocupado com a sua irmã! Não precisava ter trago para mim.

— Você já teve piadas melhores, irmãzinha – Sam forçou uma risada e retirou a caneca de suas mãos antes que ela pudesse dar um gole.

— Irmãzinha? Sabe quantos anos eu sou mais velha que você, Dixon?

— Na verdade, não – Avery sentira muito a falta de Samuel e estava grata por finalmente dar uma boa gargalhada. O irmão fora um garoto muito sério, pelo menos até os seis anos de idade. Depois disso, ela e Daryl estragaram o menino, e esse era o resultado: um homem barbado, com uma caneca de cerveja na mão e cheiro de cigarro. Hopper gostava dele assim. – Então vocês sempre fazem festinhas assim?

— É. Não fazem isso na Fortaleza?

— Não, o velho Malcom está ficando mais rigoroso.

— Você acabou de chegar? – a loira pensara que ainda faltavam algumas semanas para o retorno dele, ou apenas estivera preocupada demais para pensar nisso.

— Sim, só passei em casa. Eu fico fora por dois anos e parece que tudo mudou. Ficou sabendo que a Mika está grávida?

— Não... – Sam não era muito sutil para essas coisas. Avery não estava feliz como deveria, mas isso não era culpa dele. Scott e Mika eram dois anos mais novos que ela e, embora já tivessem muito tempo de casados... Era como se a vida de todos fosse a algum lugar, menos a dela. – Quais são as outras novidades?

— Você já estava sabendo da aposentadoria do pai e, por sinal, ninguém me contou nada.

— Isso já tem um bom tempo. O substituto é aquele ali – Hopper apontou discretamente para Javier, sentado de pernas cruzadas tocando a sua flauta.

— Acho que é apropriado... – Dixon comentou em tom de aprovação, provavelmente havia gostado das cicatrizes. – Mas sem essa flauta. Estão construindo um centro comunitário também.

— Está falando com a chefe do projeto.

— Não brinca! Desde quando você mexe com construção? – Avery passara anos sem ter um trabalho fixo. Na época da saída de Sam, ela estivera atuando como mensageira.

— Eu não fiz o projeto, só lidero a equipe mesmo. Eu cuido da organização da obra, faço a ponte entre os trabalhadores e os líderes, mando relatórios para eles... Resumindo, eu supervisiono o projeto e coloco a mão na massa de vez em quando. Eu gosto do que faço – depois de anos migrando entre as profissões, Hopper sentia que finalmente tinha encontrado a sua vocação.

— O que te fez escolher isso?

— Ser mensageira nunca foi a minha primeira opção, era algo que eu conseguia fazer razoavelmente bem e parecia agradável de fazer. Mas essa coisa de vocação não funciona bem com todo mundo. Alguns são como a Brianna, que queria ser médica desde sempre; outros só descobrem o que querem fazer aos trinta e cinco, como eu. Eu precisei fazer muitos serviços aleatórios por anos até descobrir que eu queria trabalhar com isso – quando terminou, Avery fitou o irmão. Samuel parecia prestar atenção demais para um assunto tão sério como esse, o que significava que ele tinha dúvidas em relação à sua vocação.

— Obrigado, Ave. Acho que eu realmente estava precisando ouvir isso.

— De nada, mas... Droga, Dixon! Eu realmente preciso ganhar a aposta! Eu pensava que você iria fabricar balas...

— Sinto muito, Hopper. Vou desapontar vocês no final e exigir o prêmio para mim.

— Você deveria procurar o Tyreese, a conversa que eu tive com ele me ajudou muito. Só não garanto que terá o mesmo resultado... – comentou brincando com as pulseiras no pulso esquerdo, e as lembranças do ano passado povoaram sua mente.

Todos os anos, com o fim da safra, o Reino organizava uma grande feira, além de diversas festividades para comemorar a colheita bem sucedida e o término do ano com fartura antes que o inverno impregnasse toda a região de branco e isolasse as comunidades. Carl e Avery sempre compareciam à maior festa da Zona-Segura, que durava sete dias. Havia barracas de jogos e comida, casamentos, dança, música e muita bebida. Na primeira vez que foram, o namorado dela havia conquistado uma pulseira na barraca de tiro ao alvo, e desde então isso era a tradição do casal: todo ano Grimes a presenteava com uma pulseira nova. Hopper tinha o pulso esquerdo cheio delas, eram o bem material que ela mais prezava junto com o colar da mãe.

Na última feira do Reino, a loira encontrara Tyreese Williams por acaso. O homem não era muito de sair, por isso vê-lo na festa fora uma grande surpresa. A maior surpresa, entretanto, tinha sido a conversa dos dois. Avery não se lembrava do motivo de ter puxado assunto com ele, provavelmente porque na época estivesse desanimada com o trabalho de mensageira. Depois de um longo diálogo repleto de assuntos que não tinham nada a ver com profissões, Tyreese havia indicado o ofício de construtora. A explicação dele fora simples: o trabalho de mensageira era solitário, enquanto a construção exigia um convívio intenso com toda a equipe, algo que era mais adequado para uma pessoa sociável como ela.

O palpite não poderia ter sido mais certeiro. Inicialmente, a mulher havia trabalhado diretamente nas obras, construindo postos avançados. Quando não estava fazendo isso, toda a equipe se dispersava e fazia trabalhos temporários, como consertos em casas e ajuda nas colheitas. Com o tempo, Avery havia se destacado pela habilidade de relacionamento, o que lhe rendera a nomeação de chefe da equipe.

— Valeu pela dica.

— Mais alguma novidade?

— Parece que Jesus vai receber novos discípulos e estão procurando o sucessor de Ezekiel.

— Como você está desinformado! A fábrica de munições precisa desesperadamente de alguém para substituir Eugene. Outra mulher morreu no parto em Alexandria, por isso Sarah e Brianna foram até lá para tentar descobrir as causas disso. Falando nela, acredita que Harlan pretende burlar as regras e fazer dela uma médica antes do serviço obrigatório na Fortaleza? – Isso sim são novidades.

Depois da Guerra Total, os líderes da Zona-Segura optaram por criar esse serviço obrigatório, parecido com o Exército. Dessa forma, toda pessoa que completasse dezoito anos e estivesse em boas condições físicas era obrigada a passar dois anos como recruta na Fortaleza, antigamente chamada de Santuário, treinando com os Salvadores. Essa medida fora muito importante no início, uma vez que a guerra havia atraído centenas de errantes para a região. Com o tempo, os mordedores se tornaram escassos, porém o serviço obrigatório permaneceu como forma de ensinar aos jovens como se defender e lutar. Avery não passara por isso, uma vez que tinha completado vinte anos pouco depois da guerra. Carl, apesar de estar na idade, fora poupado devido à sua deficiência. Scott e Mika não tiveram esse privilégio.

— Além disso, soube que a Carol de Alexandria está vindo pra cá. Ah, já ia me esquecendo da pior parte: houve um incêndio e perdemos mais da metade da nossa colheita. Estão pensando em fazer racionamento esse ano – sempre teriam os alimentos exportados do Reino, entretanto o que era cultivado no Alto do Morro abastecia quase metade da comunidade e aumentar a cota de exportações era inviável, uma vez que não tinham mais o que trocar. Seria um ano difícil.

— Bem, agora eu estou aqui e pretendo recuperar o tempo perdido.

— Pode começar com a sua irmã. Não me disse nada sobre a sua temporada na Fortaleza – qualquer novidade servia como quebra de rotina.

— Não aconteceu nada demais...

— Sam, muita coisa mudou, tenho certeza – dava para ver isso nos olhos dele.

— Tudo mudou e nada mudou. Fui sozinho e voltei sozinho, mas lá era diferente. Eu tinha amigos, fiz missões, apostas... Pode ser que aqui eu sossegue um pouco. Sabe, a mamãe merece que ao menos um de seus filhos seja decente – Hopper riu, não antes de dar um soco no braço dele.

— E as namoradas?

— Deixei várias chorando no portão.

— Isso é verídico?

— Claro que não, não tive tempo para isso.

— Quer dizer que o meu irmão fez celibato?

— O que é isso? – uma das coisas que ela mais gostava dos mais novos era o fato deles não terem conhecido o mundo antigo. Às vezes a mulher esquecia que eles não sabiam o que era um palhaço, internet ou cinema.

— É quando a pessoa se mantém solteira, acho.

— Não, eu tinha uma garota. Mas era casual, sabe? Sem compromisso.

— Qual é o nome da coitada que se deitou com você?

— O nome dela é Hanna. Ela é bem conhecida – Dixon bebeu o resto da cerveja e se levantou. – Acho que eu tenho que ir. Fiquei de passar na casa da Maggie. Você também deveria ir.

— Tecnicamente, eu ainda não sei da novidade. Tchau, garoto.

— Não sou mais um garoto! – ele anunciou antes de ir, parecendo mais do que nunca um garoto.

A loira ainda se demorou um pouco mais na festa. Conseguiu beber um pouco, como desejara, mas não ao ponto de ficar bêbada, como havia imaginado. Só depois da terceira caneca Hopper percebeu que não estava no clima para aquela festa, nem para a reunião na casa de Maggie. Emma estava se divertindo com Athena, todos ao redor da fogueira pareciam felizes, exceto Avery.

Ela saiu do local sem falar com ninguém e caminhou sozinha pelo escuro caminho de pedra que levava até o conjunto de habitações. À medida que os sons da festa diminuíam, o ar parecia ficar mais frio. A sensação de vazio naquele momento foi inevitável. A chefe dos construtores foi até seu quarto, onde vestiu um blusão e se jogou na cama, cansada demais para qualquer coisa.

Carl dormia ao seu lado, e ela aproveitou para observá-lo por algum tempo. Era em momentos como esse que Avery tinha certeza de que não trocaria sua vida por nada. Ela e Grimes haviam crescido juntos, enfrentado os mesmos problemas. Não existia em lugar algum uma pessoa que pudesse substituí-lo. Não trocaria dormir ao seu lado por nada nesse mundo.


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Notas finais do capítulo

O que acharam?
Os novos personagens já estão no nosso Tumblr, podem dar uma olhada lá.
Vocês têm alguma sugestão? Algum POV que queiram futuramente ou algum personagem que querem ver?