O ano em que eu me apaixonei pelo Paulo Guerra escrita por Jel Cavalcante


Capítulo 3
Jogos vorazes


Notas iniciais do capítulo

"Nessa hora, uma voz lá dentro de mim começou a sussurar baixinho: Alícia, minha querida. Desde quando você se tornou tão insegura?"



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Domingo, 03 de Janeiro


40 minutos gastos pensando no que escrever aqui, 0 coisas interessantes para serem escritas, 1 lembrança maldita (extremamente péssimo), todas as calorias do mundo (e desde quando eu me importo com isso?)

15h00. Finalmente eu tive um dia sem grandes emoções. Passei a manhã inteira jogando o jogo favorito da minha mãe: escravização de filhos. Pelo menos a pilha de louça foi suficiente pra não me deixar pensar em mais nada a não ser chegar no último pratinho sã e salva. O papel do Caio era bem mais simples, colocar a louça de volta no lugar. Sério, ele não precisava nem ao menos enxugar alguma coisa. E mesmo assim o geniozinho foi capaz de quebrar um prato e três copos - dentre eles o de estampa africana vindo diretamente da Nigéria, que minha mãe tinha ganho de natal - ou seja, o prejuízo precisou ser descontado da nossa mesada. Exceto pelo fato de que SÓ EU ganho mesada. Mas tudo bem, ele só tem cinco anos.

Minha mãe, como era de se imaginar, ficou uma fera comigo e, mesmo sabendo que não tive culpa nenhuma do desastre humano chamado Caio Gusman, baixei a cabeça e juntei os cacos quieta - se aquela criatura se cortasse eu ia ter que pagar com sangue. Exageros à parte, ela passou o dia inteiro de cara feia, mas até que não foi tão ruim assim. Tranquei meu irmão no quarto dele, com um controle de videogame na mão e um filme passando na tv - ele sempre achava que tava controlando os personagens do filme e isso de longe era a coisa mais divertida que eu tinha pra fazer nesse domingo maravilhoso.

Com a paz instaurada à minha volta, fiquei no meu quarto o dia todo lendo Jogos Vorazes. E num é que era bom mesmo! Fazia um tempo que a Carmen tinha me emprestado esse livro mas eu fiquei com um pé atrás porque detesto sagas. Pra mim essas coisas só servem pra encher o bolso de um bando de analfabeto que só sabe escrever a mesma coisa. Mas, como ela me falou que era uma distopia… eu resolvi dar uma chance - mas Divergente jamais!

Oitenta e seis páginas depois, deixei o livro de lado e fui procurar alguma coisa legal na internet. No facebook não tinha nada de interessante, a não ser o fato de eu ter descoberto, completamente por acaso, que o Paulo tinha passado o dia inteiro jogando videogame. Fazia séculos que eu não tocava no meu ps3. Até que deu saudade…

No twitter vi um monte de gente comentando sobre o novo filme do Star Wars - a cada dez tweets, nove eram do Adriano falando que ia ser o filme do ano, bla bla bla, nerdices, bla bla bla. No meio desse flood todo achei, novamente por acaso, uma frase do Paulo que dizia: se todas as mulheres sumirem do planeta, eu juro que me torno um ser humano melhor. Embaixo tinha uma resposta do Jaime dizendo: tirando as nossas mães. Se bem que, se tratando do Paulo, nem a própria mãe dele escaparia. Enfim, Paulo sendo o Paulo.

No instagram, mais Paulo. O QUE ACONTECEU COM AS MINHAS REDES SOCIAIS QUE SÓ TEM ESSE MENINO ASQUEROSO? Ai que vontade absurda de dar unfollow! Pena que isso só ia servir pra que todo mundo percebesse que eu me importo com ele.

Continuei olhando aquela foto. Se eu não o conhecesse, diria que aquele rapazinho era uma criança como qualquer outra. Fofinha e indefesa. Mas eu sabia muito bem que aquela criatura não tinha nada de fofo e muito menos de indefeso. Apesar de tudo, permaneci analisando a foto. Havia alguma coisa diferente no sorriso dele. Acho que nunca nem tinha visto um sorriso de verdade naqueles lábios. E foi justamente quando comecei a olhar pros lábios dele que o meu coração começou a disparar como se fosse explodir. Do nada comecei a lembrar do nosso beijo. Dava até pra sentir a textura da boca dele, encostando suavemente na minha. Resolvi parar com aquela palhaçada e desliguei o celular. Chega de pensar nesse garoto.

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22h00. De noite, eu e a minha família saímos pra comer fora. Eu não estava muito animada com a ideia mas quado vi aquela pizza derretendo no prato, libertei a minha Laura interior e devorei três pedaços em pouquíssimos minutos. Minha mãe já estava melhor, até tinha feito uma piadinha pra descontrair o ambiente. Já o meu pai olhava torto pro meu irmão, que tinha cismado em cortar sozinho o minúsculo pedaço de pizza flutuando num mar de ketchup - eu tinha feito aquele velho truque de afrouxar a tampa do vidro pra ferrar com a vida do próximo que usasse.

Tá, eu confesso que me divertia pregando peças na minha família. Era a única coisa que salvava os meus dias. Talvez eu entenda um pouco o que o Paulo sente quando apronta com alguém… Não Alícia, pelo amor de deus, não comece a se comparar com aquele crápula!

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Quarta-feira, 06 de Janeiro


20 tentativas frustradas de combinar duas ou mais peças de roupa sem parecer uma palhaça de circo (muito ruim), 500 motivos pra achar que eu tô me tornando uma garota fresca e insegura (socorro!), 1 batalha de vida ou morte

9h00. As minhas férias estão passando mais depressa do que o normal. Terminei de ler o primeiro livro de Jogos vorazes em pouco menos de três dias. Eu e a Katniss somos tão parecidas. A gente luta contra os opressores, - não vejo diferença alguma entre a minha família e um governo distópico assassino e cruel - sabemos lutar com vários tipos de armas - bem… no videogame eu arrebento os zumbis até com uma caneta bic - e ainda por cima temos que matar o garoto que a gente gosta.

9h10. Ai, droga! Eu tinha esquecido do encontro hoje na casa da Marcelina. Vou só colocar uma roupa e sair correndo.

9h12. Eu nunca tinha reparado que essa jardineira me deixa um pouco cheinha. Vou tentar outra coisa.

9h15. Não dá! Todas as minhas roupas pareciam menores de repente. Será que eu cresci tanto assim em uma semana? Ah! Achei uma legging vermelha. Falta uma blusa que combine…

9h22. Ok, eu não tenho blusa que combine. Vou colocar uma jaqueta jeans e esquecer que tá fazendo um mega sol lá fora. Pronto, agora falta encontrar a boina - vermelha pra combinar com a legging - e o perfume que eu ganhei de natal.

Uhu! Saindo finalmente. Vai dar tudo certo. Eu acho.

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18h00. Enquanto eu caminhava até a casa da Marcelina, repetia feito uma louca: eu não me importo com o que os outros pensam, eu não me importo com o que os outros pensam, eu não me importo com o que os ou… Nossa, que cheiro enjoativo… Será que… Ai não!

Sim, aquele cheiro horrendo estava saindo de mim. Foi então que eu lembrei quem havia me dado o perfume de presente. Sabe aquela tia que veste estampa florida, passa batom vermelho paixão fatal, usa crocs - tendo idade pra ser avó - e acha que é um ícone da modernidade? Essa é a minha tia Clotilde, tão brega quanto o próprio nome. Só podia ter sido ela.

Agora sim eu ia ter um treco de verdade. Nessa hora, uma voz lá dentro de mim começou a sussurar baixinho: Alícia, minha querida. Desde quando você se tornou tão insegura? Lembre-se, você não precisa se importar com a opinião de ninguém. Você é legal exatamente por ser do jeito que é. E dane-se quem achar o contrário.

Ahh, que saudades eu tenho da velha Alícia. Senti vontade de voltar pra casa correndo e colocar a jardineira com a camisa amarela que eu tanto gosto. Aquela voz interior tinha razão. Eu não tava sendo eu mesma. Tinha até esquecido o skate em casa. Além do mais, fazia dias que eu não jogava futebol e já não tinha mais nenhuma ferida no corpo. Será que eu tava virando uma menina fresca feito a Maria Joaquina?

Não sei muito bem quanto tempo se passou - quando a gente discute consigo mesma, o tempo avança feito um trem bala - mas quando dei por mim, estava diante da casa da Marcelina, que por sua vez, também era a casa do garoto do qual não queria nem lembrar o nome. Seja como for, eu não deixaria que alguém como ele me fizesse sentir diminuída.

Do momento em que toquei a campainha até a hora em que estávamos todas pulando feito loucas em cima da cama, agi como se estivesse em um novo planeta, sem garoto algum pra me deixar pra baixo. Dessa vez tinha a Valéria, a Carmen, a Laura e, obviamente, a dona do quarto. Nós conversamos sobre os seriados da Nick, - que eu particularmente detesto mas... fazer o quê né - sobre a possibilidade da nossa nova professora ser tão boa quanto a professora Helena, sobre a saudade que a gente sentia da Graça e do Firmino - e da diretora Olívia, pelo menos foi o que a Carmen disse - e pra terminar, como sempre, sobre a tragédia natural chamada "meninos".

De início, a Carmen e a Laura ficaram sem entender porque nós estávamos tão chateadas com os garotos, mas logo a Valéria tratou de atualizá-las do que tinha acontecido na virada do ano. Como sempre, a santinha da Carmen foi contra o nosso discurso, mas depois que a gente conseguiu o apoio da Laura - e pra isso a Marcelina precisou ameaçar ela de ficar sem lanche - foi fácil fazer com que todas nós ficamos em sintonia novamente. A única coisa estranha pra mim foi o fato de que a Marcelina também estava com muita raiva, como se algum deles tivesse feito algo à ela em particular. Será que ela e o Mário… Não pode ser. Senão ela tinha me contado. Se bem que eu não contei nada pra ela também. Ah, mas o idiota do P. é irmão dela e seria muito mais difícil contar alguma coisa nessas circunstâncias. Enfim, fiquei um pouco com essa dúvida na cabeça, mas logo atenção se voltou para para outra coisa. Elas começaram a sentir o cheiro enjoativo do meu perfume.

– Gente, vocês estão sentindo esse cheiro? Parece produto de limpeza misturado com borracha queimada - a Valéria, como sempre, era ótima pra acabar com as pessoas em poucas palavras.

– Tem razão. Será que o meu irmão aprontou alguma coisa? - perguntou Marcelina percorrendo o quarto devagar e farejando alguns objetos. Ai meu deeeeeus!

Nessa hora eu tive a brilhante ideia de ir no banheiro. Lá provavelmente teria algum outro perfume que eu pudesse usar pra disfarçar o cheiro. Pedi licença e saí apressada. Ao passar pela sala, dei de cara com aquele-que-não-deve-ser-nomeado, que voltava da cozinha com um copo d’água na mão. Foi um choque e tanto, mas eu segurei a barra feito uma verdadeira guerreira.

– O que você ta fazendo na minha casa? - ele jamais perderia a chance de ser desagradável.

– Que eu saiba essa também é a casa da minha amiga - falei enquanto tentava abrir caminho até o banheiro.

– E onde você pensa que vai? O quarto dela fica pro outro lado - ele entrou na minha frente, tentando bloquear a passagem.

– Não é da sua conta.

Nessa hora, juntei todas as minhas forças, tentando passar por ele, mas, antes que eu conseguisse completar o passo, o idiota segurou o meu braço e me pressionou contra a parede. O nosso rosto estava cada vez mais próximo um do outro. Por um segundo, achei que ele iria me dar um beijo - o que naquele momento era totalmente proibido segundo o juramento das meninas - porém o que fez foi olhar diretamente nos meus olhos e começou a fazer uma cara estranha.

– Nossa, que cheiro horrível! Ta tentando me matar asfixiado é, garota? - começou a gargalhar feito um bandido em posse da mocinha. O que ele não sabia é que eu não tinha um pingo de vocação pra ser mocinha indefesa de filme infantil.

Em fração de segundos, encarnei o espírito vingativo da Katniss e me armei com a única coisa que tinha à disposição, o copo que ele estava segurando. Despejei toda a água na cara dele e corri pro banheiro. Tranquei a porta e fiquei quieta tentando ouvir o que se passava do lado de fora. Lá dentro o tempo parecia ter congelado e tudo ficou em silêncio até que eu consegui ouvir um risinho fraco do outro lado. Será que ele tinha gostado da minha reação? Qual era a graça, afinal? Então lembrei que ainda estava com cheiro de detergente vencido e me direcionei para a pia, onde encontrei alguns perfumes que poderiam me ajudar. Enquanto escolhia qual usar, pude ouvir uma porta batendo com força, provavelmente a do quarto dele.

Saí dali me sentindo maravilhosa. Eu, Alícia Gusman, tinha acabado de vencer a primeira de muitas batalhas.

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Quinta-feira, 07 de Janeiro


1 viagem a caminho, 37 pensamentos positivos a respeito da viagem a caminho, 1 fratura na coluna vertebral (ou quase isso), 1 história ridícula sobre vampiros, laranjas e limões

8h40. Ontem tinha sido um dia pesado mas, após descobrir que a maioria dos problemas estavam apenas na minha cabeça, fui ficando cada vez mais leve. Agora eu já não tinha mais medo do que os outros pudessem pensar a meu respeito. Eu era uma garota livre, independente e prestes a viajar para um lugar incrível onde a paz reinaria por alguns dias. Férias, uhuuu!

Acordei cedo pra arrumar as malas - eu sou daquelas que criam expectativas muito antes do tempo e passam cada segundo checando se ta tudo ok - e aproveitei pra ouvir música. Coloquei uns rock anos noventa e arrisquei uns passos de dança sem sentido - perfeito para uma garota livre, independente e estilosa feito eu.

8h45. Droga! Acho que fraturei a coluna dançando feito uma louca. Tive que interromper o que estava fazendo, a fim de conservar o meu corpo para a viagem. Todos os anos eu a minha família passávamos alguns dias em Ilhabela pra resfriar a cabeça e esquecer os problemas, porém aquela era a primeira vez em que eu realmente tinha um problema pra esquecer.

Resolvi dar uma passadinha nas minhas redes sociais, com cuidado pra não ver nada daquele nojento do P., e notei que a maioria dos meus amigos estavam curtindo as férias mais do que eu. A Maria Joaquina, por exemplo, tinha viajado pros Estados Unidos, onde a Bibi estava desde que as aulas tinham acabado. Eu, particularmente, acho aquele lugar repugnante e, se pudesse escolher algum país pra conhecer, com certeza seria o Chile ou a Argentina. Parecem mil vezes mais emocionantes.

Também vi o Daniel em algum lugar muito bonito, cheio de árvores e com uma cachoeira bem daora no fundo. Não sei porque mas nunca consegui enxergar essa beleza toda que as meninas vêem nele. Talvez seja pelo fato de ele ser certinho demais. Eu odeio gente certinha demais.

O Cirilo, o Koki, a Margarida. Todo mundo tava em algum lugar diferente. E logo logo seria a minha vez. Ops, minha mãe ta chamando - provavelmente pra me mandar fazer alguma coisa bem chata. Melhor eu me apressar.

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20h00. Depois do jantar, minha mãe foi pro quarto dela arrumar as malas da viagem - a essa altura eu já tinha tudo preparado - e me ordenou que colocasse o Caio pra dormir. Após um século correndo pela casa tentando fazer ele escovar os dentes, consegui dominar a fera e fazer com que finalmente me obedecesse. Ao colocá-lo na cama, ele pediu que lesse algum conto infantil. Fui até o meu quarto ver se achava alguma coisa mas tudo o que eu consegui encontrar foi um pequeno texto feito para treinar redação antes das provas finais. Não tinha certeza se iria servir mas li mesmo assim.

Era a história de uma garota vampira que passava o dia inteiro trancada num quarto escuro jogando laranjas na janela do vizinho. Ela fazia isso porque não tinha amigos e achava que de alguma forma as laranjas eram mágicas e poderiam fazer com que ele a notasse. Um dia, cansado daquela situação, o vizinho resolveu ir até a casa dela pedir para que parasse com aquilo, afinal de contas ele odiava laranjas. Ela tentou morder o pescoço dele mas acabou falhando e isso o fez correr assustado. O garoto nunca mais deu as caras e a vampira, mais triste do que nunca, entrou em depressão.

Quando dei por conta, Caio já tinha pegado no sono. Será que a minha história era tão chata assim? Bem, só pra constar, no final o vizinho percebeu que os dois compartilhavam a mesma tristeza e passou a jogar limões na janela dela. Ao ver que estavam chovendo limões no seu quarto, a vampira foi até a janela e deu um sorriso como nunca antes.

Ok, chega de enrolação. Na verdade o conto terminava com os dois juntos fazendo limonada e descobrindo que ser feliz não tinha nada a ver com beijos ou mordidas no pescoço - bem que a vida poderia ser simples assim.

23h45. Acabei de ter um pesadelo onde o Paulo era um vampiro e tentava morder o meu pescoço a todo custo. Fiquei assustada e fui até a cozinha procurar alguma coisa pra comer. Abri a geladeira e vi uma jarra de limonada bem no centro. Será que aquilo era um sinal?


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Notas finais do capítulo

Então, pessoal, o que vcs estão achando? Tô tentando escrever com uma certa regularidade mas ainda não tenho horário fixo de postagem.

Espero que estejam gostando. Bjs e até mais!



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