– Ei! – A voz ecoou – Devíamos enfrentá-lo juntos.

O sorriso era sincero e animado. Não sentia vento, mas de alguma forma os fios castanhos dançavam. Estavam soltos, o que era estranho, pois ela não os usava desta forma. Sua mão estava estendida para ele. Palma voltada para cima, um convite honesto. O sorriso. Um riso quase mecânico se repetia ao fundo, era tão estranho que parecia um sonho.

Um sonho.

É, deveria ser isso.

Seus olhos se abriram e a íris vermelha tornou-se visível. Seu quarto era suficientemente escuro para o sol do lado de fora não perturbá-lo.

– Sonho estranho.

Já havia atrasado demais sua jornada. Sua atitude altruísta havia deixado seu corpo tão exausto e dolorido que precisou tirar mais um dia para se recuperar. Embora seus músculos ainda reclamassem, ele sentia agora que podia prosseguir. Não queria arriscar e perder ainda mais tempo.

Preparava-se para sair. Separou suas coisas e organizou a mochila, faltando apenas terminar de se vestir. Colocou seu jeans azul, o tênis preto com linhas vermelhas em volta da sola e atravessadas no meio do calçado. Uma camiseta preta e sua blusa... Onde estava a maldita blusa?

Procurou em todos os lugares. Revirou as almofadas da sala, bagunçou as gavetas de roupa, tirou toda a roupa de cama. O quarto de hóspedes, talvez? Lembrou-se que havia emprestado para ela, ela devia ter deixado lá.

Abriu, apressado, a porta do cômodo. Com evidente impaciência ele olhou em volta, mexeu nos lençóis, mas nada achou. Olhou rapidamente para a cômoda e encontrou apenas o chapéu branco com uma fita rosa. Ela esqueceu o chapéu e levou sua blusa. Não gostava de andar por ai sem sua blusa. Ela era perfeita, não o esquentava no calor e não o deixava sentir frio quando a temperatura baixava, além de ter suas cores favoritas, por isso sempre a usava. Queria sua blusa de volta.

Pegou o chapéu e o encarou desgostoso. Levaria consigo para devolver quando a encontrasse. Era bom nisso, em encontrá-la. Isso não despertava qualquer resquício de orgulho nele, sabia apenas que eventualmente o fazia. Não era de propósito. Não era mesmo, de forma alguma. Só quando seu objetivo era uma batalha, então era de propósito, mas só para isso. Não a encontrava casualmente, não tinha motivo.

Terminou por sair sem blusa. Não gostava do quão pálido era ou de mostrar isso, mas não tinha alternativa no momento. Pegou sua bicicleta, vermelha que tinha alguns arranhões esparsados, e montou nela, pedalando tendo Ecruteak como destino. Gostava da loja de lá, esta costumava suprir suas necessidades. Mesmo morando em Golderod ele não encontrava tudo o que precisava, além de estar enjoado do lugar.

O vento agitava os fios vermelhos. Sentia os fios ficarem bagunçados, não gostava quando isso acontecia, mas não era como se compensasse gastar energia de seu Kadabra para ir de uma cidade à sua vizinha apenas para manter os cabelos arrumados. Pedalava com velocidade moderada, não estava com pressa ainda, mas também não admirava seus arredores, sequer prestava atenção em seu caminho. Queria ir direto para retomar sua jornada, muito tempo havia sido perdido por nada.

Já passava pela entrada do National Park quando olhou para o lado e viu sua rival. Parecia melhor do que da última vez que a vira. Estava estranha, diferente do que costumava estar. Os cabelos estavam presos como sempre, mas a falta do chapéu era gritante. Se ela estivesse, pelo menos, com o cabelo solto, estaria menos estranha. Interrompeu a pedalada. Ela ainda não o vira. Conversava com seu pokémon inicial como se fosse uma pessoa, e este a respondia como se ela também fosse um pokémon. Se entendiam e isso era tão claro que ele sentiu o estômago revirar de náusea.

“Eu quero te ensinar. Pra você ficar mais forte.”

Desviou o olhar e franziu o cenho. Era irritante, tanto sua força quanto sua origem. Não entendia muito bem como algo tão imbecil podia fazer tanta diferença. Cruzou os braços, mantendo o equilibrio sobre a bicicleta parada por apoiar pé direito no chão e o esquerdo do pedal. Não sabia se a ajuda dela seria realmente bem vinda, ou mesmo se faria alguma diferença no final das contas. Olhou para o lado perdendo-se em pensamentos, indo de como ela poderia ajudá-lo para por que ele deveria ouví-la. Quando, enfim, decidiu voltar sua atenção a ela, surpreendeu-se por ela estar acompanhada.

Ao seu lado estava o outro garoto de New Bark. Lyra e ele tinham a mesma altura. Os cabelos dele eram negros e espetados, talvez por causa do boné preto e amarelo que usava. Tinha um sorriso bobo e despreocupado, rindo com ela enquanto um Marill pulava brincalhão próximo ao Typhlosion. Silver torceu o nariz para a cena. De alguma forma aquela visão o irritava, ele pretendia chamar a atenção dela pra que a proposta feita fosse cumprida. Ele estava certo do que queria fazer agora. Ficar mais forte sempre fora seu objetivo número um, se alguém se dispusesse a encurtar o caminho, seria bem vindo. Ele dobrou a bicicleta rapidamente e a guardou em sua mochila em um compartimento específico para esta. Apanhou em outro bolso o chapéu da menina e respirou fundo. Iria até lá.

O primeiro que percebeu sua aproximação, como sempre, foi o pokémon vulcão. Pôs-se entre ele, os treinadores e o Marill de forma hostil, defendendo-os como se o recém-chegado tivesse a intenção de ferí-los. Silver bufou e o olhou com desdém, encarando apenas Lyra em silêncio. Ao perceber a presença do rival, Lyra tocou as costas de seu pokémon e o tranquilizou. Durante o resmungo desgostoso de Ty, ela se aproximou de Silver com um sorriso.

– Esse é o Ethan. – Apontou para o garoto hesitante ao seu lado – Oi Silver, não esperava te encontrar por aqui.

– Nem eu. – Respondeu secamente, mas evitou olhar para ela. Esticou o braço mostrando o chapéu, e por algum motivo que não entendeu, complementou olhando de soslaio para Ethan. – Você esqueceu na minha casa.

– Então realmente ficou lá! – Lyra sorriu e pegou a peça em mãos, abraçando-a junto ao peito – Tenho algo pra você também. – Tirou a própria mochila das costas e puxou a blusa preta e vermelha que ele havia emprestado – Eu não reparei que estava vestindo sua blusa... O Ty reparou na verdade. – Ele pegou a blusa e a abriu para poder vestí-la – Acho que ele estranhou por eu estar com o seu cheiro.

“Seu cheiro” foi o que ela disse, e ele não sabia o que exatamente pensar. Não sabia se ela achara ruim ou se não havia reparado, ele não tinha certeza do que pensar. Olhava para ela em silêncio, mas invés de parecer frio como sempre, ele parecia tenso e receoso. Ficou parado com a mão direita, apenas, dentro de uma das mangas.

– Isso é ruim? – Deixou escapar, mas não percebeu de imediato devido à inércia da situação.

– Não... – Aos poucos ele percebeu o que perguntara, vendo a menina desviar o olhar e parecer repentinamente tímida. Ela sorriu para ele. – Não era ruim.

– Tá.

Vestiu a blusa abruptamente, fechando até em cima e puxando os cabelos vermelhos de dentro da gola. Ajeitou-os e lançou outro olhar para Ethan, que se limitava a permanecer quieto e estranho no canto.

– Você... – Silver encarou Lyra enquanto se empenhava pavorosamente para conseguir falar de forma natural. E falhou. – Você tinha dito que queria... Que queria retribuir o favor. – Cruzou os braços e se esforçou para ser direto – Você falou sério? – Seu estômago revirava pela decisão tomara sem pensar, convencendo-se superficialmente de que queria fazer isso.

– Falei... Você vai querer minha ajuda? – Nunca em sua vida ele a vira tão animada e ansiosa. Lyra inclinou-se para frente e ficou mais próxima, forçando-o a dar um passo para trás – Isso é ótimo, Silver!

– Lyra... – Ethan tocou o ombro dela – Eu preciso ir. Qualquer coisa você pode me ligar, certo? Até depois. – Ethan a abraçou e foi retribuído naturalmente. Bagunçou a franja dela e se afastou acenando, não sem antes olhar Silver com desconfiança, e o rival retribuiu com uma ameaça oculta nas íris rubras.

Seu estômago revirou mais uma vez ao testemunhar aquela cena. Era extremamente desagradável como eram asquerosos um com o outro. Irritou-o profundamente, tanto que demorou para perceber que Lyra o encarava mais uma vez. Retornou o olhar para ela, vendo-a de cima.

– Que foi?

– Nada! Eu só... – Colocou os braços atrás das próprias costas – Fico feliz por você aceitar. Vamos?

– Pra onde? – Admirou seu autocontrole naquele momento por não ter esboçado nenhuma reação. Perceptível, pelo menos.

– Podemos treinar mais pra dentro... Só sair da trilha, então não atrapalhamos outros treinadores.

– Tanto faz.

Ele deu de ombros e colocou as mãos nos bolsos. Lyra começou a andar se afastando da trilha, chamando-o para segui-la. Apesar de manter distância dela e de seu pokémon, que olhava por cima do ombro e rosnava para Silver, ele estranhamente sentia o seu perfume. Leve, agradável e doce. Não entendia a presença do aroma com Lyra consideravelmente afastada e o vento vindo de suas costas, até que segurou a gola de sua blusa e aproximou-a de seu nariz. O perfume ficava mais intenso na região do pescoço da peça. Estava com o perfume dela impregnado em suas roupas, leve e presente como um abraço indesejado. Respirou fundo nervosamente, vermelho e tenso por querer livrar-se da peça, livrar-se daquele cheiro, mas não poderia simplesmente fazê-lo. Perguntou-se então se o próprio cheiro estaria no chapéu que ele havia devolvido. “Não era ruim”. Será que ela havia passado pela mesma situação que ele quando ainda estava com sua blusa?