Lovebelt escrita por Nina Antunes


Capítulo 1
Capítulo 1




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Existe uma cidade no coração dos Estados Unidos, no estado de Kansas, em que o clima reside nos extremos. No inverno faz muito frio e no verão, um calor escaldante e úmido. Há tempestades durante todo o verão e, não raramente, a cidade entra no caminho de grandes tornados. Lovebelt está no centro do grainbelt, ou cinturão dos grãos. Centenas de fazendas preenchem, em forma de grandes extensões douradas, aquela terra. Menos de 500 pessoas moram na cidade de ruas estreitas e pacatas e quase todas vivem das plantações de trigo nas fazendas que cercam a cidade. Há pouca infraestrutura e quase tudo tem que ser feito nas cidades vizinhas.

Nada disso poderia incomodar Rin Ozawa. Ali ela nasceu, há vinte e nove anos e, assim como o trigo plantado naquela terra há décadas, fincou raízes na pacata cidade. Já tinha passado por dois grandes tornados durante sua vida e viu seu pai recomeçar do zero nas duas ocasiões. A casa, a loja, a fazenda, o moinho e a plantação foram engolidos pelo vento, mas o velho Kenichi Ozawa parecia não estar disposto a desistir. As provações que a vida lhe impôs construíram um homem tão pacato quanto a cidade que morou. O velho Ozawa havia herdado a dura tarefa de criar a filha sozinha depois que a mãe de Rin adoeceu e morreu antes mesmo de a única filha completar três anos.

A ironia da vida de Kenichi foi dar a ele – justo a ele – uma filha tão agitada quanto os ventos de uma tempestade. Rin sempre fora obediente e centrada, mas a personalidade forte e inquieta em nada lembrava o pai. Quando Rin dizia que odiava os fortes temporais e que tinha medo deles, o velho Kenichi sorria antes de soltar um suspiro longo. A chuva também pode ser doce. É ela quem mata a sede do trigo, ele dizia.

Os temporais e ventos que mudaram totalmente o rumo da vida de Rin pareciam ter se acalmado, finalmente. Depois de perder o pai e ganhar uma filha, ela estava começando a superar a dor de se despedir da pessoa que mais a amou no mundo e a superar o medo de ter de cuidar da pequena pessoa que mais amava no mundo. Melissa, sua filha, tinha apenas 5 anos, mas havia herdado parte da personalidade do avô e parte da mãe. Era centrada e inteligente como Rin, mas também serena e intuitiva como Kenichi. Parecia que ela havia escolhido o que havia de melhor na personalidade da mãe e do avô para compor o próprio gênio. Era, acima de tudo, uma menina muito doce e ligada à mãe. Rin não poderia mais imaginar a vida sem Lissy, como costumava chamar a filha. Provavelmente teria enlouquecido quando o pai morreu, há apenas um ano, caso Lissy não existisse.

Rin olhou pela janela da caminhonete, encarando os extensos campos dourados de trigo prestes a serem colhidos. O fim da primavera e o início do verão marcavam o tempo ideal de colheita e logo ela teria que pensar na renovação da plantação média que herdou do pai. Depois mandaria todo o trigo para a moagem, venderia parte do farelo e outra parte transformaria em farinha de trigo, que iria para a receita dos bolos e doces da loja de confeitaria que tinha, no centro da pequena Lovebelt.

O sol refletiu nas lentes escuras dos óculos que Rin usava. Os picos de calor já estavam começando a surgir, escaldando o asfalto grosso das estradas que cortavam os campos de trigo e ligavam Lovebelt a Ellsworth, cidade vizinha e melhor estruturada. Rin olhou o relógio do painel velho da caminhonete e percebeu que estava atrasada. Precisava, antes de buscar a filha na escola de Ellsworth, passar pelo moinho da fazenda, que ficava exatamente no meio do curto caminho entre as cidades. Pisou no acelerador, varrendo as folhas e a poeira da beira da estrada.

A caminhonete vermelha dobrou a esquina de uma pequena estrada de terra, que levava até um grande armazém e a uma torre, com um moinho giratório no topo. Quase não havia correntes de vento naquela tarde, deixando as pás enferrujadas da antiga torre praticamente paralisadas. Rin estacionou a caminhonete e desceu, pisando no estribo antes de alcançar o chão. Ajeitou uma parte da camisa de estampa xadrez que teimou em escapar de dentro do cós da calça jeans e prendeu os longos cabelos negros em um coque alto enquanto caminhava pra dentro do armazém.

A poeira e o cheiro da terra seca logo alcançaram suas narinas, mas ela convivia há tanto tempo com aquilo que seu nariz sequer se incomodava mais. Quando criança adorava assistir à preparação da moagem do trigo.

– Boa tarde, senhor Dawsey. – Rin cumprimentou um homem de meia idade, que esperava à porta do armazém.

– Boa tarde, menina. – Ele sorriu, evidenciando as bochechas bronzeadas pelo duro sol.

– Como estão as coisas por aqui? – Perguntou, levando as mãos à cintura.

– Estamos começando a preparar as máquinas para a temporada – Respondeu, apontando para dentro da enorme porta de ferro da entrada do armazém.

– Ótimo. Acredito que vamos começar a colher os campos em uma ou duas semanas. Preciso que as máquinas sejam revisadas antes do início moagem. O senhor pode checar isso? – Pediu, abrindo um sorriso no rosto também bronzeado pelo sol.

– É claro. Já está em tempo; as tempestades devem chegar logo. – O homem olhou para o céu, que estava límpido e azul naquela tarde, como se estivesse prevendo o que viria nos próximos meses.

– Vamos torcer pelo melhor. – Rin acenou uma vez com o rosto e se despediu, voltando para a caminhonete. Não poderia demorar muito, ou Lissy a ficaria esperando por tempo demais.

Seguiu de volta para a estrada e pisou fundo outra vez, assistindo os campos dourados passarem rapidamente pelos vidros da caminhonete.

As tempestades devem chegar logo.

A frase ecoou na mente de Rin mais uma vez, fazendo com que o coração dela se comprimisse. Depois de tudo que passou nos últimos tempos, não poderia mais pensar em qualquer outra reviravolta.

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Sesshoumaru entrou pela porta do luxuoso apartamento, encarando a vista de Manhattan pelas janelas envidraçadas. O sol estava se pondo, tingindo de laranja as fachadas dos enormes arranha-céus talhados na ilha. Ele retirou o paletó preto e pendurou em um cabide metálico localizado ao lado da porta. Recostou a maleta ali e puxou com o dedo indicador o nó da gravata, a fim de afrouxá-la. Só percebeu que a esposa estava na sala quando sua apurada audição captou um longo suspiro.

Olhou novamente em direção à janela e viu os cabelos loiros perfeitamente lisos espalhados pelo encosto de uma poltrona. Podia ver somente as costas estreitas da mulher, cobertas por uma camisa azul marinho de seda. Aproximou-se a passos curtos, enquanto desabotoava as mangas da camisa impecavelmente branca que usava. Só então viu que ela segurava um envelope claro, com o símbolo da clínica de fertilização que eles haviam contratado há dois anos.

– E então? – Ele perguntou, fazendo com que os olhos azuis o fitassem por cima dos ombros dela.

Sesshoumaru e Rebeca MacHale se casaram há cinco anos, em uma grande cerimônia no salão do Empire State. Ela era filha de um influente jurista de Nova Iorque e médica dermatologista renomada. Conheceram-se durante um dos eventos do escritório que Leonard, o pai de Rebeca, administrava naquela época. Sesshoumaru trabalhava no escritório e havia se formado, com todas as honras, em Yale apenas um ano antes. Havia, de fato, se sentido atraído por Rebeca. Embora ela fosse um tanto temperamental, era muito perspicaz e determinada. Fazia exatamente o tipo dele; discreta e calculista.

Em cinco anos de casamento, nunca haviam travado uma única briga. Sesshoumaru tinha de admitir que eles pouco se falavam, mas ainda assim aquilo representava um recorde para qualquer casal jovem. O único problema era o desejo de Rebeca de ser mãe. Ela sabia desde a adolescência que tinha um problema nos ovários e que engravidar não seria uma missão fácil. No entanto, não havia nada que Rebeca MacHale não conseguisse na vida. Até hoje.

– Outro negativo. – Ela disse, colocando o envelope em cima da mesa de centro de vidro.

Aquela havia sido a quinta tentativa. Os médicos disseram, depois da terceira vez, para começarem a considerar outras possibilidades. Mas Rebeca não queria um filho adotado ou um filho que fosse gerado a partir de uma barriga de aluguel. Ela era herdeira de um dos homens mais ricos e influentes da cidade e não queria correr os riscos de ter outra mulher gerando seu herdeiro, ainda mais porque odiava a ideia de passar por cima de seu orgulho e depender de uma terceira pessoa nesta situação.

Queria um filho de Sesshoumaru, um herdeiro legítimo. Um filho que tivesse os traços dele e, principalmente, a personalidade do marido.

– Sinto muito – Ouviu ele dizer, ainda de costas. – Podemos tentar outra vez, se você desejar.

Rebeca suspirou outra vez. Levantou-se da poltrona e andou até o bar da sala, servindo-se uma dose de gim e tônica.

– Não quero mais passar por outro processo de fertilização, já sei qual será o resultado. – Ela recostou-se à bancada de pedra do bar.

Sesshoumaru ficou parado no mesmo lugar, observando a calma de Rebeca. Nos outros quatro testes de gravidez negativos, a mulher havia ficado irritada, inquieta e decepcionada. Hoje, no entanto, Rebeca parecia estranhamente tranquila. Agia como alguém que tinha um plano B e que havia arquitetado tudo muito bem em sua mente.

– Está pensando em uma adoção ou uma doadora de óvulos? – Ele não ignorou a curiosidade, tentando adivinhar o que a mulher havia pensado.

– Não. – Rebeca negou com um acenar do rosto e começou a caminhar em direção à janela envidraçada. Ela ateve-se à visão do fim de tarde em Manhattan por um longo instante, deixando Sesshoumaru ainda mais intrigado. – Eu estive pensando em algo, já faz algum tempo...

Ele se aproximou devagar, sentando-se no sofá creme, logo ao lado da janela que a esposa olhava.

– Estive pensando na menina. – Ela finalmente cortou o silêncio, virando-se para olhá-lo.

Sesshoumaru sentiu um calafrio cortar todo o seu corpo. Aquele assunto era proibido em seu casamento. Não que Rebeca houvesse determinado que eles não podiam falar sobre aquilo, mas ele mesmo havia se obrigado a esquecer e a esposa nunca fez questão de lembrá-lo.

– Ela tem quantos anos? Quatro? – Quis saber, ainda em um tom de voz absolutamente calmo.

– Que diferença isto faz agora? – As palavras saíram em um nível suave, embora estivessem carregadas de dureza.

– Acho que ela já completou cinco, certo? – Continuou a divagar, mexendo o copo de gim na mão direita. – Hm. Se demorarmos muito, será ruim. – Murmurou.

– Rebeca, uma doadora de óvulos ainda pode te dar um filho meu. Será só um detalhe que logo esqueceremos. – Ele insistiu, cortando o monólogo da esposa.

– Mas o filho nunca será meu. – Rebateu, desviando o olhar para o piso emadeirado e impecavelmente encerado do apartamento.

Sesshoumaru suspirou. Rebeca havia arquitetado cada contra-argumento daquela conversa e estava disposta a convencê-lo de fazer exatamente o que ela queria, embora ele ainda não soubesse exatamente o que a esposa pretendia.

– Nem a menina é. Você não pode gerar uma criança, Beca. – Sesshoumaru finalmente levantou-se, aproximando-se dela. – Mas você pode criar e educar uma. No fim, isto é o que verdadeiramente importa.

– Você tem razão. – Ela pareceu ceder por um instante, virando-se para ele. – Eu só preciso criar uma criança que seja sua. E quem melhor do que aquela menina? Tenho certeza que com ela não teremos nenhum tipo de problema.

Uma linha dura marcou o rosto de Sesshoumaru, que estava finalmente começando e entender onde a mulher queria chegar. E, definitivamente, não estava gostando.

– Por que você está falando disso agora? – Suplicou.

– Eu soube que ela é muito inteligente, tem ótimas notas na escola. Soube que é dócil e muito comportada. – Aproximou-se, ajeitando a gola da camisa dele, embora o tecido já estivesse impecavelmente arrumado. – Por que vamos correr o risco de apostar em outra criança se já temos a filha que queremos? Só precisamos dar a ela a chance de viver aqui...

– Não. – Ele disse, em um tom ainda suave, porém absolutamente firme. Segurou os pulsos dela com gentileza, parando a movimentação dos dedos longos por sua camisa – Isto está totalmente fora de questão. Este assunto já está enterrado e não há nenhuma necessidade de trazê-lo à tona.

– Não há qualquer outra opção, Sesshoumaru. – Rebeca insistiu, olhando-o diretamente nos olhos. – Eu quero um filho seu. E se eu não posso ter, aquela mulher também não terá.

– Trata-se de vingança, Rebeca? – Ele arqueou as sobrancelhas, surpreso. – Está um pouco tarde para pensar nisto.

– Se a questão fosse somente esta, eu poderia ter evitado este problema. Mas não é. – Ela suspirou novamente, virando-se para a paisagem novamente. – Realmente quero um filho e gosto do jeito da menina. Ela só precisa receber a educação correta e será como o herdeiro que eu sempre quis ter. Que nós quisemos.

– Ela não está habituada ao nosso mundo e já está crescida, tem vontade própria. Certamente não vai ser fácil se a questão for tratada em um tribunal. – Ele recorreu à razão, tentando trazer Rebeca para a realidade de que aquilo era loucura.

– Não vamos transformar isto em um show. Não quero que seja um escândalo. – Rebeca levou o copo à boca, tomando uma porção do líquido transparente. – Ela vai entender que será muito melhor viver aqui conosco e vai decidir por si só.

A adrenalina começava a correr pelas veias de Sesshoumaru. Rebeca falava mesmo sério e estava disposta a conquistar mais uma de suas infinitas vontades. Aquela conversa estava prestes a se tornar um pesadelo – pesadelo que ele imaginou que jamais se tornaria real.

– Beca, a menina é uma criança e está longe de poder decidir qualquer coisa sozinha. – Sesshoumaru ponderou, ainda apelando para a razão.

– Você precisa conquistá-la – Os olhos azuis de Rebeca encararam Sesshoumaru com intensidade. Ela se inclinou levemente, eliminando todo o espaço entre o corpo dele e dela.

– Você sabe muito bem que eu não posso fazer isso – Ele sussurrou de volta, baixando o olhar para encarar a imensidão azul persuasiva.

– Sempre é tempo para recuperar o que você perdeu – O indicador delicado, finalizado com um belo esmalte vermelho, passeou pelos botões da camisa dele.

– Os planos nunca incluíram sequer a possibilidade de eu conhecê-la. – Sesshoumaru insistiu, acompanhando a movimentação da mão dela.

– Os planos mudaram. – Ela encerrou o assunto, levando a outra mão para a nuca dele. Uniu a boca dos dois em um beijo intenso e demorado, aproveitando para desabotoar a camisa dele.

– Rin não vai... – Ele murmurou entre os lábios, enquanto Rebeca partia para beijar o pescoço largo do marido.

– Se essa mulher causar problemas, eu acabo com ela – Sussurrou ao pé do ouvido dele, retomando o caminho de carícias que chegaria à cama da enorme suíte do apartamento.

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O vento forte e contínuo anunciava a primeira chuva da temporada. As cortinas da sala balançavam pra fora e pra dentro da janela de madeira, fazendo com que o tecido levasse alguns objetos que tocava no vai-e-vem, como o enfeite da mesinha de telefone. Rin desceu as escadas depois de ouvir o barulho da cerâmica do enfeite se partindo em dezenas de pedaços no chão.

– Droga. – Praguejou, pulando os cacos para chegar à janela. Puxou o tecido da cortina pra dentro e fechou os vidros, olhando o horizonte completamente escuro do infinito campo em frente à fazenda. Havia proposto à filha que dormissem na fazenda naquela noite, para que ela pudesse deixá-la na escola mais cedo. A casa simples e charmosa herdada por ela havia sido construída entre os campos de trigo, ao lado do armazém de moagem. O caminho até Ellsworth era menor, comparado com o da casa de Rin no centro de Lovebelt. Ela tinha uma fila enorme de problemas para milagrosamente solucionar no dia seguinte e precisava começar a trabalhar logo cedo.

Lissy estava dormindo há algum tempo, mas Rin não conseguia pregar os olhos. Odiava admitir aquilo para si mesma, mas morria de medo de dormir na fazenda. Embora aquela houvesse sido a única casa da sua infância e o lugar onde viveu todos os bons momentos da sua vida, aquele também era o lugar que ambientava suas lembranças sobre os tornados que varreram a região. O primeiro e mais forte aconteceu em uma noite quente como aquela, na véspera do aniversário de oito anos dela. Rin lembrava-se perfeitamente do pai carregando-a para fora da casa, indo para o abrigo subterrâneo localizado a alguns metros da fachada da casa. Sua mente tinha guardado a imagem das portas e janelas batendo com a força do vento e dos primeiros pedaços da casa indo aos ares. Depois de alguns minutos de um assovio intenso do tornado passando por cima de tudo, eles finalmente saíram do abrigo. Não havia sobrado absolutamente nada, exceto escombros, madeira partida e metal retorcido. Rin se lembrava de olhar para o pai e vê-lo com uma expressão serena.

Espero que todos tenham tido a mesma sorte que tivemos, disse ele, na época.

Nem mesmo ela acreditava que as coisas voltariam a ser como antes, mas Kenichi colocou tudo de pé novamente, exatamente como tudo era. Procurou nos escombros tudo que tinha valor sentimental e tudo que encontrou, colocou no lugar. Construiu a fazenda com as mesmas cores e formas de antes e fez com que parecesse que nada havia acontecido. As outras tempestades menores que atormentaram a região não levaram tudo, como aquele primeiro tornado o fez, mas o segundo que aterrorizava as lembranças de Rin aconteceu há apenas oito anos. Ela já era adulta e estava trabalhando na confeitaria da família quando descobriu sobre a tempestade e sobre a tentativa de Kenichi de salvar parte do trigo que estava estocado no moinho. Rin imediatamente pegou o carro e dirigiu até a fazenda para tentar encontrar o pai, indo também na direção da tempestade. A força do vento balançando a caminhonete e a intensidade das pedras de granizo se chocando contra o vidro fizeram com que ela acreditasse que não fosse conseguir chegar em casa naquele dia. Quando a tempestade já estava começando a devastar o que via pela frente, Rin encontrou o pai e, juntos, se abrigaram no cubículo abaixo da terra. Outros minutos intermináveis na escuridão, ouvindo o som do vento e dos trovões e, outra vez, a casa havia sido devastada.

Daquela vez, a estrutura se manteve de pé – muito por causa dos cuidados que Kenichi teve ao reconstruir a fazenda, anos atrás. No entanto, como o vento arrancou parte do telhado e algumas paredes, mais objetos se perderam. Entre eles, um móvel com as fotos que Rin guardava da mãe. Por mais que ela tivesse vasculhado a região por dias, não conseguiu encontrar nada. Aquela lembrança havia se perdido para sempre.

Depois da morte de Kenichi, Rin nunca mais se sentiu segura em dormir na casa da fazenda. Embora aquele fosse o lugar que o pai mais amou em toda a vida, ela não podia imaginar nada daquilo sem ele. Não fazia sentido. Pensou por muitas e muitas vezes em vender tudo e mudar-se dali, mas tinha certeza que não seria aquela a vontade de Kenichi. E no fundo, aquela também não era a sua própria vontade.

Ela abriu a porta da frente e saiu, deixando que a madeira batesse suavemente para se fechar. Abriu, por fim, a porta de tela, a última barreira até a varanda, e sentiu a corrente de vento quente e úmido alcançando seu rosto. Fechou os olhos e suspirou, sentando-se sobre uma espreguiçadeira branca de madeira, localizada ao lado da porta.

Foi naquela fazenda também que viveu os momentos mais felizes com o homem que a daria Lissy. Embora o odiasse com todas as forças pelo que aconteceu depois, Rin não podia esquecer tudo de bom que aconteceu ali. Foi em um fim de primavera quente e úmido como aquele que Rin conheceu Sesshoumaru. Naqueles campos infinitos de trigo dourado, prestes a serem colhidos, ela passou boa parte do tempo com ele. Odiava-o mais ainda por ele ter contaminado a memória da casa que a abrigou durante boa parte da vida, já que agora não conseguia olhar para tudo aquilo e não se lembrar daquele homem.

Embora aquela não fosse a vontade de Sesshoumaru, ele deu a Rin o maior presente de sua vida. Ela não esperava ser mãe naquele momento e, embora desejasse aquilo e já tivesse idade suficiente, não imaginava que aconteceria. Não havia se comprometido com ninguém de maneira mais séria durante toda a vida e duvidava que houvesse de fato se apaixonado até conhecer Sesshoumaru. Tudo com ele foi tão rápido e intenso, que Rin não teve dúvidas de que o destino havia preparado tudo aquilo com cuidadoso capricho. Por isso, nunca questionou ou desgostou o fato de ter engravidado. Era pra ser assim. E ponto.

Amou Lissy desde o primeiro instante e viu esse amor crescer a cada dia. Mesmo quando descobriu que teria que lidar com tudo aquilo sozinha, ou mesmo nos momentos difíceis, abraçou a ideia de que, a partir de então, teria sua mais fiel companheira ao seu lado. E em nada Lissy a desapontou. A pequena era, de fato, sua leal escudeira. Gostava das mesmas coisas que o avô gostava – especialmente aquela fazenda – e acompanhava a mãe nas tarefas sempre que podia. Não raramente, enfiava-se entre os lençóis da cama de Rin para sentir-se segura. Mal ela sabia que quem se sentia segura era a mãe.

Depois que Kenichi morreu, muita coisa mudou. Rin sentiu-se fragilizada e forte ao mesmo tempo. Sentiu medo por ter que lidar com a maternidade e os negócios sozinha, mas sentiu-se obrigada a colocar em prática todos os bons princípios e ensinamentos que teve. A verdade era que, embora se mostrasse forte, sentia falta do pai o tempo todo.

Uma grossa lágrima correu pela pele do rosto bronzeado de Rin e ela tratou de secá-la com a mão esquerda. Tinha que manter-se firme por Lissy, por seu pai, por tudo que sua família construiu e por tudo que viria pela frente.

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Sesshoumaru desembarcou no aeroporto de Wichita no início da manhã, depois de horas de voo. Aquele maldito lugar sequer recebia voos diretos de Nova York. Teve que fazer uma escala em Chicago e só então seguir para aquele fim de mundo. E tudo só pioraria, porque havia ainda uma viagem de duas horas até Lovebelt. Assim que saiu do precário ar condicionado do aeroporto para pegar o carro alugado que havia reservado, lembrou-se de como odiava o calor úmido daquela região e o cheiro da terra vermelha.

Esperava nunca mais colocar seus pés ali, mas o destino decidiu testar suas decisões. Rebeca estava decidida a mandá-lo em uma missão de conquista. Não só queria a menina, mas queria também que ela se afeiçoasse a eles. Para tanto, ele se hospedaria por tempo indeterminado naquele fim de mundo até ganhar o carinho da criança. Céus, aquilo era absolutamente insano.

Sesshoumaru não se lembrava, no entanto, quão difícil foi partir. Toda a dor e agonia de subir em um avião e se obrigar a nunca mais olhar pra trás voltou assim que ele pregou os pés em Wichita. Foi dali que ele partiu da última vez, há mais de cinco anos. Aquela maldita decisão o assombraria pelo resto da vida, mas especialmente agora ele se sentia ameaçado. Era como se estivesse em um lugar hostil, como se todos o estivessem encarando, como se estivesse pronto para defender-se. E nas horas de voo e durante a conexão em Chicago tudo que ele fez foi formular mentalmente uma defesa. Como um excelente advogado, ele saberia fazer aquilo perfeitamente em qualquer outra situação, menos naquela. Na verdade, até mesmo elaborou uma lista de motivos, mas sabia que nenhum deles era sincero. Não sabia o que dizer e tinha medo que esse silêncio voltasse assim que ele desse de cara com ela – ou melhor, com elas.

Prometeu a si mesmo que todas as vezes em que aquele lugar o sufocasse, ligaria para Rebeca para que ela o lembrasse o motivo de estar ali. Lembrar-se-ia da procuração que deixou com a esposa, permitindo que ela entrasse, eventualmente, com um processo de requerimento da guarda da menina, ou ainda que tivesse os mesmos direitos que ele sobre ela. Mas quais eram esses direitos mesmo? Não havia tido nenhum tipo de contato com a criança. Até mesmo o registro de nascimento dela havia sido feito por meio de um advogado contratado, que apresentou uma procuração. O acerto com a família de Rebeca – e o motivo do perdão dela pela traição – era de que ele jamais veria a menina. Jamais ligaria, jamais visitaria, jamais falaria dela para os amigos. Apenas mandaria uma boa quantia em dinheiro mensalmente e faria depósitos em uma conta-poupança para pagar bons estudos ou até mesmo uma longa viagem para o exterior no futuro. Ele achou que aquilo bastaria, que o tempo o faria esquecer, mas aquele maldito desejo de Rebeca fez com que o passado voltasse a assombrá-lo. E ele teria de encará-lo de frente.

Começando pela mulher que quase o fez desviar-se de sua carreira, de seu casamento, de sua vida em Nova York. Quase cometeu a insanidade de desistir de tudo por ela. Quase colocou os sentimentos acima da razão. No entanto, em tempo Sesshoumaru voltou a si e voltou também para Nova York sem jamais olhar pra trás. Pena que aquilo o custou muito. Talvez tivesse custado uma parte de sua alma, porque até o dia anterior, sentia como se estivesse congelado por dentro. Agora a umidade e aquele maldito calor o faziam sair do coma.

Entrou no carro alugado e partiu, pegando a estrada. Logo viu a primeira placa que indicava seu destino. Odiava o nome da cidade. Odiava Lovebelt por isso e por tudo que aquele lugar o fez.

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Rin passou pelos últimos metros da rua estreita e parou a caminhonete em frente ao portão de madeira, preso por um grosso cadeado. Lissy colocou a mochila da escola de lado e buscou no painel o molho de chaves da casa, separando cuidadosamente a que procurava.

– Não se preocupe, eu abro o portão, mamãe. – Ela defendeu-se ao perceber que Rin abriu a boca para questioná-la. Aquela era uma discussão que surgiu há alguns meses apenas. Em geral, Kenichi abria o portão para que Rin estacionasse a caminhonete, mas desde que ele partiu, Lissy queria assumir aquela tarefa do avô. Os pequenos braços destrancavam o cadeado e então se esticavam contra a pesada madeira até que tivessem terminado de abrir o portão. Rin não gostava daquilo, principalmente porque aquela simples tarefa a lembrava sempre que seu pai não estava mais ali. Porém, ultimamente estava ficando cada vez mais difícil ganhar de Lissy. Ela estava se tornando uma exímia argumentadora.

A menina abriu a porta da caminhonete e sentou-se no estribo para tomar o impulso necessário para pular até o chão. Repetiu o ritual do portão e esperou que a caminhonete passasse, para então fechá-lo novamente. Rin apanhou a mochila de Lissy e desceu, encontrando a filha em frente à porta dos fundos, que dava acesso à garagem. A menina separou outra chave do molho e abriu a porta mosquiteiro, só então abrindo a porta de madeira para entrar.

Correu pra dentro, parando no meio do caminho para abrir cortina da cozinha.

– Lave as mãos, vamos tomar o chá da tarde. – Rin gritou enquanto depositava a mochila da menina sobre a mesa da sala.

– Podemos fazer isso com a minha madrinha? – Lissy apareceu no batente da porta do banheiro, enquanto esfregava as mãos ensaboadas.

– Ela está na confeitaria. – Explicou, aproximando-se da pia para lavar as mãos também. – Chega pra lá. – Sorriu.

– E então! Podemos ir até lá. – Ela sorriu de volta, ainda esfregando os anelares. – Por favor!

Rin rolou os olhos castanhos e pingou um pouco do sabonete líquido nas mãos, passando a esfregar uma palma contra a outra.

– Tudo bem, podemos ir. – Passou o indicador ensaboado na ponta do nariz da filha, o que a fez rir. – Mas você já sabe quais são as regras. E assim que voltarmos, fará a lição de casa. Combinado? – Inclinou-se e estendeu a mão coberta de espuma para a filha.

– Combinado. – Lissy colocou as pequenas mãos ensaboadas no rosto de Rin e depositou um rápido beijo na ponta do nariz da mãe. Depois saiu correndo, deixando a mãe com o rosto repleto de espuma para trás.

– Melissa!

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Sesshoumaru observava de longe quando a velha caminhonete parou em frente ao portão. Esperava ver as pernas de Rin escorregarem pra fora do carro, mas a surpresa foi ver dois pares de pequenos pés balançando abaixo do estribo grosseiro da carroceria. Assim que a menina desceu, ele sentiu como se seus pulmões tivessem sido esmagados. Ela era uma cópia de Rin, com a exceção de alguns detalhes. Os cabelos lisos e castanhos eram um pouco mais claros que os da mãe e a pele era um tom mais branca, talvez exatamente da cor da pele de Rin antes de sofrer os efeitos do sol. Não conseguiu ver o rosto da menina, mas pôde perceber a maneira disciplinada com que ela separou a chave do portão das outras e como ela certificou-se que estava colocando-a na posição correta dentro da fechadura.

Era absolutamente encantadora. Tinha a mesma postura de Rin e os mesmos trejeitos. O corpo dele tremeu dos pés à cabeça. Sesshoumaru sentia-se anestesiado, como se nenhum músculo tivesse a capacidade de se mover sozinho. Pregou as mãos contra o volante do carro alugado e respirou fundo. O que ele estava fazendo?

Deu partida e seguiu em direção ao único e precário hotel da cidade. Estacionou o carro em um pequeno lote descoberto, localizado ao lado do prédio amarelo de cinco andares. Encarou as lâmpadas desligadas placa luminosa antes de entrar pela velha porta de madeira. Assim que fixou os olhos na recepcionista, teve certeza que ela o reconhecera.

– Meu Deus do céu... – A garota, que tinha no máximo seus 20 anos, sussurrou.

Lembrou-se, então, de mais um motivo para odiar aquele fim de mundo. Ali ninguém se esqueceria de quem ele era e o que ele fez para Rin.

– Tia Sango! – Melissa gritou, antes mesmo de sair do carro.

– Devagar, Lissy. Tem clientes na loja – Rin alertou, saindo pela porta do motorista. A menina imediatamente reduziu o passo e olhou para trás, esperando a aprovação da mãe. Rin não conteve um sorriso diante da compreensão da filha e estendeu a mão para ela, caminhando pela curta calçada de ladrilhos que levava até à porta e à fachada de vidro da confeitaria.

Antes mesmo que pudesse alcançar a entrada, Sango passou como um furacão pela porta, fazendo com que a sineta de entrada tocasse alto. A amiga de longa data de Rin não esperou para tirar o avental que vestia, fazendo-o enquanto caminhava a largos passos para alcançá-la. Sango estava pálida e tinha os lábios trêmulos, como se escolhesse mental e previamente as palavras que diria. Rin sentiu o coração pular uma batida. A última vez em que havia visto a amiga assim foi na noite em que Kenichi faleceu.

Lissy correu para abraçar as pernas da madrinha. Sango afagou os cabelos lisos da menina, sem conseguir tirar a expressão aflita do rosto.

– Meu doce, seu padrinho está te esperando lá dentro com um pedaço enorme do seu bolo preferido – Sango finalmente escondeu o nervosismo para olhar para os olhos cor de mel de Lissy. – Vá logo! Ele já comeu quase a metade.

– Tio Kohako! Eu também quero! – A menina gritou mais uma vez, correndo pra dentro da confeitaria. Rin não conseguiu ter fibra para sequer chamar a atenção da filha outra vez. Ficou congelada no lugar, sentindo o coração bater na ponta do estômago.

Sango esfregou os dedos contra o avental outra vez, tentando se acalmar. A coragem fugia de sua garganta progressivamente, ao mesmo passo em que Rin perdia a cor do rosto.

– A-a filha dos Clark ligou aqui há alguns minutos. – A voz rouca quase não conseguiu escapar dos lábios e ela teve que respirar fundo antes de continuar. – Sesshoumaru está na cidade. E-ele deu entrada no hotel agora há pouco.

Rin sentiu como se estivesse ficado surda por um instante. Seus ouvidos foram preenchidos por um longo e irritante zumbido. Teve que se concentrar para acreditar no que havia acabado de ouvir e, então, sentiu como se fosse desmaiar. O que aquele homem estava fazendo na cidade, depois de tanto tempo? O choque rapidamente se transformou em raiva e a visão de Rin se tornou um borrão.

– Fique com Lissy, por favor. – Pediu, procurando as chaves da caminhonete no bolso.

– Você não vai atrás dele. – Ela praticamente ordenou, aproximando-se da amiga.

Rin ignorou o apelo da amiga e, já com a chave em mãos, deu meia volta e seguiu em direção à caminhonete.

– Não pode procurá-lo nesse estado. Você vai acabar fazendo uma besteira. – Sango seguiu a amiga como se fosse uma sombra e segurou a porta da caminhonete assim que Rin a abriu.

– Não posso deixar que ele se aproxime da minha filha. – Ela virou-se para encarar a amiga diretamente nos olhos.

Sango desistiu de segurar a porta e soltou, aos poucos, os dedos da lataria vermelha. Rin subiu no estribo e entrou, manobrando o carro até voltar para a pequena rua, em frente à confeitaria. Sua mente fervilhava; de ódio, de raiva, de mágoa. Todas as palavras que pensou, durante todos esses anos, em dizer para Sesshoumaru fugiram de sua mente. Tudo que queria naquele momento era mandá-lo de volta para Nova York o mais rápido possível, antes que Lissy soubesse que aquele homem estava na cidade.

Estacionou na calçada do hotel dos Clark e saltou de uma vez, abrindo a porta da recepção subitamente.

– Onde Sesshoumaru está? – Perguntou de uma vez, dirigindo-se à garota na recepção.

– Rin, desculpe. Eu só liguei porque pensei que você não soubesse que ele estava na cidade. Eu não queria... – Ela começou a se explicar, gesticulando nervosamente.

– Ele está aqui? – Insistiu, sentindo o corpo tremer dos pés à cabeça.

– Não. Saiu há apenas alguns minutos. E-ele está em um sedan alugado... – A pobre moça tentou dar mais explicações, mas Rin saiu da recepção em uma fração de segundo, voltando para a caminhonete. Um sedan... – ela pensou. Poderia jurar que viu, de relance no espelho da caminhonete, um sedan estacionado na porta da sua casa mais cedo. Rin estava aterrorizada. Aquilo significava que ele estava as observando – e mais; significava que ele já havia visto Melissa.

Dirigiu com pressa até sua casa de volta e assim que dobrou a esquina, sentiu a mente borrar novamente. Lá estava o maldito sedan, estacionado bem em frente à sua casa. Acelerou com força e parou atrás do carro, descendo como um relâmpago. Andou em passos largos até a porta do motorista do carro e observou quando Sesshoumaru escorregou as pernas para fora, com a maior calma do mundo.

Ele ficou de pé, ao lado do luxuoso carro. Estava vestido com uma camisa social impecavelmente branca, com as mangas dobradas. A calça jeans escura abrigava as longas e fortes pernas, além de parte de um sapato fino, devidamente lustrado. Ele ajeitou a armação dos óculos escuros que usava, respirando fundo antes de falar.

– Eu vim pela menina. – Disse de imediato. Não tinha pensado em começar daquela forma, mas aquela foi a primeira defesa que seu cérebro elaborou. Defesa de mim contra mim mesmo, ele pensou. A intenção era não deixar que Rin chegasse a pensar que ele havia voltado por ela. Desde o princípio, diria que estava ali para estabelecer uma relação com a menina.

Sesshoumaru só não esperava o que veio a seguir – ou talvez até esperava, por saber que merecia aquilo. Um sonoro e dolorido tapa no lado direito do rosto o fez lembrar de duas coisas: um – Rin era canhota e dois – ela o odiava.


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