Scream 2016 escrita por S Nostromo


Capítulo 10
Anagnórise


Notas iniciais do capítulo

[Anagnórise, ou descoberta, é o reconhecimento súbito do protagonista (ou de outro personagem) de sua própria identidade e natureza. Fonte: Wikipédia].



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A fase da adolescência. Aquele período onde os hormônios e sentimentos estão a flor da pele. Tudo é extremo nessa fase. O amor é extremo, a raiva, as diversões... Tudo vem de forma exagerada e grandiosa. Por isso muitas pessoas riem do seu passado adolescente, pois percebem o quão exageradas eram. Nessa mesma fase onde meus pais morreram devido uma explosão na cozinha por vazamento de gás. Passei a morar com meus avôs.

Estávamos todos nessa fase: Emily, Larry, Chris... Até mesmo Victor, Marco, Carmen deviam estar nessa fase. E César. E tudo começou no colegial, quando César foi transferido. Começou a estudar na mesma sala que eu. Ele era o típico garoto quieto e na dele. Não queria confusões, mas todos os outros estudantes queriam. Infelizmente, nesse caso, quanto mais se esconde, mais você brilha. César ganhou atenção rapidamente, mas não boas atenções. Ele começou a ser alvo de humilhações. Ah, pobre César... Pensando melhor, eu me lembro de tudo, e lembro que até mesmo eu fiz parte disso tudo. Eu também me diverti ás custas de César, destruindo seu psicológico para me divertir. César se tornou tipo Carrie A Estranha do nosso colégio, mas em uma versão masculina e um pouco mais hardcore eu diria. Certo dia nós o afogamos na privada suja de fezes e urina, enquanto os outros garotos reviravam sua mochila e rasgavam seus desenhos. Aliás, ele havia feito vários desenhos de Emily naquela época, era apaixonado por ela. Emily por sua vez, preferiu elevar seu ego e abusar da inocência de César, escravizando o garoto. Todos nós fizemos isso. Tornamos a vida do rapaz em um inferno doloroso e quente. E eu segui esse fluxo, sem graça, clichê e repetitivo. O instinto agindo mais uma vez, torturando a mente de um garoto que apenas queria viver em paz.

Os anos se passaram, e chegamos à faculdade. Morávamos em uma cidade bem pequena, e a única faculdade disponível ficava em uma cidade vizinha, então a maioria dos estudantes do colegial iam morar nesta cidade para viver o curso dos seus sonhos, em repúblicas ou com parentes. Comigo não foi diferente, seguindo a mesma vida monótona e repetitiva. Mudei da cidade de interior e passei a morar em uma república para ingressar na faculdade. César fez o mesmo caminho que nós. Agora, todos haviam esquecido aquele passado ridículo, César havia se tornado amigo de todos, inclusive ria de quando comentávamos sobre o que fizemos com ele. Aquele rapaz que sofreu em nossas mãos se tornou um grande amigo para mim, a ponto de mostrar as cicatrizes que ele tinha pelo corpo devido às várias tentativas de suicídio. Cheguei a pedir desculpas em algum momento, mas aparentemente não adiantou. César remoia um ódio profundo por todos nós. Fingiu superar as humilhações, os traumas... Fingiu se tornar uma pessoa simpática e sociável. Fingiu ter uma vida nova e amigável. Construiu uma vida de superação baseada em mentiras. Tudo isso para poder ganhar confiança e depois matar a todos, um a um. E este dia chegou, aquele dia da festa de Emily. Em meio aquela vida repetitiva que todos tínhamos, César matou várias pessoas, todos os nossos amigos, todos aqueles que foram agressores um dia. Enquanto todos tinham o desejo de uma vida sucedida, César tinha o desejo de matar. Queria apenas vingança. Emily e eu, os únicos que sobrevivemos. Passei bons meses no hospital. Foi aí que eu tive todo o tempo do mundo parar refletir sobre tudo. A verdade era que no fundo me senti bem quando César tentou me matar. Nossa vida é tão comum, tão igual, todos fazemos sempre a mesma coisa... E então um “amigo” entra no seu quarto e tenta de esfaquear até a morte. Foi tão diferente, eu tinha algo novo para contar para as pessoas, para poder usar de exemplo na vida. Eu era um sobrevivente. Então descobri aquela coisa nova no hospital. Eu fazia aquilo de vez em quando. A maioria das vezes usava minhas próprias unhas, para deixar marcas pela minha pele. Era prazeroso. Tudo que era novo e fora daquela vida rotineira que todos tinham me fascinava. Mas no fundo não era a mesma coisa que sentir a adrenalina correndo nas veias enquanto um assassino tenta te matar. Aquele tempo todo no hospital... Eu queria aquilo de novo, torcia para César entrar naquele quarto e tentar me matar mais uma vez, foi tão diferente... Até que percebi que nunca aconteceria. César estava morto e ponto final. Então me peguei pensando em como ele devia ter se sentido diferente naquele dia da festa, matando a todos. Eu poderia me sentir diferente sendo a vítima esfaqueada como fui, mas eu poderia me sentir mais diferente ainda, fora da vida idiota e repetitiva, se eu fosse o assassino. Seria bem mais interessante. Eu, julgar quem deveria viver ou não, quem morreria em minhas mãos. Praticamente ninguém fazia isso. Um instinto dentro de mim começou a florescer. Era bizarro, seria certo matar pessoas? Enquanto aquela ideia, aquele instinto diferente, evoluía dentro de mim, eu passava dias e dias me cortando no quarto do hospital, porque aquilo me fazia diferente, eu não queria ser normal como todos, eu queria ser único.

Quando sai do hospital, aquela vontade de tirar a vida de alguém já me parecia normal. Crescer, estudar, construir uma família e trabalhar até a morte. Eu não queria viver igual a todos. Não queria ser mais um babaca no mundo. Ao mesmo tempo me perguntava o porquê desse desejo de ser tão diferente, e sequer sabia direito a resposta. Apenas achava bonito. Mas eu queria alcançar aquele objetivo de qualquer forma. Então surgiu aquele sujeito, Igor, na ambulância, fantasiado de ghostface. Ali foi quando eu mudei, quando sofri uma metamorfose. Deixei de ser o Abel que queria ser diferente, e passei a ser o Abel diferente. Em um momento de distração, causei o acidente na ambulância. Igor usou uma faca de verdade para tentar me assustar. Que idiota... Lembro muito da cena:

– Isso é uma faca de verdade? – perguntei.

– Sim – respondeu Igor, distraidamente, olhando o furacão pela janela.

– Você é maluco, podia ter machucado alguém – falei.

– Igor é um imbecil – disse Claudius no volante.

– Ah quanto drama, nada aconteceu – foi tudo que Igor disse.

Olhei para meu reflexo na lâmina.

– Sabia que essa faca foi a que César usou em Real Woodsboro?

– O que? – perguntei incrédulo para Igor.

– É sério. Como o caso foi encerrado, eles apenas se livraram das provas. Decidi roubar isso. Ninguém vai saber mesmo.

– Seu esquisito, é a mesma faca que aquele babaca usou para matar a todos na festa. É a mesma faca que ele usou para tentar me matar!

– Eu sei! – exclamou Igor com felicidade. – Ela deve valer uma fortuna. Os fãs dos filmes Scream pagariam uma fortuna por ela.

Olhei para meu reflexo mais uma vez. A mesma faca, velhos amigos, hein? Vi minha chance de ser diferente ali, de ser único, com a mesma faca que tudo começou. Sorri novamente.

– Igor – eu disse.

– O que?

– Se você fosse morrer, quais seriam suas últimas palavras?

Eu matei Claudius, Igor, e o paciente em coma. A ambulância capotou. Senti-me tão vivo naquele momento, naquela noite fresca. Gargalhei muito. Mas eu queria mais, eu precisava daquilo. Vesti a fantasia de ghostface de Igor e segui até aquele posto de gasolina próximo. Vi o carro dos pais de Emily, e não acreditei que ela estava ali. Simplesmente ri ao notar que tinha coragem para matar minha própria amiga, a moça com quem eu tinha um leve caso amoroso. Ela tinha que morrer. Agora eu era um assassino, enquanto os outros eram meras vítimas. Eu matei todo mundo no estabelecimento. Esfaqueei todas aquelas pessoas sorrateiramente. Não foi difícil. Depois eu larguei as roupas de ghostface em algum lugar, fingi encontrar a faca e voltei ao posto de gasolina como uma pessoa inocente e desnorteada. Surpreendi-me com Emily ainda viva. A faca que dei em cheio em suas costas jurava ter sido o suficiente. Quando reencontrei Emily, fingindo ser um Abel inocente, algo me impediu de matar ela. Foi estranho, simplesmente não consegui. Mas me senti tão bem, ela chorando e se perguntando o que estava acontecendo, mal sabia que o causador daquela chacina era eu, o rapaz que a ajudava, o amigo de longa data. Então seguimos para a república para fugir do furacão. Três pessoas nos seguiram, e eu os acolhi, com segundas intenções, é claro. Carmen, Marco e Victor. E também o intrometido do Ross. Eu poderia matar todos eles, e Emily, a mais importante, e me passar por vítima. Marco foi o primeiro. Fiquei chateado com Carmen ter se suicidado. Era óbvio que Victor não a tinha matado, ele nunca faria isso. Mas eu poderia ter feito. No porão, eu tentei matar aquele Indiano, esfaqueei-o inúmeras vezes, cortei-o da cabeça aos pés. Mas ele não morreu, e acabou mostrando toda a verdade para Emily e Ross. O resto todo mundo já sabe.

– Filho da puta! – berrou Emily. – Meus pais, você os matou! Tudo por causa dessa sua ideia doente. Eu juro que vou acabar com a sua vida Abel, sua aberração esquisita...

– Lugar errado na hora errada, eu sinto muito – respondi.

– E eu? Você tentou matar a mim! Dizia que me amava. É assim que me ama? Enfiando uma faca em mim pelas costas?! – continuou gritando.

– Mas eu te amei! – exclamei.

– É mentira! Você é doente! – disse. – Como você teve coragem? Tudo isso porque quer ser diferente? Vai se foder Abel! Você é um lixo! Podia ter aprendido a tocar piano, aprender uma nova língua... Pintar um quadro enquanto pula de paraquedas, qualquer merda assim! Não precisa matar pessoas para ser diferente!

– Acha que não tentei? – retruquei. – Eu tentei fazer essas merdas a vida toda! Mas nada adiantava, eu sempre senti esse vazio. A verdade é que sempre ignorei esse desejo estranho. Eu tentei de tudo, mas nada adiantou. Tirar a vida alheia e me mutilar são as duas únicas coisas que me fazem sentir vivo e diferente nessa droga de mundo.

O que eu disse depois foi sem pensar, mas foi sincero:

– E confesso que você algumas vezes foi razão de me fazer sentir vivo e diferente nessa droga de mundo também. Você me fez não querer ter esse instinto diferente, mas eu quero ser assim, eu preciso disso. Você me faz ser normal e comum Emily. Você, acima de todos, precisa morrer, pois me impede de ser quem eu sou. Eu notei isso quando não consegui matar você no posto de gasolina.

Ela me olhou nos olhos com certa esperança:

– Para mim você sempre foi diferente.

Estava sendo sincera, eu sabia, eu a conhecia muito bem. Sorri para ela, enquanto deixava escapar algumas lágrimas. Ela sorriu de volta.

– Eu nunca menti para você – declarei. – Eu sempre te amei de verdade. Sempre me senti diferente ao seu lado.

– Então porque começou a fazer tudo isso? Porque não ficou do meu lado? Por que...?

Enxuguei as lágrimas com as costas da mão.

– Porque você me faz diferente de uma forma que eu não sou. Eu não sou assim. Eu não quero ser assim. Eu quero esse desejo macabro e obscuro junto comigo para sempre. Você tem que morrer Emily, você é o ponto fraco nisso tudo. Eu posso ser diferente se você não existir. César não conseguiu te matar, eu não consegui. Você é a Sidney Prescott aqui, percebeu? Mas nessa versão a querida Sidney vai morrer. Não vai ter final feliz aqui.

– Abel, pare...

– Sabe o que isso parece? Anagnórise. Aquele elemento surpresa de filmes e livros em que um personagem aleatório se torna o protagonista. Notou como muita coisa gira ao seu redor? Você tem as provas, as explicações. Você é a única e principal testemunha aqui. E você é quem me faz ser o Abel normal. E eu não preciso ser normal!

Virei para Ross, que ainda estava caído ali e vivo, mas sequer tinha forças para dizer alguma coisa.

– Espero que se torne um personagem digno em algum documentário ou filme de Real Woodboro II, já que você mesmo não poderá fazer isso.

Finquei a faca no olho de Ross. Sangue escorreu por seu rosto e em minha mão. Sequer tinha forças para um último suspiro. Na verdade eu queria matar Emily a qualquer custo. Ela tinha que morrer! Era isso mesmo, a violência me tornava diferente, era disso que eu precisava. Soltei um prazeroso gemido quando me cortei com a faca. Um corte diagonal, do ombro até a barriga. Emily parecia aterrorizada. Comecei a rir.

– É melhor correr Sidney – zombei entre risos descontrolados. – O ghostface vai pegar você!


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