Atrasos & Acasos escrita por Luh Castellan


Capítulo 1
Atrasada


Notas iniciais do capítulo

Olá amores! Tive essa ideia ontem, quando vi as notícias na internet sobre os atrasados no ENEM.
Espero que gostem :)



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/655394/chapter/1

Tanta coisa poderia ter sido diferente.

Imagine se ela não tivesse esquecido o cartão de inscrição. Não teria que voltar correndo para casa na metade do caminho, enquanto sua mãe esperava no carro, impaciente.

Ou mesmo mais cedo: imagina se ela não tivesse deixado para imprimir o cartão de última hora, se a impressora não tivesse pifado, e ela não precisasse bater na porta da vizinha para pedir para imprimir. A Dona Maria não passaria uma eternidade falando das suas dores enquanto ajudava a menina.

Ou mais tarde: se ela não tivesse perdido todas as suas canetas pretas. Não teria que sair pelo bairro como uma louca procurando uma papelaria ou mercadinho aberto.

Se ela não perdesse tanto tempo procurando suas meias, seus documentos, se o caminhão de legumes não virasse na avenida principal interditando o trânsito, se não tivessem que pegar um desvio e a mãe dela errasse o caminho.

Se ela tivesse corrido mais rápido até o portão da escola.

Ela nunca havia perdido o horário de uma prova na vida. Nem uma vez.

Entretanto, quando Carol chegou ao local da prova descrito no formulário – do outro lado da cidade, por sinal – encontrou os portões devidamente fechados.

Ela encarou melancolicamente as grades de ferro e os seguranças ao lado delas, enquanto apoiava as mãos nos joelhos para recuperar o fôlego. Perguntou o horário a um deles e este lhe respondeu:

— 13:04.

Carol estava quatro minutos atrasada. Todos os anos alguém se atrasava para o ENEM, ela lembrava-se muito bem de rir dos memes na internet e dos patéticos discursos chorosos dos candidatos atrasados. Ela só não esperava que um dia fosse um deles.

Olhou pra o caminho de onde viera no pátio até a rua, do outro lado, mas o carro de sua mãe não estava mais lá. Talvez tivesse um compromisso. Ou talvez fosse só o destino zombando dela. Tateou inutilmente os bolsos do jeans a procura do celular, antes de lembrar que o esquecera em cima da cama na correria.

Olhou em volta tentando decidir o que fazer. Chorar e abraçar os joelhos em posição fetal não era uma opção.

Sem escolha, sentou-se num banco de pedra sob a sombra de uma árvore. Sentia-se inútil, fracassada. Tantas noites sem dormir, tanto tempo estudando e se dedicando para perder a prova por meros quatros minutos.

Uma pessoa surgiu na frente dela, interrompendo seus devaneios.

— Também perdeu a hora?

Carol ergueu o olhar para o rapaz. Sim, era um rapaz. Alto, de cabelo castanho espetado e pele clara. Usava um moletom dos Ramones e jeans, fazendo jus ao clima razoavelmente frio de Curitiba.

— Infelizmente — Respondeu.

Outras pessoas estavam ali no pátio, algumas chorando abraçadas, outras com a cabeça apoiada desoladamente no portão, ou simplesmente encarando o vazio. Mas aquele rapaz não se encaixava em nenhum grupo daquele. Ele parecia não estar dando a mínima para o acontecimento.

— Não está preocupado por ter perdido a sua única chance de entrar na faculdade? —Carol não aguentou a curiosidade.

Ele deu de ombros.

— Eu nem queria fazer isso mesmo. Só estou aqui porque meus pais me obrigaram.

O rapaz sentou-se ao lado dela no banco.

— E mesmo que eu quisesse, terá outra chance ano que vem, né? Não é motivo para entrar em pânico.

— É... — Ela concordou, depois de pensar um pouco.

Aquele estranho tinha razão. Ano que vem teria outra prova, depois no próximo ano e no seguinte.

Um silêncio desconfortável instalou-se entre eles. Carol poderia falar alguma coisa, perguntar qual o nome dele ou de onde ele era, mas estava frustrada e irritada demais para isso. Vendo que ela não iria puxar assunto, o garoto resolveu se manifestar.

— Eu poderia estar em casa jogando Battlefield — Ele resmungou.

— E por que não vai para casa? — Carol indagou, indiferente.

Ele fez um som de deboche.

— Meu pai confiscou minha moto. Eu moro literalmente no fim do mundo, então não vou a pé nem que me paguem. E o próximo ônibus vai demorar séculos.

— Nem imagino o que você tenha feito para ter a moto confiscada.

Ele sorriu de canto com um ar de malícia, depois encarou os pés e balançou a cabeça negativamente, como se quisesse afastar o pensamento.

— E você? Por que não vai para casa, ao invés de ficar aqui dando ouvidos a um estranho maluco feat. delinquente juvenil que acabou de conhecer?

A forma como o rapaz auto intitulou-se fez a menina rir.

— Esses dois primeiros adjetivos eu já havia constatado, mas do último eu não sabia — Ela brincou. — Enfim, minha mãe foi embora e eu esqueci meu celular, então não tenho como ligar para ela.

— Bom, sei que tem um Parque legal aqui por perto. Como não tenho como ir para casa e não tô afim de ficar assistindo essa cena — Gesticulou para as pessoas em volta, chorosas, revoltadas e até algumas tentando escalar as grades. — Acho que vou dar uma volta por lá. Mas... — O moreno estendeu-lhe o seu celular. — Se quiser ligar pra ela...

Antes de aceitar o objeto, Carol ponderou sobre as suas alternativas. Ela já imaginava como sua mãe reagiria ao saber que ela perdera a prova: ficaria furiosa e a chamaria de inútil pelo resto do caminho para casa. Depois falaria para todas as amigas como a filha dela era irresponsável, e como ela deveria ser como a “filha de fulana”, que com certeza não se atrasou. É, certamente Carol preferia adiar essa cena. Ao invés disso, poderia ir ao parque com o estranho maluco feat. delinquente juvenil. O que ela tinha a perder, afinal? Ele até que era bonitinho.

— Não, obrigada — Ela recusou o celular. — Pensando bem, acho que não faz mal ir dar uma volta com você. Você não parece nenhum maníaco estuprador.

O garoto riu. Carol notou que ele ficava ainda mais bonito quando sorria, quebrando um pouco o ar de “durão”. Em seguida, deu um tapa na própria testa, como se tivesse esquecido de algo.

— Como eu sou burro! Meu nome é Igor, a propósito — Estendeu a mão.

Carol sorriu de canto, antes de apertar a mão dele.

— Geralmente as pessoas fazem isso antes de convidar as outras para sair, mas tudo bem. Sou Carol.

***

Depois de alguns minutos de caminhada, eles finalmente chegaram no parque. A paisagem bucólica destacava-se em meio à imensidão cinza de prédios. Campos de grama verdejante, árvores em tons de verde e âmbar eram os principais elementos ali. Carol lembrava-se de ter ido àquele lugar uma ou duas vezes quando era pequena. Não que seus pais tivessem tempo para sair como uma “família normal”, por isso aqueles raros momentos eram tão especiais.

Os adolescentes caminhavam por uma estradinha pavimentada entre um corredor de araucárias sem dizer uma palavra. Carol sentiu-se impelida a quebrar o silêncio dessa vez.

— Então... Além de gostar dos Ramones e Battlefield, o que mais preciso saber sobre você?

— Deixa eu ver... — Igor pensou um pouco, encarando as folhas caídas ao chão. — Tenho 18 anos, toco guitarra e torço pro Flamengo. Já mencionei lindo e charmoso?

Carol riu de sua presunção.

— Não, e também não mencionou que era tão modesto — Ironizou.

Agora foi a vez de Igor rir.

— Com certeza. E você, milady? Ainda é um mistério para mim.

Carol retirou um dos cachos de seu cabelo da frente dos olhos. O que ela poderia dizer? Uma doida que vive enfurnada num quarto com a cabeça nos livros? Que tinha pais superprotetores e exigentes, que mal a deixavam sair de casa e a forçavam a ser a melhor em tudo? Não, com certeza não.

—Hm... Também tenho 18 anos, arrisco umas notas desafinadas na flauta e não dou a mínima para futebol.

— Sério? — Ele pareceu surpreso. — E o que faz no tempo livre, então?

— Eu leio. Assisto séries e filmes também.

Ele balançou a cabeça em afirmativa. Olhava para a frente, com as mãos escondidas nos bolsos do casaco. O dia estava nublado e frio, e Carol agradeceu por ter colocado uma blusa de mangas compridas antes de sair de casa.

Eles chegaram às margens de um grande lago. Algumas criancinhas brincavam por ali com uma bola. Um casal de idosos caminhava com roupas de ginástica e um grupo de pessoas andava de bicicleta pela ciclovia.

— Também gosto de séries — Igor revelou, depois de um tempo. — A minha preferida é The Walking Dead.

— A primeira coisa que temos em comum, fora o fato de termos perdido o ENEM — Carol comentou.

Os dois sentaram num banco de frente para o lago. Conversaram sobre gostos, escolas e política. Falaram um bom tempo a respeito de música e entraram numa discussão acirrada sobre a diferença entre biscoito e bolacha. Trocaram risos, telefones e Facebook.

E, sem perceber, as horas passaram.

Carol achou incrível a intimidade que eles criaram em tão pouco tempo. Parecia que eles se conheciam há anos, não horas.

O casal de idosos foi embora, os pais chamaram as crianças e aos poucos o parque foi ficando desabitado. Eles só se deram conta de que era hora de ir embora quando o Sol começou a mergulhar no horizonte atrás dos prédios, refletindo no lago com uma cor alaranjada.

— Ai meu Deus, minha mãe vai me matar! — Carol exclamou, depois que Igor lhe disse as horas.

Ele lhe estendeu o celular novamente e dessa vez ela aceitou. Depois de alguns toques, a mãe atendeu.

Alô?

— O-oi mãe, sou eu, a Carol.

Oi filha, já terminou a prova? É para eu ir te buscar?

— Ér... Não foi bem isso que aconteceu, mas pode vir me buscar sim — Carol respondeu, nervosa. — Tô aqui no Parque Barigui.

Como assim?? — A voz de sua mãe subiu alguns tons. — O que você está fazendo aí Ana Carolina?!

Carol fechou os olhos e afastou um pouco o fone do ouvido. Não queria nem ver a reação da sua mãe depois que ela lhe contasse o resto da história. Ela abriu os olhos e viu Igor encarando-lhe com uma expressão meio preocupada.

— Olha mãe, depois te explico direito, ok? Estou esperando. Te amo.

A mulher começou outra bronca, mas Carol desligou antes dela concluir. Ela sentia-se culpada por desligar na cara da mãe, mas teve uma tarde perfeita e não queria estragar isso.

— Me desculpe — Pediu, envergonhada, enquanto devolvia o celular para Igor.

— Não, eu que peço desculpas. Isso em parte foi culpa minha.

Carol fez que não com a cabeça.

— Eu que quis vir, eu assumo as consequências. E quer saber? — Acrescentou, sorrindo. — Eu não me arrependo nem um pouco.

Igor sorriu e a tensão deixou os seus ombros.

Ambos levantaram do banco e seguiram numa caminhada silenciosa até a entrada do parque. Carol parou de frente a Igor e eles encararam-se, olho no olho, preto no verde. A menina sentiu-se impelida a fazer algo. Será que deveria beijá-lo? Será que ele também queria beijá-la, ou a repeliria? O que ele estaria pensando agora?

Essas e outras perguntas martelavam na mente da garota durante aquela pequena eternidade que ficaram se encarando. Ela sabia que o seu tempo estava se esgotando. Logo sua mãe chegaria e o surto seria maior se ela encontrasse Igor ali.

— Então... — Ele coçou a nuca, desconfortável. — Tenho que ir para o ponto de ônibus.

— É — Ela concordou, meio abobalhada.

O rapaz deu um passo à frente.

— Foi bom te conhecer.

— Também gostei de te conhecer — De onde surgiu aquela timidez repentina?

Igor inclinou-se e lhe deu um beijo na bochecha. Carol podia jurar que estava da cor de uma pimenta.

— A gente se vê por aí — Ele despediu-se.

— Claro, adoraria encontrar de novo esse estranho maluco feat. delinquente juvenil — Ela brincou, sorrindo.

O riso dele espalhou-se pelo parque quase deserto.

Enquanto o garoto dava as costas e ia embora, Carol pensou nos acontecimentos do dia. Ela não acreditava em coisas como acaso ou destino, mas também não acreditava em amor à primeira vista. A partir daquele dia, depois de o mundo inteiro conspirar para ela perder aquela bendita prova, ela passou a ter sérias dúvidas de que essas coisas existiam. Nós não escolhemos as pessoas que conhecemos, nós não escolhemos e sabemos o que vai ser daqui um minuto, um ano, dois. Não escolhemos por quem se apaixonar, por quem compartilhar nossas vidas, acontece. Acaso? Destino? Deus? Coincidências? Ela não sabia. Mas algo forte fez aquele garoto aproximar-se dela naquele dia. E Carol sentia que essa mesma coisa os aproximaria novamente.

O sol se punha atrás dos prédios e Igor era só um pontinho no final da rua, quando ela tocou o rosto onde ele deu-lhe o beijo. E, se o destino estivesse do seu lado, seria o primeiro de muitos.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Obrigada por lerem até aqui. Quero saber a opinião de vocês! Beijos.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Atrasos & Acasos" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.