O Retorno dos Antigos escrita por João Victor Costa


Capítulo 6
Mundo de Começos




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Katy nunca havia tido uma experiência tão estranha durante toda a sua vida. Era como um sonho, parecido com um filme que se passava automaticamente diante de seus olhos.

Um filme que mostrava como tudo começou, há mais de 60 anos atrás.

A visão lhe mostrou um grande salão circular feito de mármore bege. Nele estava disposto doze grandes palanques de discurso em intervalos regulares e, nesses palanques, estavam sentados, ao todo, doze pessoas. Cada uma daquelas pessoas, líderes representando uma das doze capitais de Teceu.

Katy pode ver pelo emblema clavado em seus respectivos palanques a representação de cada uma dessas capitais: Cosmos, Luz, Sombras, Sol, Lua, Terra, Céu, Fogo, Ar, Magia, Água e Natureza.

E todos estavam em uma reunião que decidiria o destino do mundo para os humanos e os hospedeiros.

. . .

Thális, o representante da Primeira Capital, a capital do Cosmos., de acordo com a pequena plaquinha depositada em cima de sua mesa, se levantou de sua cadeira e os demais líderes fizeram o mesmo. Não havia mais ninguém naquele salão além dos líderes das Capitais. Não havia ajudantes, guardas ou qualquer outra pessoa. Ninguém além dos doze.

— Saudações. - cumprimentou Thális. - Todos sabem o motivo dessa convocação, após o fim dessa trágica guerra que trouxe perdas a todas as nossas cidades. - ele olhou rapidamente, de relance, para o líder da Capital do Fogo. Katy notou uma pequena tensão, ou receio, em relação a ele, mas isso logo foi aparentemente esquecido. - Que comecemos a nossa reunião e que, dentre nós, saia finalmente uma opção de paz para o mundo.

Paz. Aquilo era uma coisa que Katy realmente gostaria de ver. Algo que o mundo que conhecia não tinha. Algo que parecia tão distante.

Fazendo um único som, todos se sentaram ao mesmo tempo em suas cadeiras.

E assim, a reunião teve início.

. . .

“Nós não estamos mais seguros”, foi o que o pai de Daniel disse para o garoto quando se esbarraram na cena do crime, em um beco onde costumava ficar um bocado de caçambas de lixo, e não o corpo de um homem que, de alguma forma, estava completamente seco e murcho.

Daniel havia feito seu típico passeio até a padaria quando o grupo de pessoas na companhia de alguns poucos carros da polícia estavam ali, reunidos em um beco. Daniel se aproximou para olhar mais de perto, atraído pelo pequeno tumulto, e suas suspeitas se concretizaram.

Aquilo se tratava de mais um assassinato e o principal suspeito nada mais era do que as pessoas chamavam de “os Servos da Noite”.

— Eu acabei por aqui. - disse Luís para o filho, ao encontrá-lo. - Vamos para casa.

Daniel acompanhou o pai. Os dois entraram no carro e foram embora enquanto o homem coberto pelo saco preto era colocado na traseira de uma vã, também preta. As pessoas interrompidas pela curiosidade enquanto davam um passeio pela manhã na cidade foram rapidamente se dispersando.

Aquilo já estava ficando frequente. Quer dizer. Os assassinatos.

A frase que o pai de Daniel havia dito para ele continuou ecoando pela sua cabeça.

Não estamos mais seguros…

Nunca estiveram exatamente seguros, na verdade, mas foi apenas naquele momento que a fixa pareceu cair para Daniel.

Ele havia passado a manhã preocupado com o pai. Luís trabalhava como guarda na Cavalaria e havia ficado de sentinela na muralha durante a noite. A possibilidade de ele ter estado com alguma das criaturas da noite e haver a possibilidade dele ser um alvo fácil para elas não o agradava nem um pouco.

Luís lançou um olhar para o espelho do carro enquanto Daniel, no banco de trás, estava com a atenção vagamente para as casas e lojas da cidade de Lahmar que passava pela janela.

— O pessoal não sabe mais o que fazer. - disse Luís. - Não conseguimos impedir esses ataques e a cada dia que passa uma ou mais pessoas são encontradas mortas.

Aquilo já estava se tornando uma espécie de jogo, pensou Daniel. Toda manhã as pessoas comentavam e perguntavam sobre quem deveria ter morrido durante a noite anterior. A situação havia chegado ao ponto em que as pessoas estranhariam caso ninguém tivesse sido assassinado. Como se essa fosse uma ideia anormal.

— O que vão fazer a respeito da floresta? - perguntou Daniel, se referindo à antiga floresta de Roselie, situada a alguns poucos quilômetros ao oeste da cidade.

Não era oficial mas as pessoas já estavam comentando sobre o que estava acontecendo e fazendo suas próprias suposições sobre as antigas lendas da floresta. Lendas e histórias que não foram perdidas como todas as outras que envolviam assuntos além do Mundo Material. A lenda da floresta de Roselie ainda não havia sido esquecida porque estava constantemente sento lembrada. Agora, mais especificamente, lembrada diariamente.

— Nós vamos continuar com o programa de reconhecimento. - afirmou Luís.

O programa de reconhecimento... Juntar um grupo de pessoas para vagarem pela floresta durante o dia com o objetivo de conseguir achar alguma pista sobre as criaturas que de lá saem quando o Sol dorme atrás das montanhas distantes.

Tudo em vão.

As criaturas que lá viviam, ou melhor, pessoas em sua maioria, como Daniel pensava, não seriam achadas simplesmente por um grupinho andando por lá. Duvidava muito disso.

A floresta de Roselie era mais complexa do que todos pensavam. Havia algo nela que impedia que seus habitantes secretos fossem revelados. Algo mágico.

— Mas já tentaram fazer isso antes. - disse Daniel. - Não deu Certo.

— Não temos muita alternativa. Ou o programa de reconhecimento ou destruir a floresta.

Daniel olhou para o pai pelo espelho, que exibia apenas seus dois olhos escuros em meio ao rosto.

Roselie era uma floresta enorme, sem contar todos os animais e plantas que também deveriam viver por lá.

— Destruir a floresta? - indagou Daniel. - Está falando sério?

— Sim. Tem alguma ideia melhor? - perguntou Luís. - Estamos sendo constantemente atacados por criaturas que não conhecemos. Nem sequer sabemos o que ou quantas são exatamente. Sabemos que certamente eles vêm de lá e que andam por aí apenas de noite. Destruir a floresta não é uma ótima ideia, mas com certeza iria fazer alguma coisa.

Seja lá o que estivesse os atacando, iria ficar puto da vida com a sua casa destruída pelas chamas, o que era mais provável. Por mais que não gostasse da opção, seu pai até que não estava completamente errado.

O que eles poderiam fazer? Simplesmente continuar sendo atacados daquela forma? Aumentando o número de pessoas mortas a cada dia que se passava? Não estava certo. Daniel não entendia o porquê de sua cidade ser alvo daqueles servos noturnos, mas não era a favor daquela alternativa de aniquilá-los. Deveria ter mais alguma opção.

Havia essa antiga lenda sobre os ataques misteriosos aos viajantes que se atreviam a atravessar a floresta de Roselie durante a noite. Pessoas que foram para lá e nunca mais voltaram. Simplesmente desapareceram. Sempre durante a noite.

Ninguém sabia exatamente o que acontecia por lá. Canibais, espíritos malignos, uma sociedade secreta…

Bom, nem todos estavam errados, mas não havia como terem certeza.

— Você poderia entrar para esse grupo de reconhecimento. - sugeriu o pai. - Estão precisando de jovens para isso. Os adultos ficarão como reforço na segurança da cidade.

Reforçar a segurança da cidade? Daniel duvidava que aquilo fosse servir de alguma coisa. Era apenas uma ilusão de segurança. Se aquelas criaturas eram tudo o que as lendas diziam, eles realmente estavam com problemas.

Uma ilusão como o Céu, pensou, e se culpou mentalmente por ter pensado naquilo.

— Pode ser uma boa ideia. - concordou Daniel, sem muito entusiasmo aparente.

Céu, Nuvens, Lua… Era proibido até em pensar em tais coisas como Daniel estava pensando. Como se eles tivessem vida própria. Como se eles fossem espíritos. Não gostava de imaginar o que poderia acontecer quando alguém descobrisse que ele era daquela forma. Pensasse daquela forma. Poderia ocorrer como um deslize, em uma conversa comum, ou em alguma atitude que geraria uma grande pontada de desconfiança sobre qual lado ele estava. E Daniel só descobriria que os outros já estavam perto de descobrir sobre esses seus pensamentos quando fosse tarde demais.

Daniel se culpava toda vez que pensava nas coisas como tal. Espíritos. Que estupidez.

Sou um estúpido. Muito estúpido.

Mas esses pensamentos sempre vinham à tona. Deuses e Espíritos. Um mundo incompreensivelmente compreensível além daquela sua realidade.

Pensamentos que ficaram ainda mais fortes depois dos sonhos.

Ah, os sonhos…

Daniel havia sonhado e muito.

Sonhado que era um garotinho sozinho, perdido na floresta. Perdido em meio a escuridão.

Ele estava sentado perto de uma árvore, ouvindo sons de galhos se mexendo pelo escuro além da sua visão. Um uivo ao longe pôde ser ouvido, de um lobo ou algo pior.

Daniel estranhava aquele sonho. Estranhava porque deveria sentir medo daquilo, mas não sentia. A maioria das pessoas ficaria aterrorizada apenas imaginando o que se escondia no escuro, mas, pensando por um lado, Daniel também estava escondido no escuro e essa ideia até o agradava.

Mas não estava na completa escuridão. A luz prateada da Lua Cheia logo acima, sobre as copas das árvores, era o suficiente para ele não ter problemas para enxergar.

A Lua. O espírito da Lua…

“Os servos da noite esperam ansiosamente pelo momento em que virão novamente a tão desejada luz do Sol….”

Então Daniel acordava, logo após a Lua falar aquela frase. Tão nitidamente que parecia real. Como se ela estivesse sussurrando no seu ouvido enquanto dormia.

Toda noite era a mesma coisa. O mesmo sonho. A mesma Lua.

Daniel não fazia ideia do que aquilo significava, mas acreditava o suficiente para não os ignorar.

E de duas coisas ele tinha certeza.

Tinha a ver com a floresta de Roselie e tinha a ver com a Lua.

. . .

Katy estava perplexa enquanto assistia às memórias da reunião como uma silenciosa observadora.

A reunião que decidira o destino do mundo, em uma intensa discussão sobre a forma de se obter a paz.

E a paz na qual tanto discutiam poderia finalmente ser obtida, mas teriam que sacrificar algo muito importante.

Estavam discutindo sobre uma troca.

— O sacrifício de toda a nossa cultura em troca de uma possível paz mundial… - A reflexão vinda de Thális, o líder representante da primeira Capital, fez todos os outros permanecerem quietos, pensativos, durante longos segundos.

— Todas as guerras que vivenciamos até agora - disse o representante da Capital da Natureza. - todas foram formadas por causa dos espíritos. Não há como negar. Combates que certamente jamais teriam acontecido se não fosse por causa dos hospedeiros e da interferência dos espíritos por meio deles. Mesmo com tal justificação de que o problema não é os espíritos, e sim as pessoas que possuem os seus poderes, de que adiantaria? Os espíritos manipulam as pessoas. Sabemos muito bem disso. - Ele observou o rosto de cada um presente naquela sala. - O meu voto é sim.

Então, aquilo era a proposta final. Katy ficou ainda mais surpresa. Ela entendeu. A Cavalaria não foi criada a partir de uma rebelião de toda a população contra os espíritos e os hospedeiros. Tudo estivera sendo planejado ali, naquela reunião.

E já tinha um voto a favor, vindo do representante da Décima Segunda Capital. Faltava mais onze.

— Levando em consideração a nossa história e com o objetivo de decidir o destino de Teceu com esse “sacrifício", - disse o representante da Capital do Sol, com ênfase na última palavra. - O meu voto é Sim

Sim. O Som daquela pequena palavra, mesmo vindo da visão, fazia Katy e sua alma estremecerem.

“O meu voto é sim”. Era como se o Destino estivesse sendo chicoteado por cada palavra. E estava gostando. Rindo de tudo aquilo com prazer porque a cada chicotada, ficava cada vez mais forte.

— Para a mudança de todo o sistema, eliminando qualquer menção de deuses e espíritos em quaisquer meios. - disse a líder da Capital da Terra. - O meu voto é sim.

Katy se lembrou da história que ela lera no livro que Minerva havia lhe dado. A história sobre o espírito do Destino no Mundo espiritual, personificado em um homem preso por dois grilhões, seus próprios filhos, a Sorte e o Azar, esperando para ficar forte o suficiente para se libertar de suas algemas e seguir para soprar sua trombeta, capaz de ser ouvida nos dois mundos e fazer os espíritos e os humanos estremecerem.

— Para a criação de novas leis, limitando totalmente a liberdade de expressão cultural em nome da nova ordem, - disse o líder da Sétima Capital, a Capital do Céu. - O meu voto é sim.

O “sim” pareceu atingir Katy em cheio. Tudo o que ela poderia pensar era “não” e mesmo assim ela sentiu. Sentiu o trombeta do Destino prestes a ser soprada…

— O meu voto é sim…

— O meu voto é sim…

— Para aplicação de medidas consideradas radicais, o meu voto é sim. - disse a líder da Capital da Água.

— O meu voto é sim…

— O meu voto é sim…

— Para a dispersão do Conselho da Magia e a criação de um novo órgão governamental para assegurar a ordem. - disse o Líder da Primeira Capital, a Capital do Cosmos. A capital que representava o primeiro dos espíritos primordiais de Teceu. A capital que simbolizava a união dos dois deuses supremos: O Tempo e o Espaço. - Eu peço desculpa a vocês, hospedeiros. - Thális falou quase sussurrando, como se soubesse que Katy estava ali, ouvindo. Como se a mensagem fosse exatamente feita para ela. - Eu realmente lamento muito por vocês. - disse ele com uma única lágrima escorrendo pelo seu rosto. Thális deu um longo suspiro. - O meu voto é sim.

E então Katy ouviu, através da visão, a Trombeta do Destino ser soprada.

E ela acordou.


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Notas finais do capítulo

Obrigado por lerem! Comentem! Qual dos doze espíritos primordiais vocês mais se identificam? Responde aí" :)

Ah, e obrigado Millena por acompanhar a história!. Esse capítulo saiu meio atrasado que o planejado, mas enfim, ta aí.



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