Dutch passou a semana seguinte trancada no apartamento. O suprimento de comida na geladeira e nos armários lhe permitia isso. No fundo ela estava de vigília, aguardando o momento que a maçaneta da sala mexeria e Nikki retornaria pela porta, arrependida. Uma ilusão. Uma vez na influência da mãe controladora e preconceituosa, a ex-namorada não voltaria atrás.

As noites ela ficava na escuridão dos cômodos, deitada na cama ou sofá, virada para a janela, bebericando alguma coisa forte e pensando. Aproveitou a solidão para rever toda sua vida até então. Dutch vinha tendo uma existência conturbada. A criança mais problemática das escolas, participando de reuniões com pais e professores esporadicamente. Na adolescência apaixonou-se por uma garota bem mais velha e fugiu com ela para Los Angeles, ficando dois meses sem dar notícias em casa. O relacionamento não deu certo e a moça retornou para a família, que já desacreditava-a, com sérios distúrbios de alcoolismo. Um coma alcoólico e o colocando o carro de seu pai em perda total foram a gota d’agua para ela finalmente ser expulsa do seio familiar.

Nesta época Dutch completava vinte anos. No mesmo período conheceu um hacker procurado em cinco estados americanos e viveu no seu porão, praticamente numa relação de marido e mulher, por quatro anos. Aprendeu todos os macetes do ofício ilegal enquanto cheirava muita coca e bebia uísque naquele mausoléu. Philip era o nome dele, e quando ele teve uma overdose em cima do teclado, ela resolveu parar com a droga e assumir a identidade de Philip no mundo cibernético.

Não seria muito atraente ela contar para Fet a verdadeira história de seu passado, por isso inventar um pai amoroso que trabalhava para uma companhia telefônica lhe pareceu menos assustador a semanas atrás.

Enjoada de se relacionar com homens, Dutch acabou conhecendo sua terceira relação amorosa séria num centro para pessoas que tentavam se livrar do vício da cocaína. Lá trabalhava uma morena linda, muito meiga, de apelido Nikki. Ela era enfermeira e estava namorando há oito anos com o homem que iria se casar. Iria. Dutch e Nikki se apaixonaram, ela largou seu pretendente e saiu da casa da mãe, indo viver com a hacker por três conturbados anos.

Então veio a praga strigoi... e com ela, Fet.

“Fet... onde estaria agora?”

***

O strigoi poderoso e a gangue de mexicanos levou o Occido Lumen quando o Professor não conseguiu extrair mais nada dele. Estavam atracados num cais ainda dentro do perímetro de Nova York e Fet tinha que aguentar o mau humor avassalador de Setrakian motivado pela grande frustração. Aparentemente a chave para derrotar o Mestre só poderia ser desvendada com a ajuda de um Ancião e nenhuma daquelas criaturas ajudaria eles porque isso significava correrem risco de serem extintos também. Como o acordo entre o Professor e a criatura Quinlan era ele ter direito a inspecionar o livro próximo do strigoi e depois devolvê-lo inteiramente, não havia muito o que se fazer a partir dali.

Fet estava desfrutando de uma manhã gelada, sentado de frente para a amurada do barco e comendo amendoins. Setrakian aproximou-se rabugento:

— Fui enganado!

— Como assim, Professor?

— Aquela criatura maldita sabia que eu não poderia ir além sem ajuda dos Anciões, por isso me autorizou a ver o livro.

— Pelo menos estamos vivos, hã?

— E esse foi o maior erro dele. Vou botar as mãos no Occido Lumen novamente e quando isso acontecer descobrirei como chantagear os Anciões a me ajudarem com o Mestre.

— Estamos ousados, hã? Não esqueça que somos apenas humanos, Professor. Daqui a pouco algumas coisas começarão a sair do nosso controle.

— Tudo já está fora do nosso controle, Sr. Fet! — exclamou Setrakian irritado. Vasily optou por mudar o rumo da conversa:

— Estava pensando que seria melhor dar uma passada em Red Hook. Nora e o Doutor já devem estar chegando e preciso avisá-los que agora temos pretensão de mudar nossa "safe house".

— Faça como quiser, só não demore porque precisamos começar a varrer essa cidade outra vez atrás de Occido.

Fet levantou e bateu as mãos com farelos de amendoim na borda do barco.

— Estou indo então. Tente não se meter em nenhuma enrascada, hã? — fitou o velho o carinho e respeito que havia adquirido ao longo daquelas semanas.

Setrakian deu de ombros e entrou no barco coaxando.

Vasily pegou sua mochila munida de todos os equipamentos básicos para enfrentar um caminho dali até seu apartamento, inclusive seu inseparável cabo de ferro, e saiu andando pelo cais. Seus motivos para visitar o antigo apartamento não estavam somente no Doutor e em Nora. Ele também esperava, embora soubesse o quão ridículo era, encontrar Dutch bufando de impaciência por sumir sem deixar notícias de para onde fora.