Heróis de Cristal - Cidade em Chamas escrita por Ricardo Oliveira


Capítulo 1
Prólogo




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Julho de 97


– Eu não consigo enxergar nada. – Uma voz se queixou na escuridão, enquanto o único ruído a ser escutado era algo sendo sacudido.


– Oliver… - Outra voz lamuriou-se enquanto as sacudidas continuavam.


– Esse é o meu pé! – Mortimer reclamou ao ser chutado, segundos antes da luz da lanterna se acender sobre o grupo. – Oh.


As quatro crianças tinham se escondido apressadamente de um segurança, sem chance de se guiarem na escuridão até que Oliver pudesse ligar a sua lanterna com dínamo. Não exatamente sua. Tinha pegado “emprestado” de Mickey, um inventor que trabalhava para o seu pai. Tudo estaria bem desde que ele devolvesse antes de perceberem.


Com a presença da luz, ainda que pouco carregada, eles finalmente conseguiram se acalmar.


– Me lembrem novamente… - Kylie falou, colocando as mãos na cintura entre respirações pesadas. Não estava acostumada a correr e a saia que tinha escolhido usar não a ajudava. – Por que nós estamos invadindo um cemitério?


– I-isso. – Concordou Mortimer, suando e ajeitando os óculos. Estar acima do peso não era uma vantagem nesses momentos. Além disso, ele estava assustado. Muito assustado. – Cemitérios não são legais.


Oliver não respondeu de imediato. Não tinha um motivo concreto para aquilo. Simplesmente tinha sido dominado por uma vontade, um impulso incontrolável de fazê-lo. E, embora não admitisse, o garoto também sentia certo medo, um dos motivos para não ter ido sozinho.


Por sorte, Molly veio em sua defesa: - Vai ser divertido. – Ela sorriu, e Oliver sorriu de volta, tornando a sacudir a lanterna que enfraquecia. – Desde que não sejamos pegos.


– Sim, divertido. – Ironizou Kylie, cruzando os braços. – Podemos invocar o coisa-ruim, escavar túmulos atrás de ossos ou procurar a lápide de John Curtin.


– Quem é John Curtin? – Oliver perguntou, apontando a lanterna para os túmulos ao redor, imaginando que ela teria visto aquele nome em um deles, mas só conseguiu ler um nome e tinha certeza de que “Phileas Walls” não era “John Curtin”.


– Ele foi o décimo quarto primeiro-ministro da Austrália. Ajudou muito na nossa luta contra o Japão, na Segunda Guerra Mundial. – Mortimer explicou, animado. Com seus oito anos de idade, o garoto era uma enciclopédia viva. Bom pra ele, ainda que ninguém se interessasse tanto. Exceto Kylie, talvez. – Ele está enterrado aqui.


– Certo, vamos procurar onde. – Oliver decidiu, guiando o grupo às cegas pelo lugar arborizado. A noite o fazia pensar melhor. Ele conseguia ouvir os ruídos ao seu redor. Os insetos fazendo seus sons. Mortimer tremendo (aquela era a sua parte favorita). E os passos que eles davam na grama e nos galhos.


Era impressionante a quantidade de pessoas que ali estavam. Oliver se perguntou se algum dia seria enterrado ali, virando só mais um nome marcado no mármore. Decidiu que não. Ia viver para sempre. Tinha levado uma eternidade só para completar oito anos, enquanto algumas pessoas ali tinham vivido mais de noventa, segundo as contas de Mortimer, que ele julgou estarem corretas. Ninguém ali calculava melhor do que ele.


– Então… - Kylie falou, após um tempo calada. – Você não sabe pra onde vamos, né?


– Nop. – Ele admitiu orgulhoso, sorrindo por trás da luz da sua lanterna. – Mas aceito sugestões, navegadora.


Ela arrancou a lanterna da mão dele e apontou para o lado. Um mausoléu tinha passado despercebido por eles. Oliver a olhou boquiaberto enquanto ela se limitava a sorrir, orgulhosa.


– Eu vou entrar primeiro! – Molly gritou, correndo para as grandes portas esculpidas em madeira. Ela as empurrou com muito esforço, sem sucesso.


– Devem estar trancadas, vamos embora. – Mortimer sugeriu, e Oliver ficou tentado a concordar. Exceto que sabia que o “embora” de Mortimer era diferente do seu. Tinha ficado para ler a placa na entrada do lugar junto com Kylie.


– É da minha família. – Ele anunciou, com a voz assustada.


Kylie leu baixinho os nomes dos antecessores da família Young, mas pela primeira vez Oliver não ouvia tudo que se passava na noite. Não ouvia nada, na verdade. Ter um túmulo gigante com o seu sobrenome nele era a confirmação de que morreria. Como todos aqueles nomes que Kylie agora lia.


Molly largou a porta e desceu as escadas para se reunir a eles. Kylie notou a expressão de Oliver e parou de ler. Um silêncio mortal pairou sobre eles.


– Eu acho que devemos voltar. – Mortimer implorou, assustado. – Oliver, vamos embora, por favor.


– Eu quero entrar lá. – Ele falou, decidido, já se pondo a subir os três degraus de escada.


Kylie apontou a lanterna para onde ele ia, seguindo-o logo atrás. Molly e Mortimer, sem escolha, foram também. Mortimer estava errado, as portas não estavam trancadas. E por mais que Oliver, ao empurrá-las e, lentamente, fazê-las se abrirem, visse aquilo com naturalidade, Kylie e Mortimer não deixaram de sentir que havia algo de errado.


O lugar era simples, embora qualquer um capaz de possuir um mausoléu tivesse condições invejáveis. Oliver sabia que sua família tinha muito dinheiro, mas não imaginava que isso viesse de tantas gerações atrás. Quantos anos teria aquele lugar? Talvez John Curtin fosse até seu parente!


– Oliver, tem algo errado aqui! – Kylie gritou, apontando a lanterna para um lugar específico, mas quando ele se virou, a luz se apagou.


– Oliver! – Molly chamou enquanto tentava, sem sucesso, encontrar a sua mão no escuro.


– Vamos embora! Vamos embora! Vamos embora! – Mortimer repetia descontroladamente, se encolhendo no chão.


– Sacode essa lanterna! – Oliver exclamou para Kylie, que estava assustada demais para obedecer. – O que você viu? Kylie, o que você viu?


– Tem alguém aqui, Oliver, tem alguém… - E a seguir, tudo que ele pôde ouvir foi o grito de sua amiga.


Molly gritou também, assustada com o grito da outra e Mortimer as seguiu como um comportamento viral. Oliver tentou focar a sua visão. Era a noite. A noite era sua. Seus sentidos ficavam melhores na noite. Podia ouvir tudo. Ver tudo. Mas não viu a grande mão se aproximar de seu pescoço.


– Crianças, vocês não deveriam estar aqui! – O homem que o levantava pelo pescoço rugiu. Oliver sentiu o hálito fedido, uma mistura de álcool com algo mais em seu rosto, mas seu grito nunca saiu, pois ele tentava desesperadamente respirar.


– Socorro, alguém nos ajude! Socorro! – Mortimer gritava, abraçando o próprio corpo no chão, sem ver nada na escuridão.


Oliver imaginou que morreria, mas não conseguia pensar em nada mais concreto. Torcia para poder respirar, mas a mão era muito forte. Sentia seu corpo lutando, embora não pelas suas ordens. As pernas tentando chutar, os dedos pequeninos tentando arrancar aquela mão de si. Então, ele viu.


Brilhando intensamente na escuridão, um cristal roxo brilhando na sua frente. Ele não sabia se era Deus ou talvez a morte vindo buscá-lo. Não sabia se estava alucinando. Não sabia nada. Exceto que era lindo. O brilho o chamava e ele desejou ter forças para alcançá-lo. Nos seus últimos momentos, desejou ser forte.


“Oliver Young”, o cristal falou, e ele sabia que era o cristal, embora não soubesse como, “você foi escolhido”.


O mundo se tornou uma explosão de dor quando ele ouviu os tiros. A mão o soltou e ele caiu no chão. Sentiu também aquilo mais intensamente do que deveria. Devia estar escuro, mas ele via tudo perfeitamente. Os gritos de Mortimer também incomodavam. Os insetos a cinco, dez, cem metros fazendo seus barulhos irritantes. Respirações. Batimentos. Ele ouvia tudo.


Os passos apressados em direção de Kylie também foram ouvidos. Ele fechou os olhos quando os policiais acenderam suas lanternas. A luz machucava intensamente. Era como encarar o próprio Sol. Não adiantou muito. Conseguia imaginar a cena se desenrolando pelo que ouvia, lembrava de cada detalhe do mausoléu, embora não quisesse.


Uma mão o tocou e ele recuou desesperado. Sentia o toque mais do que deveria. Como um choque. Sinapses. O mundo. Estava… conectado ao mundo? O que era aquele tremor no chão? Ninguém mais sentia? E as vozes. Muitas vozes. Se concentrou na mais próxima:


– Tudo bem, acabou. – A mulher falou. – Meu nome é Elizabeth, como você se chama?


Ele colocou as mãos nos ouvidos. Sabia que ela estava tentando ajudar, mas ela estava machucando-o. A luz. A voz. A noite. A noite era sua inimiga. Ele soube disso no momento em que soube tudo. Pois o tudo era tanto que machucava. E a dor era insuportável.


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