Geração ▸ YouTubers escrita por Jel Cavalcante


Capítulo 2
Daily Vlog


Notas iniciais do capítulo

As lembranças do passado continuam vindo à tona para a antiga turma do terceiro ano. E no apartamento de Paulo e Marcelina, uma visita nada convencional acaba de chegar, trazendo consigo alguns resquícios da amizade que ficou para trás.



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– Oi pessoal, aqui é a Alícia do Radicale-se Já! Sejam bem vindos a mais um daily vlog e hoje, em especial, eu tenho uma grande novidade pra vocês. - a garota virou a câmera para o canto da parede do quarto, onde estava uma mala vermelha bem grande e um skate verde escuro com estampa militar.

– Como vocês podem ver, eu tô indo agora pro aeroporto, viajar, adivinhem pra onde... - fez uma pausa para dar um pequeno suspense - pra casa do Paulo Guerra do Bizarrices Insanas!

Pausou a gravação e deixou a câmera em stand by. Foi ao banheiro retocar a maquiagem - sim, depois de muito tempo recusando completamente "pintar a cara", como costumava dizer, Alícia se entregou à magia dos cosméticos. Afinal de contas, uma youtuber precisa estar sempre bonita.

Antes de sair, revisou mais uma vez a bagagem para ver se estava tudo ok - era muito importante fazer essa verificação, pois nada poderia dar errado - e seguiu apressada para o elevador do prédio onde morava. Lá embaixo, o taxista finalizava seu cigarro - foram cerca de quinze minutos de espera - e abriu o porta-malas para colocar a grande mala vermelha.

Ao entrar no veículo, Alícia foi logo abrindo a câmera e continuou a gravar como se estivesse conversando com alguém especificamente.

– Então galerinha do mal, já entrei no taxi, em direção ao aeroporto, e tô mega ansiosa pra encontrar os doidos do Paulo e do Kokimoto. Vocês sabem, né, que eu amo voar de avião. Sempre que eu tô lá em cima, me imagino pulando de pára-quedas em alta velocidade e caindo em cima de uma árvore ou algo do tipo. Enfim, essas loucuras todas que vocês sabem que eu me amarro.

Enquanto falava, notou que o taxista a olhava pelo espelho com uma cara de quem não estava entendendo muito bem o que aquilo realmente significava. Esperou que ele se virasse de volta para frente e apontou rapidamente a câmera em direção ao homem. Focando de volta em seu rosto, deu um pequeno sorriso e mais uma vez pausou a gravação.

O ritual se seguiu por todas as paradas importantes, como o lanche antes do vôo, o embarque, o momento de sentar na poltrona e a primeira vista pós pouso. Era extremamente importante registrar cada detalhe da viagem pois imaginava que isso poderia alavancar de certa forma o número de visualizações em seus videos.

Um pouco antes da hora do almoço, chegou na portaria do prédio onde Paulo e Marcelina moravam. Assim que o porteiro deu sinal de que poderia subir, foi logo religando o equipamento para continuar o daily vlog.

– Então gente, é aqui que o Paulo mora. Será que a casa dele ta bagunçada? Ele tem cara de bagunçado, não tem? O que vocês acham?

Tocou a campainha desenfreadamente até que um garoto de touca cinza e cara de sono apareceu do outro lado da porta.

– Uhuuu! Finalmente você chegou. Entra aí.

Alícia entrou entusiasmada, registrando cada canto da sala. Paulo tinha muitas fãs e elas com certeza gostariam de conhecer um pouco da intimidade dele. Aquela era uma oportunidade única.

– Daora esse seu skate ein. É novo?

– Ah, então quer dizer que você não assiste os meus videos! Ta vendo só gente - continuava olhando fixo para a tela, sem sequer prestar atenção no rosto do amigo - é isso que dá ter amigo estrela. Nem pra dar uma força pro canal dos amigos, né.

– Que é isso, Alícia. Eu sempre vejo as manobras hardcore que você faz. Inclusive já tenho altos desafios em mente pra você no Bizarrices Insanas.

"Isso é bom.."– Pensou por um instante, sem perceber que estava mirando a lente bem no meio dos seios.

– Nossa! Isso sim dá uma boa quantidade de like no video - falou Paulo ao ver para onde a câmera estava direcionada.

Automaticamente Alícia ficou vermelha e preferiu apertar o pause para não ter muito trabalho apagando as partes constrangedoras na hora da edição.

– Você continua o mesmo depravado de sempre, sabia, senhor Paulo Guerra. Mas vem cá, cadê a Marcelina?

– Ela ta na casa da Carmen gravando aquele canal de nerd delas - sua voz saía agora com um tom suave de deboche.

– Deixa elas, pô. Pelo que eu tenho visto, o canal delas vem crescendo bastante. Amei um video que elas fizeram sobre a saga Crepúsculo. Foi lindo de morrer - a garota tinha uma expressão tímida no rosto, o que automaticamente chamou a atenção de Paulo.

– Você ta de brincadeira né? Por favor diga que está brincando comigo.

– Hahahaha. É óbvio que eu tô brincando. Acho mó chatice esse lance de resenha literária. Queria estar morta.

Os dois riram compulsivamente, mantendo um olhar profundo nas bochechas um do outro, e em seguida foram para o quarto da Marcelina, onde Alícia iria dormir. Em questão de segundos uma mala vermelha imensa estava ao avesso e vários itens estranhos se espalhavam por entre o colchão que se encontrava no chão.

Rodinhas reservas para o skate, óleo para lubrificar as rodas, lixa, meias - muitos pares e de todas as cores possíveis - camisas listradas, cremes de todos os tipos e uma toalha verde com a estampa do Ben 10.

– O que foi? Nunca viu uma garota andar prevenida?

– Claro que já. Eu convivo com a chata da Marcelina, esqueceu?

Um silêncio se formou e, automaticamente, Alícia começou a guardar suas coisas em uma cômoda separada especialmente para ela. Paulo foi saindo de mansinho do quarto e, ao passar pela porta, aproveitou a chance para falar o que estava preso em sua garganta.

– A propósito, adorei o sutiã de melancia. Combina com a toalha.

_

Marcelina arrumava os cabelos enquanto Carmen mexia nas configurações da câmera a fim de ajustar o foco adequadamente. As duas estavam em um cenário muito bem iluminado, com poltronas acolchoadas marrons e uma grande estante grande e colorida atrás delas. As lombadas dos livros logo chamavam atenção. A trilogia The Hunger Games bastante destacada no centro - era a série favorita delas - juntamente com as edições de luxo das Crônicas de Gelo e Fogo e, mais para o canto, dava para notar a saga Crepúsculo colocada cuidadosamente numa seção onde aparentemente só haviam livros de fantasia e crônicas vampirescas.

– Pronto. Agora é só respirar fundo e começar - disse Carmen ao retornar à poltrona e encarar os retoques que Marcelina fazia na maquiagem.

– Ok. Prontinho - a menina soltou o ar calmamente pela boca, encarou a lente pequena, apoiada sobre o tripé, e iniciou o video com grande maestria.

– Olá pessoas. Aqui é a Marce.

– E aqui é a Carmen - completou a outra com um grande sorriso.

– Estamos aqui para mais um video do canal Magia Literária. E hoje nós preparamos uma tag bastante especial pra vocês.

– Isso mesmo, Marce. Hoje nós vamos falar sobre os livros que mudaram as nossas vidas. Cada uma de nós selecionou dois livros super importantes que de alguma forma nos marcaram. Ta preparada pra mostrar os seus? - Carmen virou para a amiga com um olhar confiante.

– Claro que sim, Carmen. Solta a vinheta.

Nesse momento, as duas trouxeram seus livros para perto de si e começaram a conversar como se não estivessem sendo filmadas.

– Achei muito legal esse seu "Olá pessoas". A gente podia adotar como intro oficial do canal, o que você acha? - perguntou Carmen.

– Pode ser. Devo ter visto no canal de alguém mas não tô lembrada agora. Mesmo assim não deve ter problema algum. Vamo continuar?

– Vamo. Pode ir primeiro. Eu quero fazer um suspensezinho com os meus livros.

– Ok. Lá vai - Marcelina fez sinal para a câmera, indicando que a próxima fala faria parte do video. Era um dos códigos que elas usavam para ajudar na hora da edição - Então, leitores e leitoras. O primeiro livro que eu selecionei foi, obviamente, o primeiro da trilogia The Hunger Games. Esse livro é simplesmente per-fei-to! Acho que eu nem preciso comentar né.

– É verdade, gente. A Marce é louca por esse livro. Sempre que a gente ta fazendo uma horinha aqui no AP, eu flagro ela dando uma olhada nele. Quantas vezes você acha que já leu ele? - Carmen mantinha o mesmo sorriso no rosto.

– Nossa, nem sei. Umas oito no mínimo. Bem, o segundo livro que eu trouxe foi Divergente, que também faz parte de uma trilogia. Como deu pra perceber, eu adoro uma distopia. E esse com certeza é um dos melhores livros do gênero!

– Eu discordo com você - a voz de Carmen soou um pouco contestadora - Não é novidade pra ninguém, a não ser que você tenha chegado no canal hoje - agora ela olhava direto para a câmera - que eu definitivamente não gosto dessa série. Acho muito mal escrita e de um péssimo gosto.

– Ai, Carmen. Lá vem você com as suas críticas de nerd. Todo mundo sabe que você só diz isso porque é muito fã de 1984 e acha que as distopias atuais nem se comparam ao clássico de Gerge Orwell.

– De fato. Hahaha. Inclusive, gente, aqui está o 1984 - Carmen ergueu o livro na altura dos ombros - Esse livro definitivamente não poderia faltar nessa tag, até porque foi ele que inciou o meu gosto pela literatura. Se não me engano, li pela primeira vez no primeiro médio. Há muuuuito tempo atrás.

– Nossa como você é nerd! Hahahaha - zombou Marcelina.

– Pois se o Daniel tivesse aqui, com certeza ele concordaria comigo - de alguma forma a garota pronunciou suas palavras olhando para baixo, como se estivesse envergonhada.

– Affe. Nem me fale desse traidor. Deve ta agora naquele apartamento horroroso jogando aquelas coisas que só retardado gosta - existia uma grande tensão entre as duas enquanto o assunto continuava sendo sobre Daniel.

– Ta bom, né. Vamo voltar pro video - interveio Carmen - O segundo livro na verdade é uma coleção, mas eu tenho aqui o volume único, raríssimo, então achei que estaria valendo. O que eu tenho agora em mãos, gente, é o incrível As Brumas de Avalon. Eu não posso falar muito sobre ele agora porque tô bolando fazer uma resenha bem completa. É só aguardar que logo logo sai video só sobre ele. Enquanto isso, recomendo para vocês irem logo lendo porque vale muuuuuito a pena.

Encerrado o tópico Daniel e finalizada a tag dos livros marcantes, as duas finalizaram o video com uma emoção um tanto diferente da que existia no início da gravação, mas com a magia da edição aquilo provavelmente não seria percebido por ninguém.

– Pensando bem, acho melhor você cortar a parte em que eu falo do Daniel. Não pega bem a gente continuar essa guerrinha com ele, né? - disse Marcelina enquanto recolhia seus livros numa ecobag.

– É óbvio que eu não vou botar essa parte, dâa - o deboche de Carmen era bastante visível.

– O que deu em você, de repente? É só falar no Daniel que a sua cara muda do nada.

– Do que você ta falando? Eu só tô com um pouco de dor de cabeça… Só isso.

Originalmente, Daniel fazia parte do canal Magia Literária, porém devido a algumas complicações, o rapaz optou por abandonar as amigas e começar um canal de games, sua nova paixão. Isso fez com que Carmen e Marcelina ficassem bastante abaladas, até porque, desde a sua saída, o número de inscritos caiu bastante e os videos já não tinham mais tanta visualização como antigamente. A presença de Daniel era fundamental para o sucesso do canal.

– Ok, então. Eu já vou indo. Ah, já ia quase me esquecendo de te contar. Alícia ta na cidade, você sabia? Vai dormir comigo hoje. - Marcelina já estava junto a porta quando falou.

– Legal. Quer dizer, não que eu tenha vontade de vê-la. Depois que ela se mudou pra Osasco e ficou toda besta com as amigas tatuadas que arranjou por lá, nunca mais foi a mesma com a gente. Nem no skype entra mais.

– Tem razão. Inclusive nem sei porque ela veio. Duvido que ainda goste da gente como antigamente. Mesmo assim, eu preciso tratar ela bem, em nome dos velhos tempos.

Dito isso, Carmen deu um abraço na amiga e fechou a porta. Sentada em uma das poltronas, começou a lembrar dos momentos bons que havia passado ao lado dos amigos. Bem antes de todos se afastarem. E com o tempo, outros pensamentos invadiram sua cabeça.

"Por que você fez isso com a gente, Dani...?"

_

Jaime olhou para o calendário e notou a data circulada de pincel vermelho. Faltavam exatos cinco dias para o seu aniversário de dezoito anos. O que poderia esperar? Que seus amigos caíssem do céu?

– O que será que eu faço? Não acredito que eu vou ter que viajar pra São Paulo e passar o meu aniversário mais importante ao lado dos meus pais… Se bem que lá tem o Paulo e o Koki… Talvez a gente possa gravar alguma coisa junto.

Continuou encarando o calendário enquanto balançava a cabeça de um lado para ou outro.

– Não, Jaime. Para de pensar nessa droga de youtube. A vida ta passando e você aqui sozinho. Você precisa ir atrás dos seus amigos, mas não pra gravar videos e sim pra se sentir vivo.

"É isso, eu preciso me sentir vivo outra vez"

_

– Então, Paulo. Que desafio você tem em mente? Lembra que precisa envolver o meu skate - Alícia puxava assunto enquanto se concentrava em preparar o almoço.

– Você só vai saber na hora. Essa é a graça. Hahaha.

– Ui ui ui. Ainda bem que eu não tenho medo de nada - a menina exibia um olhar bastante confiante.

– Ótimo, então - Paulo passou pelo fogão e notou que a comida já estava quase pronta - Ainda bem que você veio. Não aguentava mais comer sempre as mesmas coisas. A regra por aqui é: eu cozinho e a Marcelina lava a louça. Tem dado certo, tirando o fato de que eu não sei cozinhar muita coisa.

– Você deveria dar uma olhada no canal da Laura. Ela ensina cada coisa que eu fico louca tentando fazer igual. Inclusive essa macarronada aqui eu aprendi com ela.

– Ter um canal de desafios insanos e outro pessoal me tira muito tempo. Por isso que eu quase não vejo os videos dos outros. Falando na Laura, ela ta morando no Rio, né?

– Ta sim. Ela e a Margarida. A gente conversa de vez em quando pelo whatsapp. É o máximo que eu consigo chegar perto da… você sabe… da nossa turma.

– Sei como é. Eu só tenho contato mesmo com a Marcelina e com o Koki. Dificilmente a Carmen aparece por aqui. E quanto aos outros, pra falar a verdade eu nem lembro mais como eles são - Paulo não conseguiu deixar de transparecer o quanto se arrependia da distância que havia se estabelecido entre ele e os amigos.

– Cada um seguiu seu rumo. E é assim que as coisas têm que ser, certo?

Os dois se olharam por alguns instantes e logo o almoço voltou a ocupar toda a atenção de Alícia. Com isso, Paulo foi para o quarto terminar de escrever o roteiro do próximo video. Pouco tempo depois, um barulho de chaves rompeu o silêncio, revelando a outra moradora do apartamento diante da porta.

– Olha só quem deu as caras! - Exclamou Marcelina correndo de encontro à amiga.

Alícia a abraçou sorridente, mesmo que no fundo não estivesse muito certa sobre o que estava sentindo ao reencontrar Marcelina.

– Quanto tempo, Marce. Nunca mais achei que ia te ver.

– Nossa como você é fria - Marcelina terminou a frase com uma gargalhada para disfarçar que queria dizer exatamente as palavras que acabaram de sair da sua boca.

– Eu preciso continuar olhando o macarrão, senão ele pode passar do ponto.

Alícia precisou de um tempo para se acalmar. Fazia tanto tempo que não via a amiga que aquilo chegou a doer em seu peito. Rapidamente outras lembranças invadiram a sua memória. As reuniões na casa abandonada, a professora Helena, a sua festa de despedida. Era muita coisa pra processar em tão pouco tempo.

"Será que eu fiz a coisa certa vindo pra cá?"

E enquanto ela se perguntava sobre onde estariam os outros, Paulo apreciava a quantidade de notificações em seu celular. Mais um video acabava de ser postado e, naquele momento, era tudo o que mais importava.


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Notas finais do capítulo

Mais um capítulo pra vocês. Espero que gostem.