O som dos pássaros anunciava um dia tranquilo enquanto o sol desfilava seus mais belos raios por entre as árvores, formando um mosaico de sombras que avançava aos poucos pelo chão. Na calçada da sorveteria, um grupo de amigos comemorava o início das férias povoando alegremente as mesas que ficavam do lado de fora. O cheiro do ambiente, o doce do sorvete, os sorrisos… sensações há muito tempo esquecidas em diários que nunca mais foram abertos, em anotações feitas nos versos dos cadernos, em porta-retratos mofados no fundo de caixas de mudança.

Pouco a pouco o rosto deles foi se apagando, restando apenas um leve ruído ao fundo. Não demorou muito para que o som conseguisse trazer Jaime de volta a realidade. Abriu os olhos assustado e notou seu celular vibrando no criado mudo, embaixo de uma cartela de remédios para dor de cabeça.

- Não acredito que tive esse sonho maldito de novo - Pensou antes mesmo de verificar quem estava ligando para ele tão cedo.

Ao olhar para a tela do seu smartphone, se deparou com o rosto de sua mãe sorrindo. Antes de atender, se perguntou quando teria sido a última vez em que a viu mas foi impedido de fazer grandes cálculos devido o tamanho da dor de cabeça que estava sentindo.

- Oi, mãe. Aconteceu alguma coisa? - Perguntou com a voz rouca de quem tinha acabado de acordar.

De repente, sentiu o suor descendo pelo pescoço e só então pôde perceber que havia dormido de roupa. Prendeu o celular entre o ombro e o ouvido, para continuar ouvindo o que sua mãe tinha para dizer, e tirou a calça com as mãos. O cheiro da noite anterior, sobretudo de bebida alcoólica, ainda estava impregnado em seu corpo e tudo o que mais queria era tomar um banho imediatamente.

- Nada, filho. É que eu e seu pai estamos preocupados com você aí morando sozinho. Além do mais semana que vem é o seu aniversário e nós queríamos saber se tem como você vir nos visitar.

Para Jaime, ir à São Paulo não se tratava apenas de visitar seus pais. Ali descansavam lembranças de uma época que jamais iria voltar. Seus amigos, a professora Helena, a patrulha salvadora. Tudo ficou enterrado nas sombras eternas do passado.

- Mãe… Eu vou fazer dezoito anos. Terminei o colégio como o meu chefe pediu e agora vim viver a minha vida. Não tô a fim de voltar praí como uma criancinha que não sabe se virar sozinho. Agora eu sou um homem de verdade.

Com essas palavras, conseguiu fazer sua mãe soltar um longo suspiro. Em seguida, ambos desligaram o telefone, lamentando em silêncio o rumo que as coisas haviam tomado. De fato, dezoito anos era uma idade importante a ser comemorada, mas o que Jaime precisava era estar com seus amigos. Se pelo menos ele tivesse algum...

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- Solta esse telefone e vem logo japonês! - Gritou Paulo do outro lado da oficina.

- Peraí, Paulo! Tô terminando de postar uma foto no insta. - Os olhos de Kokimoto percorriam a tela do smartphone enquanto pensava em uma legenda adequada para a foto.

Paulo terminou de ajeitar a câmera no tripé e programou a gravação para começar em cinco segundos. Ao se posicionar no lugar certo, gritou uma última vez para que o amigo se apressasse. Quando a luz vermelha começou a piscar, Kokimonto já estava preparado. Na tela, do outro lado, aparecia a palavra "gravando" no canto superior direito.

- Bom dia, insanos e insanas! Estamos aqui para gravar mais um video irado pra vocês! Dessa vez eu e o meu parceiro Koki vamos brincar de batata quente. Porém… de um jeito bem especial. Tudo pronto, japonês?

No centro da oficina havia uma batata no chão, onde a câmera estava focando. Kokimoto se aproximou com um tubo de álcool e jorrou o líquido calmamente no local esperado. Em seguida, Paulo veio com um isqueiro em mãos e mirou a chama na direção da batana até que pegasse fogo completamente.

- Chegou a hora da gente se divertir um pouco - Disse Paulo olhando diretamente para a câmera. Depois disso, pegou a batata sem importar de queimar as mãos, e jogou apressado para Koki, que retornou para ele aos gritos.

- Ai, ai, Paulo! Esse troço queima!

- Não, não, sua anta! O que você queria? Que fizesse cosquinha na sua mão? - Paulo arremessava de volta, cada vez com mais força, enquanto se divertia vendo seu amigo gritando.

- Ah é? Então toma essa! - Koki agarrou a batata por um pouco mais de um segundo e jogou bem forte na direção de Paulo.

Com as mãos completamente pretas e ardendo muito, os dois pararam um pouco para descansar e tiraram a camisa por conta do suor. Paulo olhou mais uma vez para a câmera a fim de anunciar o próximo desafio.

- Agora vem o grande final - Apontou para Kokimoto, que preparava uma segunda batata com cuidado - Pode ir encostando na parede, japonês.

Kokimoto se dirigiu para a parede dos fundos da oficina, enquanto Paulo ajustava o foco da câmera. Em seus rostos havia um misto de alegria e aflição. Aquilo poderia machucá-los bastante.

Paulo apanhou a batata rapidamente e arremessou com toda força nas costas do parceiro, que soltou um grito enfurecido.

- Ai, Paulo! Seu retardado! Eu falei que era pra ser devagar! - Gritou Kokimoto enquanto corria com as costas ardendo.

Paulo riu bastante ao ver a mancha preta nas costas do amigo.

- Agora é a minha vez. Arrebenta Koki!

Kokimoto apanhou a batata, completamente dominada pelas chamas, e atirou rapidamente na direção de Paulo. Os gritos de dor junto as gargalhadas dos dois faziam tudo aquilo soar engraçado.

- Então é isso galera! Espero que vocês tenham gostado. Não esqueçam de deixar seu like e de sugerir novos desafios nos comentários - Dessa vez era Kokimoto quem dava as ordens. No fundo ainda era possível ver Paulo sofrendo com as costas queimadas.

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- Eu não acredito que esses dois fizeram isso! Que irado!

Alícia voltou o video bem na hora em que Kokimoto atirou a última batata nas costas de Paulo. Aquilo conseguia fazê-la rir mais do que qualquer outra coisa. Quando terminou de assistir, lembrou de dar like e aproveitou para ler os comentários. Todo mundo parecia ter gostado do desafio e isso fez com que ela tivesse uma grande ideia.

- Cara, eu preciso participar de um video deles. Vai ser ótimo pro meu canal. O Paulo e o Koki são dois grandes ídolos teen e com certeza isso vai atrair um monte de gente pros meus videos.

Antes de fechar o navegador, clicou na barra de comentário e escreveu "Vocês são foda!". Na mesma hora seu celular vibrou, chamando sua atenção.

"Margarida acabou de postar um video em seu canal AltFashion"

- Ual! Eu preciso ver esse video novo da Margarida! O canal dela cresceu muito ultimamente e eu simplesmente adoro todas as dicas que ela dá. Nossa… Há quanto tempo eu não vejo as meninas…

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- Hahahahaha. Olha só a cara do Koki com as mãos ardendo! Muito bom!!!!

Enfim alguma coisa conseguiu mudar o humor de Jaime naquela manhã. De banho tomado e devidamente alimentado, o garoto aproveitava os últimos minutos de descanso antes de voltar a editar seu próximo video.

- Caramba! Olha só quantos inscritos eles já têm! Acho que eles são os mais populares da turma. Se bem que a Maria Joaquina também ta bombando com os tutoriais de maquiagem… Ah, mas video de mulher não conta.

Havia um certo ressentimento na voz de Jaime. Quando adolescente, ele e Maria Joaquina tiveram um namoro um tanto quanto conturbado. Isso aconteceu logo depois que ela terminou com Daniel e isso abalou bastante toda a turma. Mas aquela era só mais uma das lembranças que mofaram com o tempo. Todos estavam vivendo experiências completamente novas e mesmo a saudade que batia de vez em quando não era suficiente para fazer com que se reunissem novamente.

Aquela manhã, porém, continuava intrigando Jaime de algum modo. Talvez por causa do sonho que tivera, onde seus amigos comemoravam as férias após concluírem o terceiro ano. Ou talvez pela voz triste de sua mãe ao telefone. Ou ainda por conta da noite anterior onde havia levado um fora da garota com quem estava saindo. E mesmo que não soubesse o real motivo que o levava a se sentir mal, sabia que de alguma forma tudo aquilo estava relacionado com o seu aniversário.

- Eu preciso fazer alguma coisa especial. Mas o quê? Ou, melhor ainda, com quem?

Morar sozinho sempre esteve em seus planos por mais que fosse um garoto desleixado. Passar a adolescência toda levando bronca dos pais fez com que desejasse, a cada segundo, ficar longe de tudo. Foi então que ele começou um canal no youtube sem muitas pretensões e acabou conquistando uma grande quantidade de fãs. Em maioria eram garotos de dez/doze anos que se identificavam com as suas histórias ou, em alguns casos, garotas que o achavam fofo e atraente.

Após juntar uma boa quantia que ganhou com o canal, se mudou para Campinas, não tão longe de São Paulo mas ainda assim distante de tudo que o incomodava, e iniciou uma fase completamente nova. Não demorou muito para fazer novas amizades e, com elas, passou a frequentar algumas festas e a consumir bebidas alcoólicas, o que muitas vezes o deixava com dor de cabeça.

Mas mesmo com tantas mudanças, alguma coisa continuava o incomodando. Acontece que Jaime nunca superou tudo que aconteceu depois que o terceiro ano acabou. Seus amigos se distanciando uns dos outros, namoros, brigas, viagens. Às vezes, tudo o que queria era poder voltar no tempo e receber um abraço bem forte da professora Helena. Olhá-la nos olhos e perceber que tudo iria ficar bem. Mas agora, todos haviam mudado bastante e o máximo de contato que tinham era via internet.

No instagram podia ver como estavam a professora Helena e o professor Renê. Ambos felizes morando na Austrália e criando seus filhos com o mesmo amor que costumavam ter pelos alunos. Também observava o quanto seus amigos tinham amadurecido. E dentre todos, Maria Joaquina era quem mais lhe chamava atenção. A menina havia se mudado para os Estados Unidos e iniciado um blog de dicas de beleza. Em seguida veio seu canal "It Girl" onde fazia diversos tutoriais de maquiagens e alguns daily vlogs mostrando como era sua vida por lá. Aquilo acabava machucando ele de alguma forma. O fato de terem terminado o namoro por whatsapp. De terem tentando um relacionamento à distância que não durou muito. Agora tudo o que restava em sua vida eram as fãs que gritavam seu nome quando ia em eventos. Mas mesmo assim, nada parecia estar realmente bem.

Mexendo no celular, acabou se deparando com uma foto da qual havia se esquecido completamente. Nela, ele estava sensualizando para a câmera, ainda sóbrio na festa da noite anterior. Era uma selfie como qualquer outra, porém alguma coisa lhe dizia que aquela foto precisava ser postada. Fez o que seu instinto mandou e se dirigiu para o escritório improvisado, onde editava seus videos.

Aos poucos, os likes foram chegando. De trinta, pulou rapidamente para sessenta. E de sessenta para cento e vinte. No fim da tarde já tinha ultrapassado os três mil.

- Ter um canal no YouTube muda realmente quem você é...

E no meio de uma chuva torrencial de likes e comentários, uma interação em especial fez seu coração bater mais forte.

"Maria Joaquina curtiu sua foto"