A Prayer For The Heartless escrita por Izzy Aguecheek


Capítulo 1
Valentim


Notas iniciais do capítulo

Nada melhor do que um pai revoltado e rancoroso para criar um adolescente revoltado e rancoroso! Parte dos diálogos foi inspirada em uma pequena HQ que a diva rainha Cassandra Jean desenhou, com diálogos escritos pela outra diva rainha Cassandra Clare. O link estará no começo do capítulo.
Babi, se eu não escrever algo até lá, considere isso um presente de aniversário adiantado.
Até lá embaixo!



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HQ

When I was younger

My daddy told me I would never

Never amount to nothing special

He’d come at me from every angle

He said:

“You’re the last thing I wanted, the last thing I need...”

Quando eu era mais novo

Meu pai me disse que eu nunca iria

Nunca ascenderia para nada especial

Ele vinha até mim de todos os ângulos

Ele disse:

“Você é a última coisa que eu queria, a última coisa de que eu preciso...”

Greg Holden – Boys In The Street

Sebastian Morgenstern tinha mil e um defeitos e outros tantos problemas. Ele era arrogante. Ele brincava com as pessoas como um gato brinca com um rato. Ele era cruel. Ele arrancava asas de mariposas por diversão quando era criança. Ele andava como se fosse um rei, e agia como se fosse um demônio. Ele assustava as pessoas. Ele era errado; dava para ver isso escrito no rosto de seu pai enquanto este lhe contava sobre as mariposas, e no de sua mãe sempre que ela olhava para ele. Dava para ver no reflexo dele no espelho.

Mas ele não era burro, e seus instintos funcionavam muito bem. Ao chegar em casa em plena segunda-feira àquela hora da manhã (ele precisava lembrar constantemente a si mesmo que não era mais domingo), Sebastian sabia que estava assumindo um risco. Não um com o qual não conseguisse lidar, ele esperava; mas um risco, mesmo assim. Ele podia sentir.

Sebastian abriu a porta da frente silenciosamente, apenas o necessário, e deslizou para dentro da sala. Fechou a porta com cuidado atrás de si, tirou os sapatos e fez uma pausa para escutar. A casa estava silenciosa. Aliviado, ele começou a atravessar a sala de estar na ponta dos pés em direção à escada, os tênis em uma mão e uma garrafa de vodca na outra.

- Você sabe que horas são.

A falta de flexão na voz e os próprios instintos, mais do que as palavras, o fizeram congelar. Não era uma pergunta, o que significava que, em uma escala de um a dez, Sebastian conseguira ao menos um sete com louvor. Ele se virou sem hesitar, deixando os tênis caírem, o corpo tenso. Uma víbora se preparando para o bote.

Valentim estava sentado na poltrona mais afastada das cortinas fechadas da janela. A iluminação insuficiente, vindo apenas da luz difusa do amanhecer que conseguia escapar ao redor do tecido, fora a responsável pelo garoto não ter notado a presença do pai antes.

Presunçosamente, Sebastian respondeu:

- Pelos meus cálculos, devem ser umas cinco e quinze da manhã.

- De uma segunda-feira.

Ele deu de ombros, fingindo que não havia um nó em seu estômago.

- É.

Valentim se levantou devagar e delicadamente tirou a garrafa de vodca das mãos do filho. Analisando o rótulo, disse:

- Eu disse às onze, Sebastian. Você deve se lembrar disso.

Ele aguardou. Relutante, Sebastian fez que sim com a cabeça, a euforia da noite se esvaindo de seu corpo lentamente, sendo substituída por alguma coisa igualmente borbulhante, mas mais perigosa. Veneno.

- Pensei – continuou Valentim, deixando uma pontada de raiva romper a superfície calma de sua voz. - que não teríamos mais problemas assim depois da última vez.

Sebastian lembrava bem da última vez, o que não queria dizer que ele se importava com ela. Ele pegou a garrafa de volta, e, quando falou, havia mais de uma ponta de petulância em sua voz:

- É, bem, tanto faz - O garoto tomou um gole da vodca. O gosto o acalmou mais do que a sensação. Era possível que ele estivesse meio bêbado. - Não é nem de longe a primeira vez que você está errado, de qualquer forma.

Ele não viu Valentim se mexer, mas sentiu a garrafa escorregar de seus dedos quando o pai torceu-lhe o pulso para trás com uma das mãos. A outra estava em seu cabelo, forçando-o a olhar para cima. O vidro se espatifou contra o piso de madeira com um ruído alto.

- Não é? – O rosto de Valentim estava a centímetros do de Sebastian, e o aperto em seu pulso se intensificou. – Então vamos esperar, pelo seu bem, que seja a última, filho.

Para alguém que não o conhecesse, a voz do homem ainda pareceria perfeitamente comedida, mesmo que desse para ouvir a raiva por trás. Mas Sebastian o conhecia; a forma como ele cuspira as palavras (a última ressoou dolorosamente pela caixa torácica do menino) e o puxão em seu cabelo indicavam que Valentim estava prestes a perder o controle. Se isso acontecesse, as coisas poderiam ficar feias. Ele não perdia o controle havia algum tempo.

Sebastian nunca tivera exatamente algum controle para perder, mas tinha lembranças e cicatrizes o suficiente. Entre os dentes cerrados pela dor no pulso e no couro cabeludo, ele também cuspiu:

- Como desejar, pai.

Valentim soltou o pulso primeiro, então fez com que Sebastian o olhasse nos olhos até ter certeza de que a mensagem fora absorvida antes de retirar a mão que o segurava pelo cabelo claro.

- Sem café-da-manhã hoje, Seb – disse, se virando para ir embora. – Limpe essa bagunça e vá se vestir. Não vá se atrasar para a aula.

Ele havia se afastado apenas alguns passos quando Sebastian falou de novo, furioso com o apelido de criança misturado ao tom condescendente e arrogante e com a garrafa quebrada:

- Tanto faz, canalha.

Não foi um resmungo para si mesmo, típico de um adolescente contrariado. Ele falou diretamente com o pai, querendo que ele ouvisse, só pelo prazer de ver a máscara calma escorregar, independentemente das consequências. Só pelo prazer de dar uma espiada na verdadeira face do homem que o criara.

Valentim atravessou a distância entre os dois em três passos largos, o rosto contorcido em uma careta, e esbofeteou a face do filho. A força do golpe fez com que os olhos de Sebastian se enchessem de lágrimas e seu rosto se virasse, mas ele se recusou a sequer oscilar e manteve os pés firmemente plantados no chão.

- Se você me chamar disso de novo – A voz de Valentim era quase um sussurro enquanto ele se aproximava do ouvido do filho. –, terei que recorrer aos antigos métodos, Sebastian. Você diz que está velho demais para isso, mas tenho certeza de que ainda se lembra.

Sebastian lembrava. Lembrava do cinto de couro batendo em suas costas, dos dedos cruéis beliscando sua pele, da voz do pai, fria como naquele momento, lhe dizendo calmamente o que aconteceria se ele fizesse aquilo de novo. Houvera tantos “aquilo”, e tantas vezes em que ele os fizera de novo. Lembrava das palavras geladas, lembrando-lhe de que ele não pertencia realmente àquele lugar. Lembrando-lhe de que ninguém o queria, no fim das contas. Essas coisas haviam assustado Sebastian na época. Horrorizado com a ideia de que o pai o abandonaria, levando consigo tudo o que ele conhecia, ele havia prometido tantas vezes ser bonzinho.

Valentim sabia de tudo isso, porque ele também lembrava. Provavelmente sua intenção era que o garoto nunca se esquecesse, e, logo, provavelmente Sebastian nunca esqueceria.

Ele realmente achara que fora bonzinho, em alguns dias. Mas isso não fizera a mãe amá-lo, e não fizera o pai perdoá-lo.

Com os olhos ainda lacrimejando e a pele ardendo por causa do soco, Sebastian ergueu o olhar para Valentim e disse:

- Mas vejam só que canalha. – Ele sorriu docemente. - Deve ter sido por isso que ela te largou.

O rosto de Valentim ficou vermelho, mas, a não ser por isso, sua expressão anterior não se alterou, o que, por Sebastian, estava bem. Ele já parecia furioso o suficiente ao bater no filho uma segunda vez, agora no estômago.

- Ou talvez tenha sido porque você é péssimo na cama – continuou Sebastian, rindo sem fôlego. – Mas ei, você não tem culpa pelo tamanho do seu...

Ele foi atingido na outra face dessa vez; o onipresente anel Morgenstern de seu pai abriu um corte em seu lábio, ou talvez tenha sido a simples força do soco. Enquanto Sebastian cuspia um pouco de sangue, Valentim retrucou:

- Ela nos deixou por sua causa, Sebastian.

As palavras eram familiares, e, talvez por isso, doeram mais do que os golpes.

Sebastian se empertigou, se esforçando para manter a pose desafiadora, mesmo ensanguentado, mesmo ferido em algum lugar invisível. O gesto era uma imitação inconsciente de seu pai, sempre orgulhoso, sempre superior. Ele negaria, mas estava ali: a arrogância dos Morgenstern, contida em sua postura ereta, na linha dura de sua boca, e especialmente em cada palavra afiada, porque só um Morgenstern consegue descobrir o ponto fraco de outro Morgenstern e atacá-lo com tanta insensibilidade. Dando de ombros, Sebastian disse:

- Continue repetindo isso, se faz você se sentir melhor consigo mesmo – Ele engasgou um pouco e teve que esperar antes de prosseguir. Os fonemas saíam embolados e estranhos. – Mas, ei, tem gosto para tudo, então não desanime

Ele esperou por outro soco, mas este não veio. Valentim apenas balançou a cabeça; em seus olhos, o ódio (Sebastian aprendera a diferença entre raiva e ódio em uma idade muito tenra, e sabia bem como cruzar a linha – ou fazer alguém cruzá-la) dera lugar a uma mistura de desprezo profundo e crueldade diabólica.

- Você sabe que é verdade – disse ele maldosamente, analisando as reações do garoto com atenção. – Sua mãe não nos deixou por minha causa. Ela nos deixou por causa de você. Porque tem algo errado com você.

Como Sebastian fora tolo em crer que não haveria outro ataque. Valentim estava trocando punhos por facas, e facas por tiros, e corações por cristais e sangue por cacos de vidro. Ele sempre fazia isso. Sempre fizera e sempre faria, porque não só os Morgenstern são os únicos que conseguem atacar o ponto fraco uns dos outros como são também os que mais têm prazer em fazê-lo.

- Sem respostinhas dessa vez? – indagou Valentim. Dava para ver a satisfação em seu olhar enquanto Sebastian o encarava, mudo, magoado e subitamente se sentindo muito pequeno. – Acho que nem você consegue negar isso, hein, Seb?

Sebastian não conseguia. Valentim sabia disso também.

- Então, você entendeu: sua mãe nos deixou porque não conseguiu amá-lo. Não porque não me amava – Era a jogada final do pai, e o montante era todo dele. – Sua própria mãe não conseguiu te amar, Sebastian. E você deveria me agradecer por dar o meu melhor.

Sebastian tentou de verdade não notar que ele não dissera que conseguira amá-lo, porque já doía o suficiente sem aquilo. Só aquela ideia sempre doía o suficiente, ponto. A culpa, a raiva dos pais e o ódio por si mesmo (ah, a diferença – era tão importante, aquela diferença) ameaçaram sufocá-lo.

Valentim arrumou a camisa pálida calmamente, como se estivesse apenas concluindo uma conversa particularmente estressante, e se afastou alguns passos.

- A bagunça – lembrou, acenando vagamente na direção da vodca que se espalhava lentamente pelo chão. – Depois, escola. Sem atrasos.

Sebastian se cortou acidentalmente em um dos cacos de vidro quando começou a limpeza. Mal sentindo a dor, ele concluiu o trabalho e fez uma pausa para admirar as gotas de sangue que haviam brotado do corte.

Em alguns momentos, ele gostava da ideia de ser, de certa forma, venenoso. Significava poder, e poder era algo que o atraía bastante. Outro traço relutantemente herdado de seu pai.

Porém, havia momentos como aquele, em que ele queria não ser nada. Ele queria uma pausa, só isso. Algumas palavras gentis. Ele queria ser certo, ao menos uma vez, para não precisar se sentir tão pequeno quando seu pai falava aquelas coisas.

Sebastian queria acreditar que esse era um traço herdado da mãe, mas era difícil, considerando que dificilmente a mãe abandonaria alguém parecido com ela. Era só ver a forma como ela tratava Clary.

Clary. Maldita Clary. A maldita princesinha.

Ele deixou o sangue e a amargura escorrerem enquanto ia para o próprio quarto e lavava o rosto. A ideia de aquele corte deixar uma cicatriz era reconfortante e repugnante ao mesmo tempo. Ele já tinha cicatrizes demais, mas supunha que aquilo era justo, considerando que ele também deixara algumas cicatrizes por aí.

Valentim não é o único que consegue trocar punhos por facas, ponderou. Sorriu, o lábio partido repuxando-se dolorosamente.

O pensamento lhe agradou. Talvez fosse um daqueles momentos.


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Notas finais do capítulo

Então? Críticas? Opiniões?
Até a próxima!



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