Você aceita ser meu único amigo? escrita por snow Steps


Capítulo 1
Retiro JC


Notas iniciais do capítulo

Sejam bem-vindos!
:D



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Eu não gosto de retiros da igreja.

Não porque tenho algo contra em agradecer ao Senhor pela vida satisfatória que levo, é só porque... não gosto mesmo.

O.k., talvez eu tenha alguns motivos para chegar a tal conclusão. O primeiro deles sem dúvida é: sou tímida. A nível quase antissocial. Me sinto desconfortável ao falar no telefone, morro de vergonha para pedir informação na rua e acima de tudo em iniciar uma conversa com uma pessoa desconhecida. Já estou conformada: sou a garota do tipo caladona, não do tipo cool.

Os amigos que conquistei na escola são os que carrego desde o jardim de infância, onde bastava dar um pirulito ou dividir um escorrega para aflorar uma amizade. Assim, nunca me encontro numa situação a qual preciso me misturar a gente nova, exceto... nos retiros da igreja. O único motivo para eu doar metade das minhas preciosas férias para uma atividade que não curto é meu primo Guga. Ele é um primo distante lá de Cantagalo, que passa as férias na minha casa basicamente para estragar minha paz: toma conta do meu quarto, da minha televisão, do meu notebook e das minhas guloseimas, sem falar dos apelidos irritantes e dos cascudos!

A chatice dele é tão grande que prefiro me recluir ao Retiro dos Jovens Cristãos, ou como chamam os mais descolados, o retiro JC. O lugar é bastante privilegiado, com direito a açude e circundado por montes verdejantes. Tem um dormitório masculino e feminino, refeitório, piscina, sala de jogos e claro, uma igrejinha de vitrais coloridos que fica no ponto mais alto do terreno. Logo atrás dela tem um imenso carvalho, cujas raízes vigorosas se tornaram meu canto preferido.

Coloco os fones de ouvido e me reservo ao meu mundo particular, enquanto o nosso carro serpenteia entre as curvas sinuosas da região serrana do Rio de Janeiro. Papai está dirigindo sossegadamente e mamãe tira um cochilo ao seu lado. Ele ergue o olhar para o retrovisor e esboça um sorriso para mim, e eu retribuo da mesma forma.

_ Animada para a longa semana? – Ele pergunta.

_ Acho que sim – Respondo, sem muita firmeza.

_ Ah, que maravilha! Quem me dera poder voltar no tempo e reviver meus dias de retiro. Eu contava os meses para que Julho chegasse.

_ Eu também conto...

... para que a semana acabe logo e eu volte para casa, penso cá com meus botões.

_ Mas saiba de uma coisa filha, há muitos espertinhos que aproveitam essas situações para tirar uma casquinha. – Contenho um riso ao ouvir sua expressão antiquada. – E você, como uma mocinha linda que acaba de completar 15 anos, deve abrir os olhos para esses caras oportunistas.

_ Caras oportunistas iguais a você? Pelo que eu saiba a mamãe o conheceu num desses retiros... – Brinco, deixando papai automaticamente ruborizado.

_ Foi uma situação completamente diferente, Liora, completamente diferente – Ele logo corrige, meneando com a cabeça.

Acho que finalmente cheguei à fase onde deixo meu pai de cabelos brancos e noites sem dormir, ponderando sobre a fila de pretendentes que se estende na porta de casa. A realidade não é bem assim, pois dificilmente serei uma garota que atrairá muitos olhares. Embora tenha escutado das minhas tias a vida inteira de que sou a princesinha da família, o espelho do banheiro não tem como mentir para mim. Meu corpo é esguio e de curvas apagadas, pernas finas e um rosto que não sai muito do comum, salvo algumas espinhas. Meus cabelos lisos e escorridos cobrem metade da testa numa franja, que está sempre comportada atrás da orelha. Meus pulsos são tão magros que qualquer pulseira fica exageradamente frouxa, assim como os anéis nos dedos. As roupas então, nem se fala: de vez em quando faço uma visitinha às escondidas na seção infantil. No entanto, nesta questão eu também já estou resolvida: jamais serei uma Megan Fox ou Taylor Swift. E acredite, eu adoraria ser como elas. E muito.

O fato é que o alerta do meu pai chegou um pouco atrasado, pois os espertinhos do retiro JC já se manifestaram há pelo menos umas duas edições atrás. E como eu já havia previsto, nunca fui alvo de suas investidas, deixando esse cargo para as garotas cristãs mais populares. Eu posso acalmar a preocupação do papai lhe dizendo isso, mas prefiro permanecer quieta e me contentar com a ideia de que ao menos meu pai acredita que sou uma arrasa-corações.

Após umas subidas, descidas, curvas fechadas e abertas, por fim chegamos ao nosso destino a poucos quilômetros antes da cidade de Itaocara. O carro sai da estrada e adentra ao caminho de terra batida, sacolejando a lataria em solavancos descompensados. Observo os longos trechos de capim que nos cercam de ambos os lados, até alcançarmos uma placa de madeira que avisa alegremente “Bem-vindos ao Retiro dos Jovens Cristãos! ”. Mais à frente, já consigo avistar o curto prédio de dois andares que é o dormitório e o azulão da piscina. Muitos carros estão estacionados, despachando adolescentes com mochilas pesadas e caras de sono. Solto um arquejo pelas narinas, imaginando o que estaria por vir tudo de novo: eu desorientada no meio de vários grupos de amigos, tentando me entrosar ridiculamente até desistir e me ilhar no carvalho para ler meus livros, que preenchem uns dois terços de espaço da minha mala. Depois as missas com suas músicas de louvor que expõem minha bela voz de pato engasgado, e as noites mal dormidas nas camas duras de colchões mirrados.

Ah, eu ainda nem coloquei meus pés aqui e já quero voltar!

Papai estaciona e desafivelamos os cintos, tirando minha mala da parte de trás. Mamãe acorda com o barulho e sai assustada do carro, com o cabelo desgrenhado e metade da face amassada pela janela.

_ Bom divertimento, querida – Ela deseja, dando um beijo estalado em minha testa. – Vou sentir muita, mas muuuita saudade de você.

_ Calma mãe, são apenas sete dias... – Consolo, recebendo seu abraço apertado que possui o típico perfume floral que ela usa.

_ Aqui... está... sua mala... ufa! O que tem aí dentro? – Questiona meu pai, deixando a mala pesada próxima de mim.

_ Hmm... um pouco de Hogwarts, Westeros e da Terra Média – Digo, provocando expressões decepcionadas nos meus pais.

_ Liora, prometa que não vai gastar esses sete dias trancada no dormitório com a cara dentro dos livros. Você já faz bastante isso em casa. Tente socializar! Veja quanta gente bacana para se conhecer – Anima meu pai me tomando pelos ombros gentilmente, lançando um olhar para a legião de jovens que se arrastam até o centro do retiro e que se parecem mais com uma tropa de zumbis.

_ Mas eu gosto de ler, pai. Não faço isso por falta de opção, acredite. – Contraponho, enfadonha. – Eu tenho vários amigos dentro dessa mala, e me divirto muito mais com eles do que imagina. Nossa, isso soou extremamente solitário...

Nós caímos em risadas, e meu pai dá um meio sorriso de convencimento.

_ Bem, se você não se importa... então está tudo certo. – Ele finaliza, e nos abraçamos com força.

Eu adoro analisar as sensações que cada abraço transpassa. Quer dizer, há milhares de tipos de abraços, se existirem milhares tipos de pessoas. O abraço do papai é o tipo do abraço de urso: ele me envolve por completo como uma cápsula que me protege. No abraço dele, sinto-me a filha mais segura do mundo capaz de ser defendida de qualquer problema que possa surgir. O abraço da mamãe é o oposto: frágil, delicado e leve. É como tentar agarrar uma pluma com os braços cruzados, e merece o mesmo cuidado de um diadema que se põe nas mãos. No abraço dela, sinto-me confiante para abrir qualquer sentimento que esteja me corroendo por dentro, feito a correnteza de um rio que leva embora as impurezas.

Eles entram no carro novamente e abaixam os vidros das janelas, com mamãe colocando a cabeça para fora. Ela acena um adeus para mim e eu retribuo, tristemente. Odeio despedidas de todos os tipos. Quando o veículo já está se dirigindo para voltar à estrada, ela olha para trás e grita:

_ Não esqueça de me ligar!

_ Não irei!

E assim observo o carro se distanciar pelo caminho de terra, até seguir o fluxo da rodovia e se tornar um pontinho distante, e finalmente desaparecer na primeira curva. Faço um bico desconsolado e abro o puxador da mala de rodinhas, caminhando de cabeça baixa no chão irregular repleto de pedras e buracos. Mais adiante, três garotas também seguem o mesmo rumo que o meu, conversando escandalosamente e dizendo de 5 a 5 segundos como sentiram a falta uma da outra.

Não vou negar que eu gostaria de ter alguém com quem conversar por aqui. Um único amigo já bastaria, apenas para trocar ideias sobre o tempo ou de como a gelatina da sobremesa estava sem gosto. É ruim estar num lugar onde sua presença não faz diferença para ninguém.

É assim como me sinto no retiro JC.

Não pense que eu nunca tentei me entrosar. Geralmente dou uma chance à galera nas primeiras horas, quando as atividades programadas do retiro ainda não começaram e os adolescentes aproveitam para bater papo. Eu basicamente fico pulando de roda em roda de conversas, escutando um pouco sobre o que cada grupo está discutindo. Geralmente estão falando sobre a nova banda da moda, de como é entrar para o Ensino Médio ou relembram situações engraçadas que aconteceram nos retiros anteriores. Eu pouco tenho a dizer a respeito desses temas, e esse pouquinho nem é tão legal assim, comparado às histórias hilárias que os outros mais descolados têm a contar. E aí me torno apenas uma espectadora, à procura de uma brecha para me revelar diante aos outros, porém... essa brecha nunca aparece.

Chego a área onde se concentram as atividades do retiro e subo para o segundo andar do alojamento, onde fica o dormitório feminino. Vários beliches se dispõem em fileiras e escolho uma cama da parte de baixo, pois viro muito durante a noite e morro de medo em cair do alto. Troco a calça jeans por um short de tecido leve e pondero sobre o que vou fazer em seguida.

A cama está bastante convidativa, com um travesseiro gordinho e um janelão ao lado, que dá vista para as copas das árvores frondosas. Um perfeito lugar para dar fim à leitura do livro O Hobbit. Porém lembro dos dizeres do meu pai e a minha regra das primeiras horas, e então me arrasto para fora do dormitório soltando alguns resmungos. Contudo, carrego debaixo do braço um de meus livros, só por precaução.

Grande parte da galera que já chegou está reunida em volta da piscina, como um enorme imã que atrai algumas moedas escassas. Vou cortando o caminho entre os grupos, que se espalham pelas beiradas da piscina e as espreguiçadeiras de plástico. Olho em volta à procura de um rosto conhecido: são muitos, mas pelo visto nenhum deles me reconhece. Vejo Rebeca, a garota mais popular daqui, provavelmente por ser a frequentadora mais antiga do retiro JC. Os pais de Rebeca são os responsáveis pela organização do evento, e então trazem a filha para participar desde... que ela era um feto?

Beca é bonita e super gentil, dois fatores que contribuem bastante para sua notoriedade. Sento na ponta de uma espreguiçadeira, já ocupada por dois garotos que jogam cartas, e observo o modo como ela sorri graciosamente e acena para todas as pessoas que a cumprimentam. Concluo que Beca e eu somos extremos opostos numa escala de sociabilidade.

Abraçando seu ombro, está um cara de camisa quadriculada e óculos escuros Ray-Ban, cujos cabelos estão propositalmente desarrumados para o lado. Eu nunca o vi antes por aqui. Ele tem uma pinta de pegador, com um jeito de gesticular e sorrir que transmite um ar maroto e desleixado, o qual deve arrancar muitos suspiros femininos.

Mas não os meus. Não suporto caras arrogantes que se acham capazes de conquistar a garota que bem querer. É pouco provável que um deles se interessem por mim, no entanto gosto da ideia de que eles jamais poderão ter todas as mulheres do mundo.

Os dois conversam animadamente, e acaba atraindo mais pessoas para a roda. Pelo menos preciso admitir que o carinha esbanja carisma: ele consegue arrancar gargalhadas dos outros de um em um minuto, ofuscando até mesmo a própria Rebeca. Ela se mantém perto dele o abraçando pela cintura, com a face apoiada sobre seu braço carinhosamente. Talvez eles sejam namorados. Também devo admitir que formam um belo casal.

Enquanto alguém do grupo conta uma história que abstrai a atenção de todos, de repente o garoto dos óculos escuros olha diretamente para mim, deixando-me nervosa. Desvio o olhar para a piscina, culpando-me mentalmente por ser tão inconveniente às vezes. Eu já deveria estar o encarando há uns dez minutos.

Cuidadosamente volto a olhá-lo para certificar de que fui apenas um mero achado entre tantos rostos desconhecidos. Mas para a minha surpresa, ele ainda continua a me encarar! Desta vez não fujo e estabeleço contato visual com ele. Será mesmo que está olhando para mim? Ou para outra direção? É difícil determinar por trás dos óculos escuros. Deixando-me mais desconcertada, o carinha solta um meio sorriso provocador.

Sim, definitivamente ele está olhando para mim. O que devo fazer?!

Sem pensar muito, devolvo um sorriso tímido para ele. Por alguns segundos nos mantemos assim, parecendo dois abobalhados que se apaixonaram à primeira vista. Contudo nosso momento se encerra, quando Beca fala algo perto do seu ouvido e ele desvia o olhar para escutá-la.

Deixo os ombros caírem. Ah, como fui idiota. Sim, idiota! Imagino-me agora como uma cena ao longe: eu sozinha, com um livro mais grosso que minhas próprias pernas, rindo para o garotão acompanhado da cristã mais legal do retiro JC. Eu, que momentos atrás afirmava nunca dar bola para um tipo como o dele!

Apanho meu livro e o abraço perto do peito, distanciando-me do aglomerado de pessoas com a cabeça baixa, preocupada se alguém havia visto aquela situação vergonhosa. Quer saber, é melhor eu ir logo para o meu carvalho. Que se dane a regra das primeiras horas.


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