As Crônicas dos Três Reinos: Ciandail escrita por JojoKaestle


Capítulo 32
O monstro




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“Ele observa meus gestos com seus olhos escuros e balança a cabeça negativamente. Se aproxima com um sorriso gentil, corrigindo a minha postura com os toques treinados de quem já vira mais batalhas que aparentava. Me pergunto todas as noites se sua pele é fria como a minha ou se fogo corre em suas veias como sentia quando Coran me abraçava.”

– Você sabe – Agnessa a lembrou enquanto tentava manter Eniko no mesmo passo de Lyvlin – se me matar agora, a pequena e inocente Eniko irá junto fazer uma visita a Mavra. Seria terrível, para ser sincero.

– Eu encontrarei uma maneira de separá-los primeiro. – garantiu Lyvlin, apagando o sorriso de seu rosto. Sentia os pulmões arderem com o esforço, mas estava conseguindo ao menos controlar as pernas – Por que está correndo afinal? Imaginei que mensageiros fossem mais fortes que isso.

O grito agudo fez Agnessa se encolher. Deveria haver alguma diferença grave entre Eniko e os demais mensageiros que havia encontrado. Laoviah teria enfrentado o perigo com cabeça, ou focinho, erguido. E Tengil... O javali quase a matara e era feito de pouca coisa além de ódio. Eniko parecia frágil em comparação.

Mais algumas passadas e alcançariam o acampamento. Lyvlin via a movimentação a medida que se aproximavam. Mas ouviu a corneta primeiro. O som vibrou no ar, alertando o acampamento para o que se aproximava. Soldados saíam das tendas metade surpresa metade confusão e Lyvlin foi lembrada de que a maioria deles não deveria ter enfrentado tal inimigo antes.

– Pai, como os odeio. – Agnessa lhe deu uma piscadela e fechou os olhos - Espero sinceramente que não morra, ainda.

E quando os abriu novamente Eniko a encarou com seus grandes olhos azuis. Deu uma olhada sobre o ombro e voltou-se para Lyvlin com uma expressão que sugeria que Agnessa já a deixara em situações piores.

– Encantador o seu mestre. – observou a garota – Quantos nirnailas você já enfrentou?

Eniko pensou por alguns segundos e lhe mostrou o indicador. Lyvlin sentiu sua coragem rastejar para suas botas e se esconder próximo ao dedão.

– Então se afaste, é a mim que querem. – falou, mais bravamente que se sentia.

Casimir havia sido útil com aquelas criaturas antes, lembrou. O linair tivera que lidar com cinco, talvez seis nirnailas naquela noite em Perth.

Lyvlin estava sendo perseguida por pelo menos treze. O leve farfalhar de suas capas esburacadas e puídas fazia o suor surgir em sua testa. O sibilar que deixavam escapar em uníssono quando não gritavam formava uma palavra curta e fria. Linair. As três silabas a condenavam. A lembravam de que não tinha escapatória. Linair. Linair.

Era assim que corças se sentiam quando ouviam os cães de caça?

O escudo de Everett surgiu tão de repente que Lyvlin tropeçou na terra úmida e se jogou por baixo da placa de aço para evita-la. Se pôs de pé do outro lado, coberta de lama e pedaços de grama que arrancara no movimento.

– Bom dia! – cumprimentou o jovem, apenas o elmo lhe faltava para que estivesse pronto para a batalha. As pessoas ao redor se dividiam entre enfrentar as criaturas com trajes de dormir ou com couro leve, o que prometia ser desastroso – Nada como um ataque relâmpago para começar o dia bem!

– Nirnailas. – Lyvlin conseguiu dizer, ofegante.

– E em Ciandail, ainda por cima! – Everett parecia estar tendo o momento de sua vida – Finalmente um desafio digno! Agora, chega para o lado.

Lyvlin agarrou o braço que colocara diante dela.

– Eles vão morrer Everett. – era como tentar segurar nevoa com uma rede. Os nirnailas ignoravam grande parte da comitiva, enfrentando apenas aqueles os separavam de Lyvlin. Yellena quebrava o pescoço de um deles com suas mãos nuas e rugia ordens para seus subordinados. A general era um furacão contido apenas por músculos, o que a tornava algo que até as criaturas evitavam. Não tivera tempo para pôr suas escamas de aço polido, mas isso não parecia incomoda-la. Quando a criatura simplesmente estalou, ajeitando a cabeça sobre o corpo magro Lyvlin viu o temor lampejar em seus olhos decididos por alguns segundos.

– Precisamos de aço de verão. – Lyvlin lembrou-se – Raoul?

O rattriano estava nos calcanhares do príncipe quando este saiu de sua tenda apressadamente. Lyvlin correu até eles, tentando ignorar o chamado que crescia em sua mente. Linair. Linair. Vinha de todos os lados, a inebriando.

– O que esta acontecendo? – Darian quis saber por cima da confusão, o semblante se fechando a medida que olhava ao redor. Deixou que Raoul lhe fechasse as fivelas da placa peitoral que faltavam no ombro, mas já tinha suas espadas aninhadas nas mãos – Nirnailas? Aqui?!

Raoul tinha os olhos treinados sobre as criaturas e jogou uma de suas laminas onde deveria estar o olho da criatura por baixo do capuz. Não parecia surpreso.

– Os cortes em Kerran eram limpos demais. – avisou calmamente, enfiando a mão em suas vestes. Surgiu com mais laminas, mas não parecia apressado para usá-las – Lyvlin, você tem algo a dizer sobre isso?

Só mais um deus se metendo onde não foi chamado.

– Eles querem me matar. – limitou-se a dizer, vendo Eniko desaparecer entre dois nirnailas – Precisamos de aço de verão.

– Não temos.

– Nenhum?

– Nenhum. – Raoul repetiu, resignado – É muito raro e precioso. O guardamos para campanhas no norte, onde nirnailas são comuns. Ultimamente parecem ser comuns onde quer que você esteja. – acrescentou, olhando para Lyvlin.

A garota deu de ombros. Desde o momento em que decidira voltar para o acampamento sabia que estava condenando-os. Os nirnailas não parariam diante de nada e sem uma forma efetiva de mata-los teriam sorte se algum deles respirasse na hora seguinte.

– Preciso desaparecer. – disse com simplicidade, sentindo os pés inquietos – Estão aqui por minha causa. Se me perderem de vista por tempo suficiente vão acabar desistindo.

– Você não sabe disso. – Raoul parecia pouco impressionado com seu plano. Eu sei que vão fazer exatamente o contrário. Mas ainda assim estarão longe de vocês. Lyvlin mordeu os lábios. Vamos, me ajude.

– É um plano péssimo. – Darian concluiu, erguendo as espadas – Mas não ficarei assistindo enquanto minha comitiva é massacrada. Raoul, tire Lyvlin daqui.

– Mas –

– Discretamente. – o príncipe lhe deu um pequeno sorriso – Não queremos que vejam para onde vai. Nos reunimos em Naniv.

As laminas que Raoul jogou fizeram um nirnaila tropeçar, soltando o soldado que tentava cortar ao meio. Agora que o acampamento parecia consciente de que não era capaz de mata-los o treinamento árduo dos soldados era lavado pela certeza de que era inútil resistir. Os golpes tornavam-se mais indecisos, os bloqueios, mais lentos. E os nirnailas não conheciam piedade.

– Lembre-se do seu treinamento. – o rattriano lhe disse - Eles são vulneráveis na cabeça e no coração. Decapite-os e não se levantarão novamente, ao menos por algum tempo.

Darian anuiu, virando-lhes as costas. Ganhou a atenção dos nirnailas assim que se pôs em seu caminho, as espadas brilhando diante dos primeiros raios de sol. Convidando-os para a dança.

– Para o príncipe! – gritou Yellena assim que o avistou em combate. Raoul guiava Lyvlin em direção aos cavalos, mas o acampamento era pequeno o suficiente para ouvir a resposta do príncipe. Mantenham as posições, não os deixem passar! Sentiu Raoul se inquietar a cada passada que os separavam. Até não aguentar mais.

– Eles vão morrer. – repetiu, olhando para o chão – Todos eles. Para nada.

Raoul parou diante de sua égua.

– Tenha fé Lyvlin. – falou baixo, acalmando o animal. Os cavalos pareciam enlouquecidos pelo medo.

– Não. – Lyvlin agarrou a gola de sua camisa de linho e a baixou, mostrando seu colo – Vão me encontrar para onde quer que vá Raoul, não importa quantas vidas vão se perder pelo caminho.

– Onde está –

– O fim será o mesmo. – insistiu – Me deixe tentar ajudar.

Alcançou Brynn e a montou. A égua saltitava nervosamente, mas Lyvlin não tinha tempo. Também não tinha sela, mas Raoul a ajudou a pôr as rédeas.

– Isso é loucura. – murmurou, entregando-as em suas mãos. Sua expressão estava perdida, os olhos verdes incessantes. Lyvlin sabia que procurava uma resposta, um plano brilhante. – Sem treinamento não –

– Raoul, está sendo negativo. Tenha fé. – tentou sorrir para acalmá-lo, mas não funcionou.

– Eu vou com você.

Dessa vez o sorriso foi verdadeiro.

– Não vai. – apertou sua mão – Mas obrigada mesmo assim.

– Lyvlin...

Tirou Arcturus da bainha, sentindo a pressão em sua cabeça se intensificar. A luz do amanhecer se perdeu na superfície negra e Lyvlin encontrou sua coragem na lamina afiada.

– Nos encontramos em Naniv. – prometeu, mesmo que não soubesse onde era. Mas sabia de uma coisa. O lugar de Raoul era com o príncipe.

– x x x –

Passar por um acampamento mergulhado em uma batalha não foi uma tarefa fácil. As orelhas de Brynn se reviravam para trás e seus cascos batiam contra a terra freneticamente, chapinhando nos restos do orvalho e sangue. Arcturus cumprimentava o ar frio das primeiras horas do dia, descendo aqui e ali sobre nirnailas desavisados. Conseguira matar dois até alcançar Yellena e cortar o braço de um terceiro fora. Ali a luta havia se tornado mais espaçada, possibilitando Brynn a galopar, o que deixava a égua menos nervosa. Lyvlin olhava ao redor em busca de rostos conhecidos. Everett encontrara Darian e juntos mantinham um grupo de cinco nirnailas ocupados o suficiente para não notar a aproximação da garota. Lyvlin atropelou dois e atingiu um terceiro na nuca, fazendo a criatura se desfazer em cinzas.

A situação no acampamento era desesperadora. Haviam perdido ao menos cinco soldados, enquanto os nirnailas não eram atingidos por golpes de armas comuns. Sobravam mais de dez, todos virando suas cabeças cobertas pelos capuzes em sua direção. Linair, linair. A canção fantasmagórica se intensificara e Lyvlin sentiu uma pontada em seu peito. Intensificou o aperto nas rédeas.

– Vamos lá, garota. – sussurrou para Brynn e a esporeou adiante.

Passou como um vendaval pelos amigos, ignorando seus chamados. Mantinha os olhos no horizonte, onde as colinas de Alterf a chamavam. Cada passo de Brynn são duas passadas daquelas criaturas para longe do acampamento. E aquilo tornou possível que partisse.

O sangue pulsava em sua cabeça enquanto Lyvlin fazia o possível para se manter sobre sua montaria. Já tinha galopado sem sela antes, mas nada que se aproximasse de uma perseguição. Suas coxas doíam de tanto que apertava suas pernas ao redor dos flancos da jovem égua. Quando não ouviu mais o barulho do acampamento atrás de si sentiu-se um pouco melhor pela primeira vez naquela manhã. E então a verdade quase a derrubou. Seu plano consistia apenas de tirar os nirnailas do acampamento, esperando que assim conseguisse salvar Raoul e os outros. Que tivesse que lidar com aquelas criaturas sozinha não havia lhe passado pela cabeça até agora. Genial Lyvlin, realmente incrível.

Tinha Arcturus, mas não se enganava. Precisaria ser incansável com a espada se pretendesse sair viva dali e Lyvlin, apesar dos treinamentos em Beltring, sabia que não era suficiente. Era muito boa, mas não o suficiente. E a magia... A magia lhe era tão estranha que o resultado parecia imprevisível.

O terreno se abria ao seu redor. Os montes de Alterf ficavam cada vez mais espaçados e logo dariam lugar a vegetação seca que delimitava a fronteira com Rattra. E então o deserto pedregoso, as dunas distantes do nordeste... E Adrahasis. Poderia cavalgar até lá se Brynn e ela não precisassem de repouso. Provavelmente as tropas de Vassand que haviam se movido para proteger a capital preciosa do reino saberiam lidar com nirnailas. Era uma esperança que morrera assim que a considerou.

Olhou sobre o ombro para se certificar de que ainda estava sendo seguida, mas os sibilos poderiam ter lhe poupado o trabalho. Nove nirnailas a perseguiam como se fossem feitos do próprio vento que soprava em seus ouvidos. Lyvlin avaliou que estavam a talvez cinco metros de distância. Linair! Um deles gritou e avançou.

Saltou os metros que os separavam e emparelhou com ela, erguendo a cabeça sem rosto.

– Por que foge? – quis saber numa voz seca, se esquivando do golpe de Arcturus – Sentimos seu cheiro agora. Sentimos a magia do nosso mestre em você.

Desciam a encosta pedregosa de um dos poucos montes que ainda restavam na paisagem. Lyvlin puxou Brynn para o lado oposto, fazendo poeira levantar-se de seus cascos.

– Nós vamos te perseguir. – outro apareceu do seu lado esquerdo e tentou arrancar as rédeas de sua mão.

– Para sempre. – veio de cima dela.

Lyvlin viu o fio afiado da espada lampejar em sua mão e se inclinou para o lado oposto. Tanto que de repente não tinha mais o apoio de Brynn debaixo de seus dedos.

Teve a reação de cobrir o rosto com os braços assim que se sentiu caindo, mas isso não tornou o impacto menos doloroso. Seu corpo foi jogado contra a terra dura como se fosse feito de pano. O desfiladeiro a apanhou num abraço que tinha gosto de poeira e sangue, a velocidade sendo tamanha que Lyvlin rolou até perder a ideia de onde era cima e baixo. A garota se encolhera como um filhote, o último lance expulsando todo o ar que tinha em seus pulmões. Tossiu, tentando afastar a poeira que engolira durante a queda. As mangas de sua camisa haviam cedido com o atrito, revelando cotovelos ensanguentados. Forçou-se a ficar de barriga para cima e olhou o trajeto que acabara de fazer. Havia caído quinze, talvez vinte metros monte abaixo. A nuvem de poeira se espalhava pelo pequeno vale e Lyvlin viu o grupo de nirnailas um pouco adiante, ao pé da elevação pedregosa. O relincho de Brynn veio do alto e Lyvlin viu o contorno da égua desaparecer no topo do monte. Lyvlin estava sozinha.

– Brynn! – chamou e cuspiu sangue, praguejando – Brynn! – e o chamado era quase um choro.

Tentou se levantar, mas não conseguia apoiar o peso em seus braços. Linair. O véu de poeira e areia estava se dissolvendo e diante dos seus olhos contornos muito diferentes se tornavam cada vez mais nítidos. Tateou em busca de Arcturus, a espada continuava na bainha. Esperando. Lyvlin não poderia perder mais tempo.

O mestre de armas no monte do rei lhe ensinara que um alvo em movimento era um alvo mais difícil de se acertar. Levantou-se. Uma dor aguda subia pelo seu calcanhar direito e a fez mudar o peso para a outra perna, mancando. Linair. O nirnaila mais próximo sibilou triunfante. Atrás dele, mais cinco começavam a subir a encosta até onde Lyvlin estava. Não se apressavam porque sabiam que não tinha para onde ir.

– Linair, linair. – imitou, limpando o sangue dos seus lábios – Não sabem dizer outra coisa? Se derem meia-volta agora os deixarei viver. – disse e quase riu de como aquilo soava.

Os nirnailas não se afetaram com a sua graça e quando desembainhou Arcturus o primeiro deles saltou.

Lyvlin bloqueou o golpe, mas a lamina da criatura foi desviada para sua coxa onde cortou pano e pele. Deu um passo para trás para se esquivar. Lento demais. Pensou quando o fio afiado passou diante do seu rosto. Baixou a espada para dar uma finta e se esqueceu que a perna direita já não lhe dava mais apoio. Caiu de joelhos, tentando se equilibrar quando viu o aço cortar o ar em direção a sua cabeça. Fechou ambas as mãos ao redor do punho de Arcturus e a encontrou, medindo forças com o nirnaila até reunir toda energia que lhe restava para se levantar ao mesmo tempo em que empurrava a lamina para o lado.

– Eu não vou morrer aqui! – urrou enquanto afastava o sangue que lhe descia pela têmpora. De alguma forma a criatura a acertara. Eu não vou morrer aqui. Repetiu para si mesma.

E então a magia explodiu ao seu redor e dentro dela.

A primeira coisa que sentiu foi a marca em suas costas, onde Vaus a tocara. Ardeu de uma forma que a fez gritar de dor e cair de joelhos. Quando abriu os olhos viu que apoiava as mãos na terra, sentiu a energia debaixo de suas palmas e em seu interior. Fluía pelas suas veias, enchia sua respiração e inebriava sua mente como uma bebida forte demais. Sentiu a pedra vibrar debaixo de seu toque e sorriu. Estava finalmente livre.

Ergueu os olhos para seus oponentes e deu um impulso para se levantar. O dia dava lugar a noite onde seus pés tocavam o chão, a magia flutuava alguns metros ao seu redor, ameaçadora. Lyvlin vira tempestades daquela forma antes, com nuvens tão negras e cheias de energia que faziam as pessoas terem medo de deixarem suas casas. Ela era carne e alma, mas também ira e força. E naqueles montes desertos nada a deteria.

Podia sentir cada parte sua naquela magia que rodeava os nirnailas, agora incertos sobre o que fazer a seguir. Cada resquício de medo foi lentamente substituído pelo gosto do poder que não sabia ter dentro de si. Era um gosto forte. Lyvlin nunca provara algo tão delicioso e deixou-se perder naquela sensação.

– Esse mestre de vocês parece realmente assustador, vocês o temem? – seus lábios se moveram sem que pensasse nas palavras. Os nirnailas ficaram em silencio, mas Lyvlin podia sentir o medo crescendo dentro deles. E isso a alegrou. Deu um passo em sua direção, a magia ficando mais densa, mais impaciente – Vocês o temem? – repetiu um pouco mais alto.

– Não estamos aqui para conversar, linair. – responderam.

Sua magia parecia vibrar como milhares de abelhas furiosas de uma vez. Lyvlin sentia-se escapar entre suas brechas e as palavras que deixavam sua boca lhe eram completamente estranhas.

– Então vamos terminar isso de uma vez. – sua voz convidou e não soava como ela. Como trepadeiras venenosas sua magia os enlaçava, um por um. Os apertaram e imobilizavam até que o grito que deixava suas gargantas fosse muito diferente do que ouvira antes. O som lamentoso a assustou, mas o que restava dela estava encolhido em um pedaço de sua mente e seus pensamentos já não eram seus. Mata-los. A voz melodiosa sussurrou para ela. Um por um.

Quando o primeiro parou de gritar e se dissolveu em cinzas ela elevou sua voz sobre o sofrimento que causava.

– Enquanto morrem, lembrem-se de quem eu sou. E não se esqueçam. – levantou a mão em direção ao nirnaila seguinte e o fez desaparecer – Pois o que Vaus é, eu também sou. Se ele pode instaurar o medo em seus corações velhos, eu também posso. Sua ira é a minha, seu poder corre em meu sangue. Morram agora, já fizeram o suficiente.

Os seis nirnailas que sobravam tentaram levantar as laminas, mas antes que o fizessem Lyvlin os destruiu com um gesto suave. Baixou a mão lentamente, a vitória cantando em seus ouvidos.

– Seus tolos. – seus lábios disseram sem sua permissão – Se Vaus é o deus renegado, o que isso faz de mim?

– Uma defunta. – sussurrou o nirnaila atrás dela e a acertou.

Sentiu o aço entrar em suas costas, mas não foi lá que doeu mais. Pensou que sua cabeça fosse explodir e quando se virou a imagem da criatura começou a sair de foco. O nirnaila puxou a lamina pronto para acabar com ela de uma vez, mas Lyvlin ainda tinha Arcturus. Ergueu a espada no momento em que o golpe veio.

As espadas se encontraram, as duas únicas inimigas que restavam no vale deserto. A vista da garota começava a escurecer, mas ainda lhe restava alguma foça.

– Eu não vou morrer hoje. – repetiu, e era dona das palavras novamente.

Jogou seu peso para frente e deixou que Arcturus fizesse o restante. Bateu a lamina do nirnaila para o lado e quando sua guarda se abriu empurrou a espada para cima, cortando garganta e cabeça. Observou a criatura se desfazer, ofegando. Passou a língua nos lábios secos e se virou, esperando que não fosse pega de surpresa novamente. Mas tudo que viu foram pedras e tufos de grama. Havia vencido.

Deixou a espada cair ao seu lado e caiu de joelhos, o choro finalmente a alcançou. Levou uma mão a parte de trás da bacia, onde a lamina do nirnaila a mordera. Sangue quente banhou seus dedos e soube que não veria o entardecer. Mas a criatura estivera errada, ela não havia se tornado uma defunta ainda. Deitou-se na terra, o chão batido estava quente e tinha um cheiro férreo. Talvez se conseguiria fazer pequena o suficiente para desaparecer.

Lyvlin observou os dedos cobertos de sangue. O lado bom de ter total controle sobre seu corpo novamente era que sentia sua mente clara, apesar do desmaio que a perseguia, formigando em seus membros. O ruim era que a dor era toda sua. Imaginou que merecia aquilo, de certa forma. O que fizera, o que falara, a assustou mais que qualquer grupo de nirnailas.

Virou-se para o céu livre de nuvens, sentindo um fisgar nas costas. Fechou a mão e usou o braço para proteger os olhos do sol, mas as lagrimas ainda escapavam. Um rastro de sangue morno e viscoso se espalhou em sua testa. Era isso que o rei queria dela? Era aquela sensação que poderia esperar quando voltasse para Beltring? Lyvlin não queria sentir aquilo novamente. Não queria perder o controle sobre seu corpo e seus pensamentos. Não queria se transformar em morte.

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O sangue já havia secado e se tornado uma mancha marrom-escura quando sentiu a bota contra seu flanco. Lyvlin deixou escapar um pequeno gemido e o toque se repetiu, mais forte dessa vez.

– Me deixa em paz. – murmurou. Em seu pesadelo ela tinha se tornado um monstro.

Quando a voz respondeu não foi em uma língua que lhe era familiar. Lyvlin arrancou o braço da frente dos olhos e tentou se sentar, o que a lembrou de sua ferida nas costas. O pequeno vale girou e até as pessoas ficarem nítidas mais um punhado de palavras estranhas haviam sido trocadas entre os desconhecidos. Eram três, uma mulher e dois homens.

Havia sido ela quem a chutara. Deveria ter mais ou menos sua idade, mas era mais alta e larga que Lyvlin. Seus cabelos castanhos se amontoavam sobre sua cabeça como se tivesse acabado de enfrentar um vendaval particularmente agressivo. Se acocorou ao lado dela e quando chegou mais perto a brisa de fim de tarde lhe trouxe o cheiro de pinheiros e nozes queimadas. Sua pele era de um marrom avermelhado, como o barro que era transformado em vasos adornados de gemas preciosas em Adrahasis. Seus olhos eram duas esferas escuras que a encaravam com curiosidade.

– Tem certeza que quer que a deixemos em paz? – quis saber – Você não parece bem. – e olhou para seus companheiros com um sorriso no rosto – Nós podemos ajudar.

Lyvlin seguiu seu olhar. O grupo se vestia de forma semelhante, couro de montaria e capas de viagem que já haviam visto dias melhores. O maior dos homens tinha dois machados de guerra presos as costas e o outro tinha um arco longo na garupa de seu cavalo. Era mais jovem que o homem dos machados e tinha uma aparência que o diferenciava de todos que Lyvlin já havia visto. As maçãs do seu rosto eram altas e os olhos pequenos eram mais estreitos que os das pessoas que conhecia. O rosto tinha um semblante nobre, a pele tão clara quanto a terra seca que cobria o Alterf. Falou alguma coisa para a mulher em um tom que Lyvlin não soube distinguir se significava algo bom ou ruim.

– Estranho encontrar alguém por aqui. – a garota disse para Lyvlin e deu uma olhadela para a mancha de sangue que se entranhara no chão poeirento – O que aconteceu com você?

– Vocês não são daqui, são? – Lyvlin quis saber, notando a barra de suas capas manchadas num tom escuro. Juntar as peças não era muito difícil. Aquelas pessoas estavam por trás do massacre em Nehorna. – Acontece que eu gosto de rolar morro abaixo com facas de caça, numa corrida de vida e morte. Parece que hoje não tive tanta sorte.

A garota indicou Arcturus com o pé

– Não parece uma faca de caça para mim. – levantou a espada e a examinou debaixo das últimas luzes do dia – Muito boa, se importa se ficar para mim?

O rapaz do arco disse algo que fez seu sorriso desaparecer.

– Ou talvez não. – arrastou a espada até ele e a entregou a contragosto.

Enquanto Arcturus ia de mão em mão Lyvlin sentia sua raiva crescer.

– O que uma rattriana está fazendo na companhia do povo de Wodan? – perguntou antes que conseguisse se conter. A menção ao seu líder deveria ter chamado a atenção dos os homens, mas o arqueiro apenas levantou a cabeça por alguns segundos antes de continuar a conversa com o homem dos machados, que sequer piscou. Arcturus parecia ser mais interessante do que as palavras de uma moribunda estrangeira.

– Não sou rattriana. – a mulher respondeu – Deveria tentar ampliar seus horizontes um pouco, mas o que se espera de alguém que rola morro abaixo com armas. - e trocou mais algumas palavras com o arqueiro.

Lyvlin achou que ele era quem dava as ordens. Imaginou se haviam sido dele as palavras que condenaram o vilarejo ao seu destino. Usava o cabelo escuro preso em um rabo de cavalo curto enquanto o homem maior usava o dele livre, trançando apenas a barba acinzentada.

– Então, quer ajuda ou prefere ser comida pelos lobos? – a mulher a apressou, impaciente.

Lyvlin se apoiou nos cotovelos cortados e a encarou com raiva.

– E que ajuda vocês serão? – respirava com dificuldade, mas não se deixaria levar por aquelas pessoas – Devolva a minha espada.

– Nós temos curandeiros. –garantiu, ignorando seu pedido - Os melhores do mundo.

– Mesmo? – quis saber, olhando para o arqueiro - Para mim suas mãos parecem mais adaptadas a matar.

A mulher lhe pressionou uma faca contra o pescoço.

– Quer uma demonstração, pirralha?

– Basta, Hara. – disse o arqueiro. Sua voz era mais suave quando falava a língua de Lyvlin, como se acariciasse cada silaba que escapava de seus lábios. Desceu do cavalo e se abaixou ao lado dela, os olhos escuros perfurando os seus – Quem é você?

– Lyvlin. – respondeu e por não conseguir controlar sua língua, acrescentou – Eu vi o que vocês fizeram em Nehorna. Deve ser necessário muita coragem para atacar um vilarejo sem defesas.

– Você tem uma língua ferina para alguém a beira da morte. – virou a cabeça em direção ao homem dos machados e deu uma ordem – Nós damos muito valor a verdade entre o meu povo. Talvez devesse passar um tempo conosco para aprender.

– Talvez eu preferisse sangrar até a morte.

O arqueiro levantou uma sobrancelha.

– Ela lembra um pouco a minha avó, não acha? – perguntou para Hara. O homem dos machados apenas observava confuso.

– Sua avó deve ser muito esperta. – não saberia por quanto tempo conseguiria iludi-los. Esperava que alguém aparecesse durante o tempo que estava ganhando, mas deveria estar longe demais do acampamento para receber qualquer ajuda. O que faço?

– Ela foi. Uma conquistadora, na verdade. Espero algum dia ser digno de sua linhagem. – mandou o homem dos machados levanta-la e enquanto era amarrada sobre seu cavalo se aproximou – Seu nome me parece verdadeiro, por isso lhe devo o meu.

Lyvlin o observou amarrar uma corda entre o cavalo e a montaria de Hara. Preferiria que acabasse logo com aquilo, não sabia quanto tempo a separava do próximo desmaio.

– Me chamo Rhys e sou o segundo filho de Terant Ferdas. – continuou, acariciando a crina do cavalo com seus dedos longos – Mas seu povo o conhece por um nome diferente, talvez por ter recebido apenas guerra dele.

– Wodan. – Lyvlin disse, vendo o horizonte se tornar cada vez mais escuro diante dela.

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Notas finais do capítulo

Desculpem qualquer coisa, esse capitulo foi postado apos um serio caso de "nao aguento mais olhar pra isso e a historia tem que andar.". Prometo que vou trazer mais qualidade da proxima vez. Comentarios me dao vida e vontade de continuar. Beijos beijos, ate a proxima!



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