As Crônicas dos Três Reinos: Ciandail escrita por JojoKaestle


Capítulo 28
Capital das ilusões




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Eu lhe trouxe a vitória. Falei enquanto ele tomava o freio do cavalo das mãos do cavalariço. Estudei seu rosto. A investida o mudara. Parte da leveza que se mostrava em seus olhos havia se apagado, mais cedo havia contradito um de seus generais pela primeira vez. Ele olha para mim e dá um sorriso carregado de tristeza. E que bela vitória, não é? Não fora uma vitória, fora um massacre. Ver as pilhas de cadáveres pela primeira vez tirou sua inocência e apagou a forma como sorria diante de tudo. O massacre o fizera. A guerra. Não eu. Nunca eu.”

Então ser linair de Vaus era praticamente uma sentença de morte. Enquanto sentia a brisa acariciar seu rosto o pensamento quase a fez gargalhar. Claro que era. Por que as coisas seriam agradáveis? A marca em seu ombro, o corvo com sua mensagem antes disso. E agora Desmera e Adisa tinham partido. Lyvlin sentia-se exausta e cada passo a fazia querer parar para descansar. O único consolo era que no fim do caminho encontraria Ezra. Ele e algo importante o suficiente para lhe contar que o fez abordar Adisa em pleno mercado. Imaginar a cena a fez rir, mesmo se sentindo miserável.

Havia passado em seus aposentos para pôr vestes mais adequadas a uma escapadela a cidade. Usava seus calções de treinamento, uma camisa larga de linho verde e um justilho de couro de mangas compridas por cima. Sua capa puída que algum dia fora marrom ondulava as suas costas e uma adaga curta se encontrava presa a sua cintura. Não esperava ter que usa-la, mas depois do que acontecera com Lamar havia aprendido a manter uma por perto, especialmente com a luminitsa bloqueando sua magia. Quando alcançou a amurada que delimitava o Monte do Rei ouviu sinos a distância. Merda. Pensou, começando a correr. O piso de pedras não conferia muita resistência e logo se pegou abraçada pelo vento. Beltring tinha calçadas amplas que normalmente suportavam uma dezena de pessoas andando lado a lado, mas com a partida das galés para Rattra as ruas fervilhavam de carroças e pessoas carregando provisões das mais diferentes maneiras. O sol começava a se pôr e tingia as casas de laranja, para Lyvlin a capital era um borrão incandescente. Viu a baia Dourada lotada de embarcações entre uma construção e a seguinte. Parecia um grande lago de ouro derretido povoado por pequenos peixes negros. Imaginou como seria deixar Beltring e navegar para o distante mar nortenho. Teria pela frente apenas perigo e guerra, mas ao menos deixaria as garras da capital para trás. E então parou tão abruptamente que amorteceu sua queda se apoiando em uma parede. Olhou para os navios se preparando para partir através de uma fresta entre duas casas e soube que alguns poderiam não retornar. O pensamento a subjugou e paralisou cada um de seus músculos.

– Hey! – chamou uma voz e quando se virou reconheceu um grupo de magos da Academia – Pare de correr feito uma louca pela cidade! Vai acabar trombando em uma das carroças!

Eles próprios carregavam seus equipamentos em sacos sobre os ombros. Eram todos magos experientes que haviam deixado seus anos de treinamento para trás há muito tempo. Mesmo com a voz autoritária Lyvlin viu que não esperavam uma resposta. Simplesmente continuaram a andar, os passos quase apressados. Não havia qualquer sinal de ansiedade em seus olhos. Apenas a determinação rígida de quem atendia ao chamado de sua capital. Os magos mais jovens que havia encontrado durante o dia não conseguiam parar de falar dos perigos que esperavam enfrentar e juravam proteger Adrahasis até a última respiração. Eles não haviam pisado em um campo de batalha antes, Lyvlin percebia agora. Se tivessem seus olhos também estariam daquela forma, não estariam? E de repente sentiu vergonha por pensar que estavam indo para um lugar mais empolgante. Tão envergonhada que baixou a cabeça e continuou a andar, o medo por Desmera e Adisa crescendo a cada passo. O amigo falara da guerra como se fosse pouca coisa, Desmera a abordara com mais cautela, mas sem medo. Talvez havia uma diferença nas habilidades que os deixava mais confiantes. Certo. Agora que pensava sobre o assunto, lembrou que eles eram afinal a decima segunda dupla de magos mais poderosa do reino. Desejou que aquele número fosse suficiente para mantê-los a salvo.

No fim não trombou contra uma carroça.

– Olha por onde anda! – avisou uma mulher com cara de poucos amigos. Sua comitiva era formada por cinco magos e magas, todos vestindo o negro de Rattra e com o falcão prateado bordado em seu peito. Lyvlin reconheceu Caira Quebra-Homens, uma moça de vinte anos que conseguia se equiparar a Casimir por tempo suficiente em um duelo para ser sua segunda em comando. O próprio se recuperava do trombo e ajeitou a capa pesada antes de dar atenção a Lyvlin.

– Não imaginei vê-la fora dos muros tão cedo. – disse em tom surpreso e olhou em direção ao Monte do Rei – Ou devemos checar se os guardas não foram atingidos por flechas?

O grupo de veteranos se entreolhou. Lyvlin virou-se para procurar pelas rua calçada.

– Não vi nenhum pelo caminho.

– Essa não é a garota que bateu aquele pirralho? – quis saber Caira. Era tão alta quanto Casimir e seus ombros eram largos e fortes, mesmo sob as vestes de viagem. Os cabelos eram brancos como os de Desmera, mas cortados como os de um homem, deixando sua nuca a mostra. A voz era meio rouca, como se tivesse passado as últimas horas gritando. Lyvlin achou que esse poderia ser o caso.

– A própria. – Casimir confirmou – Você tem que desculpar Lyvlin, Caira veio na comitiva da senhora Mehalia e imagino que ainda não tenham sido apresentadas.

Não haviam sido apresentadas, mas Lyvlin a conhecia. A imagem do mago de Tiadelik enfiando o próprio punho no rosto veio a sua mente como um raio quando seus olhos se encontraram. Se havia algo que Lyvlin aprendera com a chegada da comitiva rattriana era que magos sem nada para fazer naturalmente começam a medir forças. Havia sido há duas semanas. Rodrik era o nome do mago que tinha a fama de ser o mais rápido da Academia, era esguio e alto e sorria como quem sabia todos os segredos do mundo. Como a magia de Tiadelik requer ser pronunciada para se manifestar cuspia palavras numa velocidade tão grande que os oponentes da comitiva da princesa de Rattra haviam sido batidos um por um. Ate Caira dizer que conseguiria vence-lo de braços cruzados. Rodrik riu, os cabelos longos voando no vento como uma bandeira vitoriosa. Estava proferindo o primeiro feitiço quando o próprio punho lhe arrancara um dente. Lyvlin nunca vira manipulação magica acontecer diante de seus olhos e o episódio a tinha deixado igualmente fascinada e com medo. Desmera lhe havia contado sobre a habilidade única que os magos de Sydril tinham, mas havia falado da proibição de usa-la como brincadeira com tanta certeza que Lyvlin não imaginaria vê-la em ação em um pátio de treinamento. Caira apenas se recostara contra a parede da armoria enquanto subjugava a mente de Rodrik em um duelo silencioso. O mago não tivera chance alguma e depois de dois minutos cuspira sangue, se rendendo. “Imagino que agora saiba a natureza da magia mais poderosa do reino. Não se esqueça.” Havia dito e Lyvlin jamais esqueceria.

– Eu vi você duelando com Rodrik. – teve que dizer, não escondendo a admiração – Nunca vi alguém vence-lo tão rápido.

Caira protegeu os olhos escuros da luz do sol e sorriu, o rosto iluminado.

– Aquela lição me rendeu um puxão de orelha do Conselho, deveriam me agradecer por não tê-lo matado. Mas algumas coisas não mudam. O único lugar em que magos e magas de diferentes regiões convivem é aqui. E mesmo aqui apenas esperamos um motivo para esmagarmos as cabeças uns dos outros, não é? Espero ter um desafio maior me esperando em casa.

– Cuidado com o que deseja. – disse Casimir observando a marcha silenciosa para o porto – No fim vamos ter nossas mãos cheias.

– Vão haver inimigos suficientes para nos dois. – garantiu a mulher – Se for mesmo Wodan espreitando nossa costa. Aqueles selvagens são quase tão inúteis quanto os faladores. – cuspiu no chão para exprimir seu desgosto com os magos de Tiadelik e voltou sua insatisfação para Lyvlin - Esses magos daqui são todos moles demais, ainda bem que não vão atrapalhar dessa vez. Se tivesse que contar quantas vezes um falador dançou para dentro do meu círculo de influência teria enlouquecido cinco anos atrás. – olhou do alto para a garota – Não é nada pessoal. É só que vocês são bons para levantar barreiras e fazer aqueles encantamentos bonitinhos. Dano de verdade é conosco, sempre foi.

– Eu não sou uma maga de Tiadelik. – respondeu Lyvlin – Na verdade, estou tentando aceitar o fato de ser a linair de Vaus.

Caira encarou Lyvlin, depois olhou para Casimir e diante do seu silencio pôs uma mão do tamanho da pata de um urso no ombro de Lyvlin e sussurrou:

– Boa sorte com isso. – e virando-se para o mago, acrescentou – Vou levar a manada para o Diamante, nos vemos depois.

Casimir anuiu e quando o grupo estava longe o suficiente chamou Lyvlin para caminhar com ele. Lyvlin se certificou de que estavam no caminho mais rápido para o mercado da Primavera antes de acompanha-lo. Casimir estava serio como sempre, seus passos largos tornava difícil andar ao seu lado sem parecer um servo desajeitado. Tinha sua espada elegante e perigosa presa ao quadril, o cabo trabalhado brilhando negro contra o sol. Ele está indo também. Lyvlin pensou em silencio. Pela primeira vez passou pela sua cabeça que a situação em Rattra não era tão otimista quanto faziam parecer. Não precisariam de Casimir para isso.

– Não imaginei que conseguia lidar com suas desavenças sem destruir metade do monte. – Casimir quebrou o silencio, o nariz reto voltado para frente. Raramente olhava para ela quando conversavam, mas a isso Lyvlin já estava acostumada. Percebeu que sua voz estava menos apática que o normal, quase como se não estivesse se entediando até a morte diante de sua presença. Quase a fez esquecer que detestava cada minuto que tinha que passar em sua companhia – Talvez o mundo não vai se acabar quando se livrar desse pingente afinal.

– Por que acabaria? – a pergunta veio acusatória.

Casimir suspirou. Cruzou os braços atrás das costas e a encarou com olhos impiedosos.

– Vai deixar a natureza de sua magia ditar sua vida por você? Porque não tenho tempo para isso, tenho um navio para alcançar. Mas antes – tirou um objeto embrulhado em um pedaço de pano velho de seu bolso e o enfiou nas mãos da garota – temo que as próximas semanas vão se mostrar difíceis, mesmo sabendo controlar sua fúria.

– O que é isso?

– Uma aliança. – Casimir respondeu e sua expressão o fez rir. Era um riso rouco e breve, que logo se desmanchou – Chaves para uma saída secreta pelo arsenal. Última estante a esquerda, em menos de trezentos passos estará fora dos muros. Passar despercebida pela ponte é uma questão de discrição. Em noites sem lua é como um belo passeio, se conseguir não cair na agua. Se cair ainda deve ser belo, até se chocar contra uma pedra e te pescarem da baía na manhã seguinte.

Lyvlin envolveu o embrulho com seus dedos. Era um atalho e tanto. Com isso, poderia ir para a cidade sempre que quisesse. Poderia ver Ezra sempre que quisesse.

– Por que está me dando isso? – quis saber, estudando o rosto do mago. Uma pequena parte dela esperava que se tratasse de uma armadilha e que encontraria Urobe e os outros do outro lado com um chicote nas mãos. Este é o melhor presente que já recebi desde que cheguei aqui. Também era o único, o que não tornava fácil medir o motivo por trás dele.

– Não vou precisar mais. – olhou para ela e explicou – Não fica bem para um linair como eu ser pego se esgueirando nas sombras.

– Como você, hm? – Lyvlin estreitou os olhos e lhe deu um encontrão que desalinhou sua capa. Arregalou os olhos e tentava processar o que havia feio quando a surpresa no rosto de Casimir a fez gargalhar – Desculpe – disse, limpando uma lagrima que escapara de seus olhos - sei como põe valor nas aparências.

Tentou ajudar a arruma-la, mas Casimir se esquivou para fora de seu alcance.

– Um de nós tem que ser respeitável. – ele simplesmente disse e voltou seus olhos para a Baía Dourada. Haviam alcançado o ponto baixo da cidade que se abria para o espelho d’agua ocupado de embarcações. Lyvlin teria que subir algumas centenas de metros a esquerda para alcançar o mercado da Primavera, mas não se arrependia. Casimir olhava para os navios, talvez pensando nas tempestades que enfrentariam até alcançarem os mares quentes de Rattra. Aquela era a pior época para se navegar na costa, Desmera lhe havia contado. O frio do inverno lentamente se entranhava em Ciandail, enquanto Rattra e suas aguas viviam um verão eterno. O encontro entre as aguas do sul e do norte era violento e trazia tempestades fortes. Tão fortes que impossibilitavam pescadores de tirarem seu sustento do mar, fazendo-os se voltarem a pequenos ataques a caravanas que faziam a rota de Ciandail para Rattra por terra. A passagem deveria ser mais fácil para aquelas galés de guerra, mas temia que a frota não alcançaria Adrahasis sem perdas.

 - Eles esperam que trabalhemos juntos uma vez que cumprir meu treinamento em magia. – ela disse, o manto fino sobre seus ombros fazendo barulho contra o vento. Tentou imaginar como seria partir com o único propósito de matar. Matar não, proteger. Recordou os jovens magos dizendo mais cedo. Matar é uma consequência. As palavras lhe pareciam rasas e decidiu que não acreditava nelas.

– Veremos. – Casimir limitou-se a responder – Eu sou excepcional e não preciso de ajuda.

– Se é o que diz, seja excepcional sozinho. – lhe estendeu a mão e deu um sorriso quando Casimir a apertou, relutante – Obrigada pela chave e boa sorte. – levantou as mãos num gesto de rendição - A não ser que não precise dela também.

Casimir anuiu e se afastou sem olhar para trás. O embrulho que lhe dera era um peso leve em seu bolso, como também a primeira coisa boa que acontecera naquele dia. Observou o mago caminhar pelo cais em direção a embarcação que levaria também Desmera e Adisa. Diamante das ondas. O nome era pomposo demais para o levar a sério, mas era um bom nome para pensar antes de dormir e incluir em suas rezas confusas. Desejando que estivesse em segurança e inteiro. Prendeu os cabelos novamente dando uma última olhadela na movimentação no píer e se pôs a caminho do mercado da Primavera. Estava terrivelmente atrasada.

–x-x-x-

– Você está atrasada. – anunciou Ezra quando abriu a porta.

Lyvlin tentou passar por ele e teve seu caminho bloqueado pelo braço do rapaz.

– Desculpa – disse, tirando a chave do bolso e balançando-a diante de seu nariz coberto de sardas – Mas eu consegui um passe livre vitalício para a cidade.

Ezra ergueu uma sobrancelha. Estava vestindo uma camisa de linho azul e calções de couro gasto. Seu cabelo ruivo apontava para todas as direções como se tivesse acabado de sair da cama, o que Lyvlin sabia que não era o caso. Ezra sempre fora o primeiro a acordar, mesmo quando tinham que passar a noite em uma tenda precária seguindo o rastro de uma grupo de cervos no inverno. E enquanto Lyvlin apenas grunhia e gesticulava até ter algo em sua barriga Ezra sempre parecia acordar de um sonho excepcionalmente bom. O cheiro de suor e esterco de cavalo indicava que havia passado a tarde trabalhando no estabulo. Poderia jurar que parecia ficar mais largo cada vez que o via. Em Evion ajudava o pai a fazer pães, lia para a avó e caçava comigo. Beltring parecia exigir mais de seus músculos. Trabalhava o dia inteiro para pagar a família que o acolhera. Tentou se lembrar de lhe trazer um livro da próxima vez. Ezra era mais íntimo das letras que ela. Era assim desde quando Gilbert tentara ensina-la a ler. Enquanto a garota tentava, xingava e perdia a paciência Ezra perseverava. Quando Gilbert o pegara debaixo da janela tentando acompanhar as lições com um livro que se desfazia em suas mãos o convidara para dentro. E finalmente tinha alguém que escutava o que falava durante as lições. Se estivessem em lugares opostos Ezra estaria se dando melhor que ela, Lyvlin imaginou. Provavelmente teria todo o Monte do Rei aos seus pés àquela altura e convencido Osric a deixa-lo fazer o que bem queria. Lyvlin sempre tivera a última palavra, mas sabia muito bem que muitas vezes eram apenas um eco do que ele queria ver feito. Ezra tinha aquele efeito sobre as pessoas, também era infinitamente melhor para lidar com elas que Lyvlin. Â

– Então, o que quer comigo? – quis saber, cruzando os braços diante da falta de convite para entrar na casa.

– Ezra? – soou uma voz do interior da casa e segundos depois uma garota surgiu ao lado do rapaz – Oh.

Ezra tornou-se branco como um fantasma.

– Eu não fazia ideia de que você estava em casa – olhou para Lyvlin completamente perdido ao que a garota deu de ombros. Se não queria convida-la para dentro que resolvesse seus problemas sozinho.

– Essa é sua amiga do Monte do Rei? – quis saber a desconhecida, os grandes olhos azuis brilhando de curiosidade. Era pequena e rechonchuda, com cabelos castanhos caindo sobre um ombro em uma trança que se desfazia. Tudo em seu rosto era pequeno e nada extraordinário, menos os olhos. Os olhos pareciam ter uma luz própria que Lyvlin nunca vira antes. E podia vê-la mesmo com a franja longa que ameaçava cobri-los.

– Faye, essa é Lyvlin. – apresentou Ezra sem jeito e olhou insistente até Lyvlin estender a mão.

– É um prazer! – ela disse, chacoalhando a mão de Lyvlin – Se eu soubesse que viria hoje teria feito um pequeno bolo ou pelo menos não teria passado o dia no porão, não é dos mais limpos.

Seu vestido de linho bege estava coberto de poeira na altura dos joelhos e as mãos estavam sujas de um liquido preto que se transferiu para Lyvlin durante o aperto de mãos.

– Não se preocupe – assegurou quando Lyvlin trouxe a sua mão diante dos olhos – é apenas tinta.

– Passou o dia estudando de novo? – quis saber Ezra em tom de censura – Seus pais já disseram o quanto isso pode ser perigoso sem supervisão.

A garota bateu o pé e apoiou as mãos na cintura larga.

– Preciso aprender de alguma forma, não preciso? Ou talvez ficariam satisfeitos em me ver marchando morro acima para receber minhas lições na Academia? – parou de falar para respirar por um curto momento e um sorriso tomou conta de seu rosto. Virou-se para Lyvlin e agarrou suas mãos que a garota havia acabado limpar na camisa de Ezra – Você! Você poderia me arranjar alguns livros sobre magia, não poderia? Imagino que tenha acesso a tudo lá em cima!

Lyvlin acompanhou o seu olhar esperançoso.

– Eles são muito apegados aos seus livros. – respondeu em tom sinistro.

– Imagino que não há outro jeito então. – suspirou Faye e seus olhos se voltaram para os seus pés descalços – Apenas espero não explodir o quarteirão inteiro.

– Faye tem um talento raro para magia. – explicou Ezra a Lyvlin – É meio estranho. Não num sentido ruim. – apressou-se a dizer – Diferente. E não pode ser treinada na Academia como as outras pessoas, o que é completa idiotice.

– Por que não? – Lyvlin teve que perguntar.

Faye e Ezra se entreolharam.

– Você não contou a ela? – a garota quis saber baixinho e Ezra balançou a cabeça negativamente. Faye tomou folego e levantou sua mão esquerda – Porque sou uma renegada.

A pergunta estava na ponta da língua quando a garota moveu os dedos, afastando os cabelos e proporcionando uma boa visão de sua testa retalhada. O sol desaparecia atrás da baía e as lamparinas de gordura de baleia não haviam sido acesas ainda, mas mesmo na sombra que a garota fazia contra a luz que vinha de dentro da casa era possível distinguir a enorme cicatriz. Ao ver a reação confusa de Lyvlin ela se irritou.

– O quê? Não faz ideia do que isso seja? – deixou escapar uma risada triste – Vocês realmente tem um universo próprio lá em cima, não é?

– Eu duvido que considerem Lyvlin como uma deles. – interveio Ezra, pousando uma mão no ombro de Faye – Por que não a apresenta a outra parte de Beltring?

– E quebrar sua visão errada? Será um prazer. Isso Lyvlin – ela falou com o indicador no meio da cicatriz – É um presente de seu querido rei por meus pais terem salvado a vida do príncipe. Nos rendeu uma casa que pode ser comparada a uma mansão se você soubesse como o resto de nós vive. Também nos deu o direito de andar entre os mui dignos e responsáveis cidadãos de Beltring. O teria sido considerado um presente SE NÃO CUSPISSEM NA NOSSA CARA SEMPRE QUE DEIXAMOS NOSSA CASA – as últimas palavras haviam sido gritadas dentro de suas mãos formando um funil diante de sua boca pequena. Lyvlin viu uma mulher que puxava agua do poço levantar a cabeça, mas fingiu não ouvir e continuou seu trabalho. Faye deixou as mãos caírem, um pequeno sorriso raivoso estampava seu rosto – Nada como uma vizinhança agradável para nos lembrar de como não somos bem-vindos. – encheu os pulmões e fechou os olhos – Ah, o cheiro do ódio ao pôr do sol.

– Eu não entendo – Lyvlin nunca ouvira falar em renegados. Também jamais havia encontrado alguém com uma cicatriz como a de Faye – Se fizeram algo bom, por que foram punidos?

– Sim, por que? Na verdade o feito dos meus pais nos tirou da mais absoluta miséria em que os nossos irmãos e irmãs vivem. O que você vê na minha testa foi a tentativa de apagar a marca que nos sela como indigentes. Não quero seu olhar de pena, não o aceito. É um insulto quando tenho o que comer todos os dias enquanto os outros passavam fome.

– Esperava te contar o que havia descoberto de uma forma mais branda – confessou Ezra sem jeito – Mas não imagino que existam palavras para fazer isso soar menos brutal.

– E se tivessem não deveriam ser usadas. – Faye completou e enlaçou seu braço no de Lyvlin – Nascer como renegado vem com um monte de coisas legais. Os renegados não podem andar a luz do sol, nem podem ser vistos pelo restante da população. Se qualquer uma dessas coisas acontecer e eles serem pegos simplesmente desaparecem como se nunca tivessem existido. No fim acho que é isso que o rei desejou desde o início. Mas encontrou uma maneira de sermos uteis ao longo do processo. Você sabe como Beltring se mantem tão limpa? Pode ter certeza que não é por causa dos bons costumes de seus habitantes. As noites aqui são podres e cheias de rostos famintos. Mas não te ensinam essas coisas lá em cima, não é? – virou-se para Ezra e seu rosto se iluminou – Sabe o que deveríamos fazer? Deveríamos leva-la até Helea.

– Não vamos leva-la a lugar algum. – Ezra disse com firmeza – Eu só queria que abrisse os olhos para o que a corte tentou esconder dela. Nada mais.

– Você conhece Helea. Ela não a machucaria!Â

– Não é com machucados que me preocupo.

Lyvlin se desvencilhou de Faye.

– Olha, eu estou cansada de pessoas me dizendo o que fazer como se eu fosse um fantoche. O que Faye falou é verdade?

 - Sim. – respondeu Ezra com uma olhada feia para Faye.

Lyvlin apertou o nó que mantinha sua capa presa e se desapegou do pensamento de uma noite relaxante.

– Então me levem até essa Helea. Quero ver com meus próprios olhos.

Faye saltitou até seu lado e pegou sua mão, voltando a cabeça para Ezra e estirando a língua.

– Vê? Foi ela quem pediu.

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Notas finais do capítulo

Gente eu tou em brincando, esse foi o capitulo mais dificil de escrever ate agora. E no fim ficou tao curto que da vontade de rir. Depois de mil crises de nao saber mais como escrever, lamentacoes e dores fisicas por nao conseguir por para fora o que precisava ser contado estamos ai, firmes e nao tao fortes. Porque nao podemos deixar a frustracao vencer.

Mudanca de capa de maos dadas com nova (e ultima) fase dessa historia (ou pelo menos desse "livro"). O que ela vai trazer? O que ela nao vai trazer? Quem ela nao vai trazer? Tantas perguntas, tao poucos capitulos faltando.

Comentarios e criticas mais que apreciadas, ainda mais nesse que me quebrou ao meio. Mil beijos!



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