As Crônicas dos Três Reinos: Ciandail escrita por JojoKaestle


Capítulo 26
Café com o príncipe


Notas iniciais do capítulo

Depois de dois meses sem computador, la vamos nos de novo. Sorry, mas estava completamente fora do me alcance. Espero que gostem :-)



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“Durante o dia travamos guerra. Há mortes, dor e luto. De noite tentamos esquecer a matança com cerveja e danças ao redor das fogueiras. Minha dança favorita é o das chamas em seus olhos quando me olha através do ondular do fogo.”

Lyvlin nunca conhecera a mãe. Não em consciência, ao menos. Suas memórias de Layil tinham se esvaído há tempos, apagadas lentamente com o passar das tempestades de inverno. O que sabia dela era um quebra-cabeça cujas peças eram entregues pelas pessoas que a haviam tido em suas vidas. Todos haviam contribuído. Gilbert, Raoul, o rei, Casimir, Urobe e Alec... E agora Firdos. Havia construído uma imagem de sua mãe que a aproximava de uma deusa, uma heroína cuja história era tão imaculada que nada poderia fazer para sair de sua sombra. A revelação de seu antigo mestre fez seus ombros relaxarem.

– Parece bastante tranquila. – observou Firdos, estudando-a com olhos curiosos.

O que espera que faça, chore? Por um rei que nunca foi ou uma mãe que nunca esteve lá? Lyvlin puxou as pernas para cima da cama, cruzando-as e ignorando o tecido do vestido se retesando.

– O passar dos anos em um aposento deve mesmo dar uma noção errada do tempo. – retrucou – Se esquece de que não fui criada aqui, a família real significa tanto para mim quanto as dunas quentes de Rattra.

– Cuidado com suas palavras.

– Por que? Ninguém estima as palavras de um louco. – Lyvlin repetiu.

Firdos lhe sorriu.

– Não herdou apenas o rubro dos cabelos de Layil. – notou e levou aos lábios um cálice com água. Tomou um longo trago, como se estivesse morrendo de sede – Mas nem todos os Oskias são como nosso bondoso rei. Foi Darian quem a convenceu a vir aqui, não foi?

– Ele pode ter comentado algo sobre guardas embriagados e corredores vazios.

– Foi sempre um garotinho muito curioso. Conversamos uma vez, muitos anos atrás. Suponho que não tenha sido uma de suas conversas mais eloquentes, mas sabia que fora suficiente para fazer brotar uma pequena dúvida. E desde que aprendeu a andar perseguia o pai como um cachorrinho, tão ávido pela aprovação, por um elogio... Sabia que contaria toda palavra que gritei para o aposento vazio. Vi como seus pequenos olhos cinzentos brilhavam de interesse, não deixei que o percebesse, claro.

– E então o rei arranjou a sua mudança.

– E fixou a dúvida na cabeça de seu filho mais novo, sim. – Firdos parecia se divertir muito com aquilo. Lyvlin sentiu pena e desejou que fosse uma melhor companhia para aquele velho solitário – Diga-me, diga-me – ele se agitou, encarando-a – Ele ainda baixa a cabeça quando escuta a voz do pai?

Lyvlin tentou se recordar.

– Na única vez em que os vi trocarem palavras o príncipe não temeu expor suas opiniões, embora fosse cauteloso em parecer polido enquanto o fazia. – Lyvlin não o culpava. Havia algo nos olhos severos do rei que quase fechava sua garganta quando era chamada à sua presença.

Ao ouvi-la Firdos deu um pequeno sorriso encoberto pela sua barba branca. Mas Lyvlin havia visto. Talvez o velho tinha esperanças de que uma vez rei, Darian o libertaria de sua prisão. Era provável que aceitasse conversar e ouvisse tudo que havia para falar, mas isso em nada mudava a verdade. Firdos havia ajudado uma criminosa a deixar as terras do rei e era, portanto, um traidor. Denominação que também se aplicava a sua mãe.

Permitiu que Firdos tivesse seu momento de diversão sozinho, depois assumiu uma voz desinteressada e perguntou:

– Por que ela o matou?

– Eu não sei. – falou dando de ombros, como se não importasse – Para mim o que os ligava era profunda amizade e respeito, mesmo depois de Thomas e Layil se acertarem. Havia muitos rumores naquela época... Rumores de que Thomas e Coran partilhavam interesses além da maneira como o reino deveria ser regido. Para mim sempre foram palavras esperadas, afinal, Layil não era apenas uma mulher que havia ascendido para a corte e campo de batalha, mas também de origem muito pobre. E muitos nunca a perdoaram por isso. Veja, se incomodavam menos com suas palavras diretas que com as roupas que usava nas reuniões do pequeno conselho.

– Não sabia que sua influência tinha sido tão grande. – ou que tivesse passado de uma arma para qualquer pessoa. Não havia pensado sobre o assunto, talvez porque o amor de seus pais a queimavam com sua ausência.

– Ah Lyvlin, se tivesse me incomodado em contar às vezes em que ela foi convocada à tenda onde o príncipe e seus generais mais apreciados quebravam suas cabeças sobre mapas puídos teria perdido a conta depois de um ano. E costumava ser bom com números.

– Ela era uma heroína. – Lyvlin falou, apoiando as mãos nas pernas cruzadas e encarando Firdos. Mesmo que soubesse que o velho não ganharia nada mentindo para ela achava que qualquer indício de inverdade estaria estampado em seu rosto – E isso impediu que o reino soubesse a verdade sobre a morte de Coran.

Firdos anuiu.

– “Qual vantagem há no reino saber que sua mais poderosa e fiel serva considerou por bem dar cabo à vida do príncipe herdeiro?”. Valdrin falou ao rei enquanto a rainha sepultava seu primogênito. Fora a única vez em que concordei com algo que saiu de sua boca. Ou talvez não, teve que cuspir um dente muitos anos atrás. – a lembrança o fez perder a expressão séria, mas logo que percebeu o olhar de Lyvlin deu um suspiro cansado - Mas ele estava certo. Vassand ainda se recuperava do grande ataque poucos anos antes e a relação com Rattra estava por um fio. E você deve saber que Layil era ratriana e tinha bons e respeitados amigos dentro da família regente. Deixar que a verdade escapasse era um convite a especulações. Se a espada e o escudo do príncipe havia se voltado contra ele, por que o restante do reino deveria apoiá-lo? Ou apoiar o rei?

– Parece uma história um tanto quanto difícil de acreditar. As circunstâncias de seu desparecimento, o incêndio que matou meu pai. A morte do príncipe. – Lyvlin enumerou - Os integrantes da corte são estúpidos?

Os olhos velhos de Firdos brilharam divertidos.

– Talvez a maioria. O restante foi persuadido através de regalias e presentes a deixar o assunto descansar. Nem todos o fizeram, claro. Se o que escuto nos corredores é verdade, Casimir teve que ser tirado das vistas do rei e de Valdrin antes que fizesse barulho demais. Passou um tempo com amigos da sua mãe em Rattra, mas há alguns meses não escuto ninguém mencioná-lo.

– Ele está bem. – respondeu a garota em tom frio – Ainda que não seja muito agradável.

– Nunca se incomodou o suficiente para fingi-lo, é verdade. Sua mãe o adorava. Acho que tem mais em comum que percebe.

Lyvlin esticou as pernas e levantou-se da cama.

– Duvido muito. – respondeu, limpando a sujeira que suas botas tinham deixado no lençol – Desculpe, talvez devesse pedir um novo.

– Quando gritar pelo meu café da manhã, certamente. – Firdos disse, parecendo animado com a antecipação da performance – Você deve ter conhecido Alec?

A menção ao irmão fez Lyvlin parar. Tinha algumas palavras sobre Casimir na ponta da língua, mas a mudança na conversa fez com que morressem em sua boca.

– Ele parece decente. – conseguiu dizer depois de um tempo.

Firdos ignorou aquelas palavras e levou o cálice a boca.

– Eu quero que traga Darian aqui. – pediu e suas costas começaram a se arquear de novo, como se estivesse feito esforço demais e voltasse ao seu estado natural – E não quero que frustre o pensamento das pessoas sobre minha loucura. Especialmente seu irmão e Valdrin.

– Talvez Alec saiba mais sobre o que aconteceu.

– Alec pode ter nascido de Layil e Thomas, mas foi criado por Valdrin. Eu não o quero aqui.

– Eu também não fui criada por Layil. – o lembrou e suas palavras trouxeram silencio. Murmurou um desejo de boa noite e deixou a cela, tomando cuidado para não acordar Argos.

O guarda ainda roncava quando se esgueirou pela porta da cozinha. Um pequeno lanche de meia noite não cairia tão mal assim. Não depois do que descobrira.

–x-x

Um pudim de leite e cinco morangos depois Lyvlin se arrependia totalmente da decisão. Conseguira se arrastar para seu quarto e deixar-se cair na cama. O vestido a apertava de uma maneira que não conseguia respirar, por isso tentou tira-lo até perder a paciência e usar uma pequena adaga para se livrar do abraço sufocante do tecido. Desculpe Desmera, foi uma emergência. Ensaiou enquanto jogava os trapos na cadeira e se esticava. Sentia-se livre. Não tão livre quando se lembrou das palavras de Firdos. O que se fazia quando sua mãe matara o herdeiro ao trono e tudo fora abafado para favorecer o rei? Poderia ser o peso da comida ou a preguiça que sentia agora que estava envolvida em seu lençol, mas a opção mais tentadora consistia em nada. Coran estava morto, assim como sua mãe. Nada o consertaria. E talvez não houvesse nada para consertar.

–x-x

O dia seguinte foi de folga para os recrutas. Lyvlin imaginou que isso significava que estava livre de toda e qualquer tarefa, mas Bertie veio acordá-la nas primeiras horas da manhã. Levantou-se a contragosto e ainda esfregava os olhos enquanto tentava seguir o serviçal sem esbarrar nas paredes.

– Não é um dia de folga quando temos que acordar antes de todo o castelo. – ela reclamou reprimindo um bocejo – Não devem nem ao menos ter servido a comida ainda. Você caiu da cama?

Bertie não parou para que pudesse alcançá-lo, na verdade parecia mais apressado para se livrar da presença de Lyvlin que o normal.

– Você foi convocada. – limitou-se a dizer.

Lyvlin parou de se espreguiçar.

– Eu só estava com fome. E o pudim não valeu a pena mesmo, eu posso fazer outro se quiserem.

– Não tem nada a ver com comida.

– O conselho de novo? – estava disposta a começar de baixo. Se tivesse que encontrar o rei naquele estado poderia muito bem se jogar das escadas, seria um encontro menos doloroso.

Bertie balançou a cabeça. Seu rosto gentil cheio de espinhas estava inchado, indicando que não havia deixado a cama há muito tempo também.

– O príncipe quer vê-la.

– Esse não é o caminho para o castelo. – ela conseguiu determinar ao olhar para a baía Dourada mergulhada em neblina. O vento gelado mordia seu rosto e a fazia se arrepender por ter esquecido o casaco. Os dias começavam a ficar mais frios e as primeiras folhas caíam das arvores, lembrando a todos que nem em Ciandail o verão era eterno.

– Bem observado.

– Bertie você não tem permissão para ser rude comigo antes do café da manhã. Pensei que tínhamos resolvido essa questão. – Lyvlin cruzou os braços na tentativa de se manter aquecida.

– O príncipe está em meio ao seu treinamento matinal. Devo lembrá-la de que não pode pedir comida enquanto ele não terminar.

Lyvlin bufou e ignorou o tom divertido que Bertie assumira. Provavelmente vê-la sendo miserável era o que lhe dera forças para buscá-la para começar. E Darian não havia perdido seu tempo. Nem ao menos esperou o sol nascer direito. Lyvlin pensou com amargura. Chutou uma pedra para longe de seu caminho e sentiu o mau humor invadir cada centímetro de seu corpo.

– Ele não tem nada melhor para fazer antes do sol raiar?

Aparentemente não tinha.

Lyvlin descobriria depois que o príncipe dormia depois de todos e era a primeira pessoa a acordar de manhã. Que pudesse passar tão pouco tempo em sua cama e se manter de pé durante o dia era algo que jamais entenderia e que invejava um pouco.

Naquela manhã Darian treinava enquanto a noite fria deixara sua trilha no tapete úmido que cobria as pedras do pátio de treinamento. As gotas de agua também haviam se assentado na capa de Lyvlin. Os muros do monte do Rei não eram de grande serventia contra o vento que soprava em suas orelhas, fazendo com que puxasse a capa sobre a cabeça. Bertie fez uma pequena mesura e se pôs a caminho do castelo novamente. Provavelmente vai voltar para a cama. Pensou a garota olhando para o céu nublado. Talvez tivesse acordado duas horas antes do normal. Em um dia de folga. Reprimiu um gemido quando uma lufada jogou sua capa para trás. Talvez se terminasse logo com isso Darian a dispensaria.

O príncipe não havia notado sua aproximação. Estava na companhia de uma pequena comitiva, todos trajando cota de malha e armadura leve. Observavam do cercado de madeira que fazia um quadrado ao redor dos competidores, caso aquilo fosse um duelo. O que poderia muito bem ter sido o caso porque os participantes pareciam dar o seu melhor. Darian era um deles e quando Lyvlin repousou os braços na cerca molhada reconheceu Casimir. O herdeiro do trono de Vassand usava couro e uma cota de malha fina, que lhe dava liberdade de movimentação. Treinava com duas espadas ao mesmo tempo, algo que Lyvlin não havia visto antes. E não parecia fazer muito sentido até ver a velocidade que Darian punha em seus golpes. Ouvia as espadas colidindo no silencio das primeiras horas da manhã, mas não via o encontro entre as armas. E então reconheceu os passos de Mehalia da noite anterior.

– Estilo ratriano. – explicou um homem corpulento ao seu lado. Seu nome era John Crass, mas muitos o chamavam de John Purulento por causa das marcas que uma doença na infância deixara em seu rosto. Tinha a força de dois cavalos e o amor pelas palavras de duas vizinhas fofoqueiras – Os anos em Rattra fizeram bem ao príncipe. Acho que não são capazes de limpar a bunda sem dançar. Mas tem sua utilidade.

E como. Pensou Lyvlin observando o príncipe fazer uma finta para o lado e intercalar o movimento com um golpe na diagonal. Seu corpo parecia fluir livremente, enganar, plantar iscas e investir em cada movimento como se tivesse sido cuidadosamente planejado. E o fazia parecer fácil, seus pés leves desenhavam fintas e círculos tão em harmonia com o resto do seu corpo que parecia fazer aquilo desde que aprendera a andar.

Casimir, em compensação, era força bruta aplicada com uma precisão que fez Lyvlin perder o folego algumas vezes. Sabia que não mataria o príncipe, mas parecia seriamente determinado a tentar. Sua capa negra deveria lhe impor alguns problemas, mas enquanto se movimentava fazia-a parecer parte de si. Como asas de um dragão furioso. A raiva de seus golpes não estava presente em sua expressão, os cabelos negros se soltavam da tira de couro que usava para mantê-los longe do rosto. Se isso o incomodava não mostrava indícios. Deu um passo para trás e quando sua espada disparava de encontro ao rosto de Darian Lyvlin percebeu.

– Ele está usando magia! – sussurrou com os dedos cravados na madeira úmida.

– Claro que está. – retrucou John Purulento, reprimindo um bocejo – O que você espera de um mago?

Lyvlin sentia as bochechas arderem.

– Pensei que fosse proibido. – estreitou os olhos e viu atentamente. Casimir apenas empunhava uma espada, mas a movimentação de Darian estava errada. Bloqueava o ar e desviava de golpes que ainda não haviam vindo. Então se lembrou de como Raoul lhe contara que Casimir era capaz de fazer pessoas verem coisas que não existiam. Ou esconder o que era real. Como Darian parecia levar a sério os golpes invisíveis, imaginou que Casimir estivesse usando sua magia para esconder uma das laminas – Não parece justo.

– Quando encontrar o inimigo pela primeira vez pode tentar essa frase, mas duvido que isso o impeça de arrancar sua cabeça. – o soldado deu uma risada contida, como se a imagem o divertisse - Precisamos estar prontos para qualquer coisa.

O barulho metálico de espadas se encontrando o silenciou. Casimir havia posto Darian no chão e o príncipe tinha sua segunda espada jogada para longe quando Lyvlin se deu conta do movimento. O mago embainhou sua espada e lhe estendeu a mão.

– Foi formidável. – arfou Darian, aceitando a ajuda para se levantar – Mas parece ter pego muito leve, quanto tempo? Talvez cinco minutos?

– Quatro e meio. – retrucou o mago, deslizando a lamina que escondera para o interior de uma segunda bainha – E fiz o meu melhor.

Darian riu e lhe deu uma tapa nos ombros.

– Não, meu amigo. Se tivesse dado seu melhor eu estaria morto no primeiro golpe.

Casimir deu um pequeno sorriso.

– Talvez.

O sorriso sumiu de seus lábios assim que pôs os olhos em Lyvlin.

John Purulento ergueu os braços maciços em jubilo.

– Vossa alteza! – gritou mesmo que Darian estivesse a menos de cinco passos – Está melhorando a cada dia, em alguns anos vai ser capaz de me enfrentar.

– Minha cabeça está muito feliz em estar ligada o meu pescoço, John. Eu não sonharia tao alto. – entregou as espadas para o homem que se despediu com uma risada estrondosa. O príncipe virou-se para Lyvlin e sua expressão aliviou – Ah, Lyvlin. Bom dia. – tirou as luvas para apertar sua mão - Espero que não tenha esperado demais, Casimir costuma ser mais objetivo.

– Está se subestimando.

– Estou sendo realista. Agora, eu tenho que me livrar da cota de malha e por algo mais apresentável. – olhou para Lyvlin - Prometo compensar com o café da manhã.

Lyvlin anuiu, sentindo o estomago se manifestar. Talvez Casimir também tivesse percebido, porque quando o príncipe os deixou um sorriso se desenhava em seu rosto.

– O que é tão engraçado?

– Seu cabelo. – respondeu Casimir, gesticulando ao redor da cabeça – Ele está mais livre que o normal.

– Você também não está nada arrumado. – Lyvlin mentiu. O esforço do treinamento havia deixado suas bochechas rosadas e o cabelo se desprendendo do rabo de cavalo lhe dava um ar desalinhado que combinava mais com ele que o estilo usual.

Casimir deu de ombros.

– Eu não vou tomar café da manhã com o príncipe. – e se tinha algum interesse em saber o motivo, não transparecia.

– Imaginei que o príncipe sempre estivesse na companhia de sua guarda pessoal.

– Parte dela. – corrigiu Casimir. O pátio começava a se esvaziar, ao mesmo tempo em que os sons de um castelo acordando o inundava – Tenho que me voltar ao meu próprio treinamento. Raoul estará acompanhando-os.

– Deixe-me adivinhar – Lyvlin pediu, levantando o indicador - ele está meditando.

Casimir anuiu.

– E hoje é o dia em que Everett o acompanha na meditação matinal. Não espere encontrá-lo em seu melhor estado.

O que se mostrou verdade quando o encontraram nos aposentos de Darian algum tempo depois. Raoul os esperava encostado em um dos pilares que sustentavam o arco que se abria para a baía Dourada e quando se virou para cumprimentá-los sua expressão estava fechada.

Lyvlin esperava que o café da manhã fosse servido no salão principal da fortaleza, mas naturalmente não seria o local ideal para se ter a conversa que Darian pretendia. Os aposentos do príncipe eram amplos e ventilados, o chão era de madeira nobre e as paredes grandes blocos de arenito branco decorados com arabescos e quadros. Uma cortina de tecido fino separava a parte reservada para dormir do aposento onde uma espécie de escritório se confundia com um ateliê. Lyvlin inspecionou um dos quadros que repousava em um cavalete aguardando o momento de ser terminado. Mostrava uma paisagem desconhecida, em que dunas se mesclavam com grandes arvores cujas folhas largas se aglomeravam apenas no topo.

– Os montes arenosos de Rattra. – explicou Darian – As paisagens ratrianas são muito ricas, os meus rascunhos desengonçados dificilmente lhes fazem justiça. Agora venha, tenho algo que requer sua atenção.

O ar salgado a envolveu assim que pôs os pés na varanda. Um café da manhã completo os aguardava na mesa voltada para a baía. Lyvlin pôs os braços sobre a amurada e observou as embarcações que começavam a acordar como imensas aves aquáticas. Olhou para baixo e viu que uma trilha serpenteava entre as rochas que cortavam caminho até a agua. Era íngreme e coberta de musgos e quando Darian mencionou que costumava nadar assim que acordava a garota o imaginou escorregando e rolando montanha abaixo. A imagem a fez rir até seu estomago se manifestar mais alto que antes.

– Espero que não se incomode com o vento. Eu gosto da liberdade de não ter nada sobre minha cabeça, mas se a incomoda podemos levar as coisas para dentro. – falou Darian quando Lyvlin colocava um pão inteiro na boca. O príncipe usava uma túnica purpura com pequenas perolas negras encrustadas nas mangas e colarinho. O brasão de Ciandail estava em um toquem preso na altura do peito. A garota balançou a cabeça, imaginando que quem deveria estar com frio era ele. Seus cabelos negros ainda estavam molhados do banho.

Fez o erro de olhar de soslaio para Raoul, que claramente não aprovava suas maneiras na mesa. Mas como Darian não estava incomodado, não tinha muita razão para reprová-la. O que não o impediria de lhe dar um sermão mais tarde.

– Onde está Everett? – a garota quis saber, mais pela reação de Raoul que pela pergunta em si.

O jovem fez um gesto vago com a mão.

– Causando problemas para outra pessoa, se eu tiver sorte.

Darian estendeu o prato com carnes para Lyvlin.

– Não fale assim. Imagino como deve ter se esforçado hoje.

Assim que pôs mais carne em seu prato Lyvlin sentiu um peso em sua perna. Olhou para baixo e encarou um dos cães do príncipe que a observava com a cabeça pousada em seu colo. Sabia que se tratava de Nanga por causa do olho machucado. “Depois” sussurrou para a cadela, que lambeu o focinho pacientemente. Raoul cortava uma maçã, Lyvlin percebeu que mal havia triscado na comida. Engoliu o pedaço de peito de faisão que mastigava e se serviu de mais vinho.

– Temo que Everett tenha uma colônia de formigas passeando em seu traseiro. – Raoul tomava cuidado para não sujar a sua roupa branca tão sóbria quanto ele – Fomos expulsos do templo depois que derrubou a estátua de Rae – Uma das filhas de Sydril – adicionou seriamente para Lyvlin.

O príncipe levou sua taça até os lábios e a garota viu que o fizera para esconder o sorriso. Colocou o máximo que podia de mingau em sua colher e depois de engolir tudo achou que tinha energia suficiente para conversar.

– Firdos não é louco. – anunciou, ganhando a atenção dos dois no mesmo momento. Encarou os olhos cinzentos de Darian e acrescentou – Ele quer vê-lo.

Por alguns segundos ninguém falou nada. As gaivotas sobrevoavam suas cabeças, esperançosas de ter seu próprio banquete uma vez que haviam terminado.

– Eu te disse. – falou o príncipe para Raoul e voltou sua atenção para a garota – O que mais ele falou?

– Que queria vê-lo. – repetiu Lyvlin. Que o velho mago resolvesse o que o príncipe e Raoul podiam ou não saber.

Raoul recostou-se em sua cadeira, dobrando os braços.

– Não vamos conseguir isso nos próximos dias. – ponderou – Com a academia cheia e a guarda completa.

– Obrigado por nos contar Lyvlin. – disse Darian – Assim que tivermos um novo plano podemos lhe avisar. Se você quiser.

– Não é como se tivesse coisas melhores para fazer de qualquer forma. – retrucou a garota fazendo Raoul erguer as sobrancelhas – Meu treinamento com magia está suspenso e as aulas de combate começam a ficar monótonas.

– Começam? – o príncipe a estudou com sobrancelhas levantadas - Raoul me disse que você é muito boa. Talvez devesse pensar em treinar conosco.

– Não duvido que conseguiria acompanhar depois de um tempo – avaliou Raoul, olhando para Lyvlin – Mas ainda é uma novata. A academia não permitiria.

– Dardan também não. – Lyvlin pensou no mestre de armas e um calafrio percorreu sua espinha. Se a pegasse treinando com a guarda real a arrastaria de volta pelas orelhas.

– Bem, ainda sobram os dias de folga. Ninguém pode lhe dizer o que fazer com eles.

– Não. Aparentemente só o príncipe. – concordou, levantando-se – Obrigada pela comida. – disse com sinceridade suficiente para Raoul segurar a censura que escapava de sua boca.

A expressão de Darian se recuperou em um sorriso.

– Fique à vontade. Se quiser, imagino que Everett esteja treinando nos pátios. Ele mencionou como queria conhecê-la e testar suas habilidades de combate. – quando percebeu o olhar de Lyvlin acrescentou – Imagino que irá subestimá-la, por favor seja gentil.

– Mais tarde quero você na biblioteca. – pediu Raoul – Urobe quer que faça uma pesquisa sobre os linairs de Vaus para ajudá-la a compreender sua condição.

– Minha condição é não ter folga em meu dia livre. – respondeu Lyvlin, deixando um pedaço de linguiça cair no chão – Agora, se me dão licença. Vou fugir antes de lembrarem de mais uma coisa que preciso fazer.

– Espero que tenha um bom dia mesmo assim. – desejou Darian e não soube dizer se estava brincando ou não.

– Tem certeza que deixá-la com Everett é uma boa ideia? – comentava Raoul quando Lyvlin abria a porta – Eles vão acabar matando alguém. Ou, pior, danificando propriedade real.

A risada do príncipe ainda podia ser escutada quando a pesada porta de carvalho se fechou.

–x-x-x

Ao menos poderia se alentar sabendo que nenhum deles teria um dia de folga. O príncipe teria conselhos para atender e Raoul, como seu braço direito em tudo que envolvia opiniões e planos, não deixaria seu lado. Lyvlin voltou aos pátios de treinamento imaginando quando Raoul havia sido escolhido para fazer parte da guarda pessoal do herdeiro. Em Ciandail essa posição envolvia lealdade cega, uma vez que aqueles que eram escolhidos para proteger o futuro governante partilhavam seu destino. Se algum rei era deposto, sua guarda pessoal era exilada ou se juntava a visita sem volta ao cadafalso. Algumas centenas de anos atrás Valerie Ardin planejara o assassinato da mãe para assumir o poder e sua guarda teve que ser dizimada até que conseguissem colocar as mãos na princesa. Seu irmão gêmeo, Cailan, havia se separado do exército real em meio a combates no norte. Sua guarda lhe deu todas as provisões e o manteve vivo, tão bem que o príncipe fora o único a voltar para Ciandail.

Enquanto passava pelos largos corredores da fortaleza Lyvlin tentou encontrar o motivo de tamanha devoção nos quadros que ilustravam membros das famílias reais e suas pessoas de confiança. Se o que sabia era certo, a linhagem dos reis e rainhas crescia junto com aqueles que a protegeriam com sua vida. Todo príncipe e princesa tinha a sua por direito. Seus olhos se prenderam em uma pintura cuja guarda pessoal era diferente de todas as outras. Nas pinturas anteriores o sexo do integrante da realeza determinava o de sua guarda pessoal. O que significava que Darian tinha apenas homens em sua guarda, enquanto Nasreen, sua irmã, era protegida por um grupo de quatro mulheres. Mas aquele grupo era diferente. Lyvlin parou diante do quadro imenso e sentiu um frio na barriga ao reconhecer a figura de pé atrás do príncipe. Com armadura completa e a capa purpura caindo aos ombros sua mãe a encarava desafiante.

Lyvlin sabia que era ela no momento em que se aproximou. O largo corredor de pedras estava vazio, o que permitiu que ficassem a sós. A Layil feita de pinceladas vivas era bonita, sua posição e expressão séria mostrava um poder contido que apenas esperava o sinal para ser liberado. Tente tocá–lo. Parecia desafiar quem olhava para a tela. Tente tocá–lo e eu o dilacero. Coran era o contrário que esperava de um filho de Osric. Tinha traços retos, mas mais suaves que o pai e o irmão mais novo. Sorria com os olhos escuros e os lábios, o que entregava que havia puxado mais a rainha que ao pai. Seus cabelos eram claros como os de sua mãe e seu porte mais esguio que largo. A coroa pousava em seus cachos como se tivesse nascido com ele. Lyvlin sabia que essa era a intenção de todas aquelas pinturas, mas olhando para a imagem de Coran não pode evitar de pensar que teria sido um bom rei. Toda sua comitiva parecia regia e forte e quando conseguiu desprender os olhos do rei que nunca fora correu os olhos pelos semblantes dos demais. Talvez um deles seja meu pai. Ponderou e se envergonhou por não fazer ideia de quem seria. Encarou os homens que flanqueavam Layil, mas nenhum dos dois se aproximava do que ela imaginava que seu pai havia sido. Talvez apenas o imaginara errado. A tela inteira transbordava essa sensação. Dos cabelos da mãe que tanto se pareciam com os dela, do olhar de Coran quem confiava aquelas pessoas sua vida até o semblante vazio dos demais integrantes. Algo estava terrivelmente errado. E o final daquela história ela sabia muito bem.

Quando o olhar de Layil tornou-se pesado demais Lyvlin lhe deu as costas. Sua história acabou. Tentou se lembrar enquanto seus pés a distanciavam da tela, mas não da sensação de estar sendo observada. Sua história acabou e não me diz respeito. Mas dizia. E pegou-se querendo descobrir o que levara a mãe a matar quem havia jurado proteger com sua vida. Entendia a curiosidade de Darian e Raoul e não conseguia se livrar da sensação de que havia mais coisas envolvidas, coisas que nem Firdos sabia.

Seu mau humor em relação ao dia de folga sabotado consistia principalmente no fato de não poder ver Ezra como havia secretamente planejado. Mas agora que passaria o dia inteiro no Monte do Rei, talvez conseguisse encontrar o irmão e lhe fazer algumas perguntas. E se trombasse com Lamar poderia lhe arrancar um olho. Possibilidades não faltavam. Quando alcançou o pátio de treinamento decidiu que aquele seria um dia bom.

Meia hora depois estava coberta de hematomas e levantando as mãos em rendição.

Everett deu uma gargalhada e a levantou com um puxão que quase deslocou seu braço. O filho de lorde Harlas tinha a força de um pequeno touro e a gentileza de um cão de companhia.

– Essa foi realmente boa! – anunciou para os membros da guarda real que assistiam, passando o braço ao redor dos ombros de Lyvlin – Estou impressionado!

Lyvlin deu um pequeno sorriso, ciente de que a admiração se devia mais pela persistência de levantar do que pelas suas habilidades. Everett era um monte de músculos treinado desde a infância e diferente do restante dos membros da guarda real se adaptava perfeitamente a qualquer arma que usava, tirando o melhor do que quer que empunhasse. O que infelizmente significava que queria testar Lyvlin em todas. Havia conseguido evitar morrer quando fora a vez das lanças, o que rendeu alguns urros de surpresa dos guardas encostados no cercado. Quando passaram para espada e escudo conseguiu se sair um pouco melhor, abrindo algumas brechas na defesa do jovem. Mas sem encostar em qualquer parte de seu corpo. Usava uma camisa branca e calças de montaria enquanto Lyvlin havia recebido uma cota de malha que lhe era grande demais, mas que ajudara a manter sua integridade física. Quando Everett levantou sugestivamente um martelo de guerra sabia que era hora de parar.

– Ainda estou começando. – ela arfou, dobrando as costas para respirar melhor – Sempre treina assim?

Everett deixou a arma pesada cair no chão e olhou para seus camaradas.

– Faz bem para meu corpo, depois de uma manhã assim consigo ficar parado para as lições da tarde.

– Você fica parado porque usa as lições dos mestres como cantiga de ninar! – gritou uma mulher com cabelo curto e uma cicatriz percorrendo seu rosto, fazendo o grupo cair em risadas.

A pequena trança que caia em sua nuca balançou quando Everett riu.

– Não é como se ensinassem algo útil de qualquer forma.

– Ensinam a ler mapas! – veio o urro do cercado.

– Eu tenho que deixar algo para Raoul fazer no final do dia – anunciou e, inclinando-se para Lyvlin, acrescentou – Não conte a ele. E sou muito bom em ler mapas, só não os com muitos nomes.

– O príncipe está em boas mãos. – Lyvlin disse, sentindo a leveza que acompanhava um treinamento puxado. Mais tarde viria a dor, mas apenas mais tarde.

– Não seja tão formal Lyvlin. Já deve saber que somos apenas um grupo de idiotas com algum talento tentando manter o traseiro de Darian razoavelmente inteiro. Tudo isso de guarda pessoal? Apenas um nome bonito para os reinos admirarem. No final somos um grupo de amigos qualquer ficando embriagado em uma taverna.

– Eu não imaginava que Raoul frequentasse tavernas. – guardou aquilo como nota mental para quando reclamasse de suas maneiras. Ver Raoul bêbado tornou-se um dos motivos de sua existência a partir daquele momento.

Everett a encarou, parando de arrumar as armas que haviam usado.

– Quer que te mostre a lista com suas favoritas algum dia?

Lyvlin estava prestes a anuir quando seus olhos caíram sobre os recém chegados ao pátio.

– Sabe no que sou boa? – quis saber, dando meia-volta e levantando um arco que jazia no chão. Era bruto e sua linha um pouco leve demais, mas bastaria – Arquearia.

– Não sou excepcional com arcos, gosto de deixar as outras pessoas se sentirem uteis nas batalhas. Vai precisar disto. – Everett lhe entregou uma flecha. Penas de ganso, avaliou a garota, recalculando a trajetória que a flecha faria.

Pôs a flecha no arco e retesou a linha, trazendo-a até a orelha direita. Sentiu a tensão em seu braço e seus lábios se curvaram ligeiramente para cima.

– Está apontando para o lugar errado. – avisou Everett, achando divertido – Os alvos são para lá.

– Se engana Everett – Lyvlin devolveu, mirando com cuidado – Estou mirando exatamente no lugar certo.

Estava ciente que as pessoas a encaravam, mas nenhuma delas parecia alarmada o suficiente para impedi-la. Respirou fundo duas vezes, contou os passos do alvo e soltou a corda no segundo exato.

A flecha disparou sibilando, cortando o ar de encontro ao grupo que conversava animadamente no lado oposto do pátio. No meio dele, Lamar batia nas costas de um amigo enquanto dava seu último sorriso.


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Notas finais do capítulo

Oh dear.
(pretendo voltar a programacao de postar semana sim, semana nao, torcam por mim!)
Comentarios, criticas (construtivas) me fazem viver. Seja gentil comigo pls.
Joana



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