As Crônicas dos Três Reinos: Ciandail escrita por JojoKaestle


Capítulo 23
Herdeiros


Notas iniciais do capítulo

Here we go. Em minha defesa (por causa do atraso) posso dizer que realmente terminei o capítulo ontem, mas revisei e dei os últimos retoques hoje. Espero que possa me redimir semana que vem e que esse capítulo seja metade divertido de se ler quanto foi de ser escrito. Boa leitura!



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“O rei nos atiça como cães através da fresta que se abre nas montanhas de Tureis. Conseguimos ver as terras inóspitas de Kerdis, o inimigo se amontoando na passagem estreita como peixes tentando se livrar da rede. Seu número não significa nada aqui, sabem disso tanto quanto nós. E quando a magia rasga o ar e deixa uma trilha de corpos para trás me pergunto qual o sentido naquele massacre.”

As badaladas soaram de muito perto. A princípio achou que fosse efeito de sua cabeça que girava perigosamente, mas quando abriu o olho bom viu que a bota de Lamar ainda a encarava e quando ergueu a cabeça no meio de gemidos viu que o rapaz já não olhava para ela. Estava virado encarando o que quer que fosse. Depois seus olhos maliciosos encontraram os de Lyvlin.

- Ora, parece que você é mesmo uma garota de sorte. – disse e com um impulso fingiu que a chutaria. Riu diante de sua reação, cuspiu nela e se aproximou o suficiente para que sentisse sua baforada quente no rosto – Se falar qualquer coisa quebro seu pescoço.

Foram as últimas palavras que escaparam de sua boca antes de se afastar. Lyvlin nada entendeu, apenas ouviu movimentação do lado de fora do estábulo e pessoas gritando. Quando ouviu o nome um lampejo de entendimento cortou sua dor. O príncipe. Darian estava voltando para casa.

Seu corpo era uma massa de dor sangrenta e pulsante. Mas nada pulsava mais do que sua cabeça. Sentiu as lágrimas quentes deixarem seu rosto e sentiu ódio pela primeira vez na vida. Quis gritar de dor e raiva, pelo seu orgulho e corpo quebrados, mas se conteve porque não queria que a vissem naquela situação deplorável. Então se apegou ao ódio. Faria Lamar pagar muito caro pela brincadeira. O faria engolir cada palavra de insulto, cada xingamento e então o deixaria se afogar no próprio sangue. O pensamento lhe trouxe algum conforto, ainda que não a fizesse se sentir melhor.

Tentou levantar, mas as mãos estavam roxas. Os dedos devem estar todos quebrados. Pensou e a frustração ocupou o lugar do ódio. Como treinaria neste estado?  O máximo que podia fazer era gritar por ajuda ou esperar que a achassem. Nenhuma das duas coisas a agradou, então permaneceu algum tempo deitada na poça de seu próprio sangue. Talvez morresse se ninguém a encontrasse. E então não poderia castigar Lamar. Abriu os olhos doloridos e pensava em tentar encher os pulmões para gritar, mas então viu a figura se erguendo diante de si.

Era pequena. A garota tinha cabelos escuros compridos que se cacheavam sobre os ombros. Vestia uma túnica sem qualquer adornamento, mas seu olhar e postura indicavam alguém de nascimento elevado.

- Ajuda. – conseguiu formar a palavra entre os lábios cortados.

Um cavalo relinchou nervosamente quando a garota se abaixou ao seu lado. Sentou sobre as pernas e olhou a extensão de seus ferimentos. Seu semblante calmo não mostrava qualquer emoção. Nem quando seus olhos azuis chegaram ao seu rosto que deveria parecer uma mistura carnosa coberta de hematomas e cortes. A olhou de uma maneira que a assustou mais que a surra que levara. Era como se removesse qualquer barreira, qualquer proteção que poderia ter ao seu redor e a encarasse pelo que ela era. Pela criança assustada que era. Pela mulher machucada desprovida de qualquer orgulho, pela guerreira que fora derrotada de maneira traiçoeira. Os grandes olhos eram esferas amedrontadoras e serenas, quando seu braço fino veio em direção à sua bochecha Lyvlin tentou se afastar, gemendo como um bebê.

- Por favor. – pediu – Você pode... – fez uma careta quando sentiu seu toque frio - Chamar alguém...

A garota balançou a cabeça para os lados. No lugar de se levantar e sair cobriu seu rosto com as suas mãos pequenas, fechando seus olhos. Lyvlin sentiu as palmas das mãos esquentarem debaixo de seu toque. Ficaram tão quentes que achou que a queimaria por completo, tentou gritar, mas selavam sua boca. Não conseguiu respirar e tentou se livrar do aperto. Conseguiu apenas levar os dedos tortos ao cabelo da garota. E então o calor sumira. As mãos o seguiram pouco depois. Quando abriu os olhos percebeu que já não estavam mais inchados. Encarou a garota que agora se voltava aos ferimentos que cobriam seus ombros e tronco. Mas quando quis tocar o rosto ela a impediu, empurrando seus braços para baixo com firmeza. Balançou a cabeça em negação mais uma vez e se concentrou no trabalho.

Não que parecesse estar enfrentando alguma dificuldade. Curava cada pedaço do seu corpo com a mesma naturalidade com que se costura uma veste rasgada. Emendava sua pele e fechava cortes que levariam semanas para cicatrizarem por completo de forma natural. Logo Lyvlin aprendeu que ossos eram a pior parte. Ao contrário dos outros ferimentos nos quais sentira apenas o calor e um leve comichão uma vez que o trabalho fora feito, com ossos sentia uma dor tremenda até que estivesse no devido lugar novamente. Fazia crescer os pedaços que haviam sido esfarelados ou partidos e um estalido leve era emitido quando dois ou mais pedaços se reencontravam. Tentou não gritar quando envolveu sua mão quebrada entre as suas e observou seu rosto enquanto fazia uma das magias mais difíceis que se conhecia. Não havia traço algum de exaustão, na verdade parecia quase entediada. Imaginou se qualquer um de seus mentores seria capaz de realizar a mesma tarefa com tão pouco caso. Provavelmente não. Afinal, destruir era muito mais fácil que construir, Urobe lhe dissera. Quase todos os magos conseguiam fazer magias de ataque ou defesa, mas a cura envolvia remendar corpos e havia tão poucas pessoas capazes de dominar a arte que nem todos os batalhões contavam com alguém possuidor do dom. Nunca vira aquela garota antes. Deveria ter doze anos, talvez ainda menos. Mas a expressão era de um adulto que já vira dezenas de anos passarem diante de seus olhos.

- Qual seu nome? - quis saber Lyvlin.

Em resposta a garota largou sua mão e partiu para a que restava. Lyvlin a abriu e fechou os dedos consertados, sentindo todos em perfeito estado.

Logo ficou claro que a desconhecida não gostava muito de falar. Ou talvez não o soubesse, pensou Lyvlin quando terminara todo o trabalho.

- Obrigada. – murmurou mesmo assim – Acho que terei alguns problemas com Dardan agora. Acabou curando ferimentos antigos que ainda não tinham cicatrizado.

Em resposta a garota deu de ombros e se levantou.

- Não. – Lyvlin segurou sua mão ao se erguer. Era realmente pequena. Mal atingia seus ombros – Estou muito agradecida. Precisaria de dias na cama apenas para começar com o processo de cura.

Diante disso um pequeno sorriso brincou em seus lábios, mas logo se desfez. Segurou firme a mão de Lyvlin que envolvia a dela e a puxou para fora do estábulo.

O pátio da cidadela estava tomado por um caos festivo. Pajens, cavaleiros, nobres e serviçais. Todos eles corriam de um lado para outro atrás de últimos arranjos, se certificavam que estavam impecáveis, cada um ao seu estilo, e se sentiam finalmente livres dos dias sombrios. Lyvlin viu uma liteira ser carregada pelos guardas tonsurados de Rattra. Mehalia certamente não perderia a grande chegada do exército e observaria a passagem da tropa de um lugar privilegiado. A curiosidade tomou cada centímetro de seu corpo. Também queria ver a chegada do príncipe do qual tantas coisas ouvira. Coisas maravilhosas que pareciam se encaixar mais em uma figura heroica imaginária que em uma pessoa de verdade ela pensara desde o início. Ver se Darian Oskias fazia justiça ao nome que o presidia tinha se tornado um dos momentos mais aguardados pela garota desde que chegara a Beltring. Em Evion não poderia se importar menos, mas agora as coisas haviam mudado. Agora se sentia como parte do reino de verdade.

Um reino que parecia se concentrar em sua totalidade no Monte do Rei a julgar pela quantidade de pessoas que jorravam pela grande ponte levadiça. Eram em sua maioria pessoas comuns armadas com ramos de flores e cestos de pétalas e gritos de júbilo entoados pelas gargantas. Pensava que talvez subir ao bastião da torre do portão fosse uma boa ideia, porque poderia observar todos passando debaixo da muralha quando a garota intensificou o aperto em sua mão.

- Tem alguma ideia melhor? - perguntou Lyvlin e quando a menina assentiu murmurou – Então mostre o caminho.

E realmente mostrou. Ou melhor, a arrastou atrás de si enquanto se espremia pela multidão. Lyvlin teve que se desculpar algumas vezes com as pessoas nas quais esbarrava e ouviu um xingamento quando quase derrubou uma senhora que ostentava um penteado exótico.

- O príncipe está vindo! – entoavam diversas vozes em união, começando a irritar a garota. Imaginou se Darian não se sentia uma espécie de atração. E se gostava disso.

Diminuiu o passo quando percebeu que a garota a puxava para a Fortaleza do Rei. A menina virou-se ao sentir a resistência e a olhou em dúvida.

- Tem certeza que podemos entrar aí? - apenas fora permitida entrar poucas vezes desde que chegara à capital. Algumas vezes para ver o rei, uma vez para entregar uma mensagem ao Touro mandado pelo conselho de magia. Foram visitas rápidas e que ela não quis prolongar por sentir a hostilidade emanando de cada pedra. De cada fresta.

Mas a garota não parecia se importar. Anuiu e continuou puxando até Lyvlin desistir. Subiram as escadarias que levavam à enorme construção de pedra branca. Lyvlin estava pronta para receber um grito dos guardas no portão, mas estes apenas fizeram uma pequena mesura para a garota que a guiava e fingiram que não viram quem ela arrastava atrás de si. Lyvlin ergueu uma sobrancelha em espanto, mas não pôde se dar o luxo de parar para obervar qualquer coisa que fosse porque a garota desconhecida tinha pressa. Muita pressa.

Correram ao longo de corredores que pareciam todos iguais para ela e passaram diante de vários salões vastos, dobraram para a direita em algum momento e então quase tropeçaram escadas acima. Mais alguns corredores frios de pedra depois e a garota quase arrombou uma porta de madeira que voou para dentro, revelando um aposento simples. Havia uma pequena cama, uma mesa com alguns escritos, pote de tinta e pena e uma estante velha de livros contra uma das paredes. Mas nada disso chamou sua atenção porque a garota passou zunindo por tudo isso em direção à janela que quando Lyvlin a alcançou viu dar para o pátio. Viu todas aquelas cabeças talvez uma dezena de metros abaixo e soltou uma risada. Era como assistir a uma justa nos lugares mais privilegiados. Não que já tivera a chance, mas era assim que imaginava. Pessoas se acotovelando por espaço e um lugar amplo e confortável em comparação, onde se podia esticar as pernas e os braços sem bater no nariz de ninguém. Deu um amplo sorriso para a garota e apoiou os braços sobre o parapeito da grande janela. Era tão ampla que tinha espaço mais que suficiente para ambas olharem através dela sem problema algum. O barulho lá embaixo tornava-se cada vez maior com a proximidade do príncipe. Lyvlin manteve um olhar sobre as escadarias porque eram através delas, imaginava, que o rei e sua rainha passariam para cumprimentar o filho. Finalmente um grupo de guardas surgiu e tentou organizar a massa de pessoas, abrindo um amplo corredor entre elas e tentando mantê-lo mesmo com a inquietação que se instaurava. Pais subiam seus filhos para os ombros e todos mantinham as cabeças erguidas em direção ao portão.

E então a rainha e sua corte deixaram a fortaleza. Foi a primeira vez em que viu a senhora Aiyanna. A primeira coisa que lhe chamou atenção foi a idade. A rainha era alguns bons anos mais jovem que o rei Osric e nenhuma mecha de grisalho estava presente em seus cabelos louros. Era de constituição delicada e ombros estreitos. O roxo da bandeira de Vassand estava em seu vestido de seda e veludo, que brilhava a luz do sol com aplicações de pedras preciosas e pérolas. Uma fina tiara de ouro coroava sua cabeça e havia muitas outras mulheres que a acompanhavam que estavam vestidas com mais riqueza e pompa. Mas Lyvlin não duvidara um segundo de que aquela era a senhora de Vassand que deixara Lyle quando garotinha para selar uma aliança tantos anos atrás. Seu rosto estava iluminado como o próprio céu sem nuvens e Lyvlin pôde ver que retorcia os dedos no colo e às vezes levava-os aos olhos. Os cascos de um cavalo ecoaram sobre o pátio e seu cavaleiro saltou do animal diante da escadaria, saltou os degraus e murmurou algo aos ouvidos da rainha. Seu sorriso se alargou e trocou algumas palavras com o arauto antes de deixá-lo gritar o anúncio para toda a plateia.

- O príncipe está chegando! – berrou para o pátio que caíra em silêncio.

E então seus ouvidos explodiram. As centenas de vozes tornaram-se uma quando os primeiros estandartes surgiram na muralha. Lyvlin sentiu a garota ao seu lado mudar o peso de um pé para outro. Então não é totalmente imune a emoções. Constatou com satisfação e acompanhou o seu olhar ansioso até o grande portão do Monte do Rei.

Demorou alguns momentos para que visse algo realmente interessante. Os estandartes balançavam ao sabor da brisa fresca que vinha da baía, fazendo a imagem do ser mitológico Liffedas tremular no fundo púrpura. Era uma mistura de um lobo e dragão, tendo asas que pareciam realmente se mexer com o dançar do vento sobre o tecido. Os soldados que erguiam os estandartes trajavam armadura completa, a viseira dos elmos erguidos para poderem ver parte da festa que se desdobrava com sua chegada. Logo depois deles vinha uma pequena comitiva da guarda real, usando capas roxas bordadas com o símbolo orgulhoso de Vassand. Eram cavaleiros e magos, coisa que Lyvlin notou por causa das roupas que usavam. Os magos usavam túnicas ou calças com gibões trabalhados, armaduras leves e capas. Não sabia que um mago poderia se tornar membro da guarda pessoal da família real. Alguns membros da comitiva montavam cavalos de guerra cheios de orgulho e força. Eram estes os importantes, ocorreu a Lyvlin enquanto passavam debaixo da janela.

Foi naquele momento que viu Casimir. Parecia apático ao júbilo do público e fechava o rosto para as pessoas. Viu uma mulher estender o filho pequeno em sua direção, mas a reação do homem deveria estar muito longe da que ela esperava. Parou o cavalo por um momento e a encarou. Lyvlin não podia ver de onde estava, mas podia jurar que estava lhe dirigindo um de seus olhares gélidos. Vestia-se com couro simples de montar que o fariam se passar por um camponês se não fosse o porte cheio de si e capa negra que cobria a traseira de sua montaria.  Os cabelos estavam soltos, enrolando-se diante do vento que fazia as bandeiras tremular. Finalmente a mulher desistiu, trazendo o bebê de volta ao seu colo. Casimir esporeou o cavalo adiante sem olhar para trás. Astaroth o encontrara em meio à multidão e pousara em seu ombro direito e se o mordiscar de seu bico incomodava ou fazia cócegas a sua orelha o jovem não deixou transparecer. Se o seu humor estava tão ruim não se podia dizer o mesmo do resto da comitiva. Todos acenavam para a multidão, alguns até carregavam os elmos debaixo do braço e devolviam as saudações que lhes eram dirigidas. Pétalas eram jogadas diante dos cascos dos cavalos e nas outras janelas da fortaleza as pessoas acenavam com lenços e gritavam os nomes dos recém-chegados.

Uma vez que a comitiva da frente chegou a alguns metros da escadaria os estandartes abriram caminho para um cavaleiro que se adiantou sozinho. Seu cavalo era preto como a noite, os músculos visíveis através do pelo brilhante. Mas diferente de alguns membros de seu grupo não usava uma sela adornada com qualquer coisa que fosse. Saltou das costas do cavalo, a capa atrás de si tremulando enquanto andava em direção aos degraus. Um pajem deu alguns passos adiante para livrar suas mãos do elmo prateado que tinha a figura de um Liffeda atacando esculpido na parte da frente e suas asas metálicas rentes às laterais do elmo.  Trocou algumas palavras com a criança e lhe bateu carinhosamente no ombro quando o dispensou. Antes que conseguisse atingir a rainha duas sombras cinzentas enormes irromperam da fortaleza, quase o derrubando no chão. Os enormes galgos latiam, gemiam e choramingavam enquanto pressionavam seus corpos contra o homem que lhes retribuiu os afagos nos pelos compridos até a rainha, cansada de esperar, ir ao seu encontro. A mulher o envolveu em um abraço apertado, Lyvlin viu que chorava. A comoção ao redor de ambos era ensurdecedora, mas não pareciam notar. A rainha tomou o rosto de seu filho entre as mãos e ficou na ponta dos pés para plantar um beijo em cada lado de sua bochecha.  

Agora os demais integrantes da comitiva iam lentamente subindo as escadas também. Viu um homem moreno cumprimentar Raoul com uma tapa no ombro e rir de sua reação. Lyvlin percebeu que uma sombra havia desaparecido dos olhos do membro da guarda real. Raoul podia se certificar de que Darian estava em segurança e apenas isso foi suficiente para dissolver o estresse em seu rosto. Ainda o viu cumprimentar o príncipe com um aperto de mão e receber um abraço em troca quando a garota pousou a mão em seu braço, chamando sua atenção. Quase se esquecera de sua presença. Indicou a porta em um gesto insistente e não esperou sua resposta antes de arrastá-la novamente para fora do quarto.

Qualquer reclamação que poderia ter por não ter visto toda a chegada do príncipe morreu em sua garganta quando foi empurrada para o salão do trono por uma entrada lateral. Já estava apinhado de gente, provavelmente os lordes e senhoras que se consideravam importantes demais para aparecer diante do povo. Conseguiram um bom lugar entre os pilares que sustentavam o teto sobre o salão de pedra. Era de teto alto, tão alto que seriam necessários quatro homens se dando as mãos para rodear cada um dos pilares que o sustentavam. O restante era bastante simples. Um imenso vitral se erguia atrás do trono, forçando a pessoa que vinha falar ao rei, dependendo da posição do sol, a cerrar os olhos para não se cegar pelos raios luminosos que banhavam o salão. O trono em si era uma cadeira de madeira escura esculpida por artesãos talentosos que notavelmente haviam trabalhado com afinco. Era amplo e alto, cheio do que pareciam ser figuras entalhadas em sua superfície de onde Lyvlin estava em pé. Os pés do rei descansavam sobre um tapete cheio de cores e o próprio parecia pouco feliz com o regresso de seu herdeiro. Caso vira Lyvlin entre as pessoas no salão não se importou com sua presença. O Touro estava de pé ao lado do trono do irmão. Alto e imponente em sua usual armadura de batalha que não parecia tirar em momento algum.

Com um rangido as portas na extremidade do salão foram empurradas para dentro e Darian encabeçava o grupo que caminhou em direção ao trono. Agora conseguia vê-lo melhor. Os cabelos estavam molhados de suor devido à viagem eram do mesmo tom escuro dos de seu pai, lisos e de comprimento mediano. Os olhos cinzentos contrastavam com a pele bronzeada fruto de dias de cavalgada sob sol forte. O nariz era nobre e reto, a mandíbula, larga e forte. Caminhava com a cabeça erguida e Lyvlin lembrou-se do que Desmera lhe contara. Caiu sobre o joelho diante do rei.

- Pai – ele disse em voz firme, mirando os pés do trono – Trago notícias do norte. – puxou uma espada da bainha e a ergueu respeitosamente para o rei – E a espada de Kenrick Mão de Ferro.

 Rei Osric que descansava o cotovelo sobre um dos braços do trono não pareceu notar o filho de imediato. Lyvlin viu seus olhos encontrarem os da rainha que agora se juntava a ele ao seu lado esquerdo e viu a irritação neles. Quando um servo tentou levar a espada até ele bateu arma para longe, fazendo o barulho metálico soar pelo salão.

- Notícias...  Espadas nojentas. – ele resmungou finalmente - Mas não a cabeça do nosso inimigo.

O príncipe ergueu os olhos.

- Nossa investida custou a vida de muitas pessoas. Pessoas boas. Pessoas que sangraram e morreram para que pudéssemos estar aqui agora, que garantiram a nossa vitória. Seguramos a muralha de montanhas enquanto pedaços dela caíam sobre nós em meio a tempestades de neve. Seguramos a linha quando o sol se pôs e nada havia para ver além das costas do aliado a nossa frente e nada para ouvir se não a agonia de amigos que se despediam do mundo. Foram batalhas que nunca imaginei que acabariam, mas no fim estávamos de pé e eles não. E me perdoe por olhar por sobreviventes no lugar de arrancar a cabeça de um antigo desafeto.

O salão caiu no silêncio. A rainha torcia as mãos em seu colo, olhando para o marido impassível.

- A experiência de batalha o mudou. – falou Osric e mudou de posição no trono – Não para o que eu esperava.

- É verdade, pai. Ver meu comando jogando suas vidas fora em uma causa que se repete a cada ano abriu os meus olhos. – Darian levantou-se, era quase tão alto quanto o Touro e não falou apenas ao rei, mas a toda corte presente – O tempo de reabrir antigas feridas passou. Eu vi o terror em seus olhos mesmo depois de termos vencido e me perguntei durante muitos dias o porquê. Agora conheço as suas aflições, se inquietam porque sabem que não vencemos afinal.

- Como se atreve – sibilou o rei, mas o príncipe lhe virava as costas.

- Não vencemos porque no próximo inverno virão novamente e no seguinte e assim em um ciclo que superará as nossas vidas. E a vida de nossos filhos e netos. Kenrick mandará quantos guerreiros for necessário para ter sua terra de volta.

- Deixou de ser sua terra há centenas de anos! – Lyvlin pôde ver uma veia pulsar na testa do rei – E se continuará mandando homens para a morte será porque foi fraco demais para lhe tirar a vida!

- Matar Kenrick não garantirá a paz com Kerdis, pai. – devolveu o príncipe em tom resignado – Porque depois de Kenrick há seus irmãos e depois deles seus filhos e netos. É uma guerra que não pode ser vencida da forma que escolhemos para não ter que abrir mão do nosso orgulho irracional.  

- Então os esmagamos de uma vez! – gritou o Touro, desembainhando sua espada.

- Não. – o príncipe avançou até trono – Pai eu lhe rogo, esqueça esse conflito sem vencedor. Se fizermos as pazes com Kerdis –

- Se fizermos as pazes com Kerdis perdemos metade de Faolmagh. Não fale asneiras Darian. – Lorde Harlas entrara no fogo cruzado. Mas Lyvlin percebeu que o ambiente mudara, as pessoas cochichavam com as mãos diante das bocas e o rei parecia prestes a explodir. Darian parecia alheio a tudo aquilo. Seu rosto estava duro e seus olhos cinzentos desafiadores, mas sua postura também indicava que não era uma ameaça, que não queria ser ofensivo. 

- Se fizermos as pazes com Kerdis ganhamos um aliado. – soou sua voz pelo salão e todos se calaram – Um aliado que Vassand pode precisar nos dias vindouros.

Osric enterrou as mãos nos braços do trono com tanta força que os nós dos dedos saltaram. Quando começou a se erguer um homem se pôs entre ele e Darian.

- Agora vamos Darian, acho que todos concordam que isso deve ser discutido em uma reunião com o conselho e não diante de toda a corte. Aposto que estamos entediando todos até a morte.  – seu sorriso teve o efeito calmante imediato. Era alto como Darian, mas de constituição mais franzina. Seus cabelos eram negros e lhe caíam pelos ombros, as mechas da frente estavam trançadas e amarradas atrás de sua cabeça. O rosto era anguloso e os pequenos olhos fendas onde habitava o azul do oceano. Sua barba bem aparada mostrava sinais de que tivera tempo de sobra para se fazer apresentável. A dor que tomou a sua mão quando a garota ao seu lado a apertou foi o primeiro indício que teve de que aquele era um homem perigoso. Usava uma túnica de tecido prateado, cheio de detalhes e pérolas nas mangas.

- Valdrin. – cumprimentou o rei apático – Pensei que lhe havia dado a tarefa de colocar algum juízo na cabeça de meu filho e de aconselhá-lo em batalha. Parece-me que falhou nos dois.

Lyvlin o encarou. Então aquela era Valdrin. O homem que deveria tê-la buscado em Evion, aquele que o teria feito com pouca simpatia. O cachorrinho do rei no conselho de magia. Parecia suficientemente astuto e a maneira como olhava ao seu redor denunciava que nada lhe passava despercebido.

- Meu rei. – ele falou em tom amável – Vossa graça bem sabe como o príncipe pode ser... Resistente a conselhos. – olhou para Darian e lhe deu um sorriso amigável – O que certamente acrescenta ao seu charme.

- Ele não foi criado para jogar charme sobre ninguém. Foi criado para ser forte, para saber a hora de agir como um líder e não como um curandeiro. Foi criado para comandar, não para baixar a cabeça. Foi criado para destruir o inimigo até o último homem e não para falar palavras de traição diante do próprio pai!

- Tio, deve ver que Darian viu a batalha de perto. E batalhas podem nos ensinar mais que imaginamos. Podem nos ensinar quando embainhar as espadas e sentar em uma mesa para conversar sobre um acordo, por exemplo. – isso foi dito pelo moreno que cumprimentara Raoul mais cedo. Era da mesma idade do príncipe e de sorriso fácil. Tinha cabelos escuros e ondulados, sardas cobriam seu rosto redondo simpático e os ombros largos deveriam conter muita força bruta.

- Harlas, seu filho é uma terrível influência sobre Darian. – comentou o rei, fuzilando o jovem que apenas deu de ombros.

- Ou talvez seja o contrário. – grunhiu lorde Harlas através de sua barba – Nunca sabíamos quem tivera a ideia de bosta e quem a repetia. Everett eu o tenho em alta estima, mas não acredite que é um senhor de batalhas apenas porque resistiu a uma parede de escudos. Não viram nada.

- Eu vi o suficiente. – interrompeu Darian – E lhes asseguro que as palavras são minhas. Se pormos fim a este conflito ganhamos um aliado contra Namtar e Wodan. Eu li as cartas, pai, sabe que não ilude ninguém ao afirmar que Vassand pode aguentar os ataques sozinha. Não quando nosso reino está se destruindo por dentro.

- Com vossa permissão, majestade. – Valdrin fez uma pequena mesura – Me voluntario para pôr fim aos conflitos com aqueles que se proclamam hemeristas no norte. Já é tempo de esmagar esta loucura antes que se transforme em algo insustentável.

- Tem minha bênção para partir quando achar que está pronto. – disse o rei – Quero estes baderneiros derrotados até o último homem e mulher. – voltou-se para Darian – É apenas este tratamento que nossos inimigos podem almejar. Um dia irá aprendê-lo.

- Ou mudá-lo.

As narinas de Osric se inflaram e Lyvlin temeu que se levantasse e decapitasse o filho onde estava de pé, mas no lugar disso controlou a voz.

- Para isso você precisa ser rei. – disse numa voz carregada de veneno – E para ser rei precisa ser aclamado. Nunca se esqueça. Agora desapareça da minha frente. E leve esse pedaço de metal com você, não tenho espaço para lixo em meu salão.

Eram palavras duras que o príncipe sentiu, por mais dura que tentou manter sua expressão. Caminhou até a espada jogada no chão e a levantou, dando um sorriso tranquilizante para a mãe que novamente parecia à beira das lágrimas. Enquanto o salão se esvaziava Lyvlin mantinha o olhar em Valdrin. Parecia-se realmente com uma raposa, de certo modo. Conversava com um jovem ao seu lado que ela não reconheceu como membro da comitiva. Mas tampouco o vira nas semanas que passara em Beltring, então deveria ser um dos homens de sua confiança. Quando deu por si percebeu que a menina ao seu lado havia desaparecido em meio à multidão que se apressava em sair das vistas do rei.

Darian ainda tinha a espada quando Raoul o guiou até Lyvlin diante das portas do salão.

- E esta é Lyvlin Tessart. – anunciou com uma pompa que fez a garota corar – Ouvi que está indo muito bem em seu treinamento Lyvlin.

Era um pedido de desculpas e mesmo que fosse feito diante do príncipe de Vassand ela o aceitou.

- Nossa alteza. – ela murmurou encabulada.

Darian comprimiu um sorriso em seus lábios. Mas o erro não passara despercebido ao seu companheiro.

- Parece que já não sou o que mais comete erros se referindo às pessoas e seus cargos. – disse Everett com alegria. Deu uma tapinha no ombro de Lyvlin e lhe mandou uma piscadela – Estou ansioso para testar sua habilidade na arena.

Antes que pudesse responder Raoul a interrompeu.

- Palavras rasas vindas de alguém que se refere ao rei como tio. – censurou.

- Mas ele é meu tio. – retrucou, fazendo Raoul suspirar de frustração.

- O que eu quero dizer – interveio Darian, estendendo uma mão para Lyvlin – É que é um prazer conhecê-la. E não se preocupe com referências – ele acrescentou com um sorriso caloroso – Meus amigos me chamam de Darian.

- Ou cabeça de bosta. – riu Everett.

- Ou cabeça de bosta. – concordou o príncipe – Por primos especialmente atrevidos e apenas quando conseguem me vencer em um duelo. O que não aconteceu há meses, você deve lembrar.

- Senhores. – a figura de Valdrin surgiu ao seu lado – Se me permitem gostaria de um tempo com nossa adorável Tessart.

- Não sou Tessart de ninguém. – sibilou Lyvlin e pensou ter visto as sobrancelhas de Darian se erguerem em surpresa.

- Está tudo bem Lyvlin. – assegurou Raoul – Valdrin tem assuntos que a interessam.

- E não apenas a você. – reforçou o homem com voz sedosa.

Lyvlin viu o grupo de cavaleiros se afastar no corredor com um pequeno aperto no peito. Não gostava da ideia de ficar a sós com Valdrin. Logo descobriu que isso não se tratava da verdade porque Valdrin apoiou sua mão em seus ombros e a guiou até o homem com quem conversava mais cedo.

Tinha mais ou menos a idade da garota e havia percebido seu olhar sobre ela durante todos os acontecimentos no salão. Estava de pé diante de uma janela estreita e observava o que se passava do lado de fora de modo distraído. Era um pouco menor que ela, de constituição mediana e nariz comprido. Seus olhos escuros lhe sorriam quando perceberam sua aproximação e eram emoldurados por cabelos acobreados. Vestia-se com sobriedade, o gibão de couro com o brasão do reino era a única decoração em suas vestimentas. Quando a viu anuiu de leve e então olhou para Valdrin em busca de apoio.

- Lyvlin. – este disse, intensificando o aperto em seus ombros – Estou confiante que esta seja uma situação da qual você não foi informada. Um pequeno favor que todos deviam a este ótimo rapaz. Imagino que possa ser um tanto chocante no início, mas tenho fé que vocês vão se dar perfeitamente bem.

Sorriu ao rapaz nervoso que o entendeu como último reforço que precisava. Deu um passo adiante e estendeu a mão para Lyvlin.

- Bom – disse sem jeito – Isso é tão estranho para mim quanto para você, pode ter certeza.

- Algumas coisas estranhas vêm acontecendo comigo desde que cheguei a Beltring. – Lyvlin confessou.

- É quase um conforto. – apertou a mão da garota com firmeza e quando Lyvlin quis retraí-la pousou a sua outra mão em cima – Me chamo Alec. – ele disse e ao perceber que o nome não lhe dizia nada acrescentou – Alec Tessart.

Ao ver a confusão em seus olhos tentou sorrir de forma consoladora.

- Seus pensamentos estão corretos. Somos irmãos, Lyvlin.  


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Notas finais do capítulo

HEHEHEHEHEHHEHEHHEEHEHEH. Nota engraçada (na verdade não): Alec foi um dos primeiros personagens que surgiram na minha mente e teve sua personalidade e história fechada antes mesmo de Ezra ou Darian começarem a serem rascunhados. É um dos meus personagens favoritos e um dos mais ambíguos da história. Então parabéns para mim por não ter entregado esse spoiler na cara de tudo e todos.
Tem muitas coisas importantes sendo apresentadas nesse capítulo, na verdade tantas que esse deve ser o capítulo mais importante até agora. Personagens que foram apresentados aqui serão o alicerce dos acontecimentos futuros, da destruição e da esperança. Da dor e da alegria na vida da nossa pequena Lyvlin. Espero opiniões sobre todos e se conseguirem imaginar algumas hipóteses sobre o desenrolar da história ganham cookies. :)
Na verdade não, apenas espero opiniões sinceras. Beijos e lembrem-se, a história de verdade começa agora!