As Crônicas dos Três Reinos: Ciandail escrita por JojoKaestle


Capítulo 2
Prólogo II




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/64423/chapter/2

Prólogo II – Das maldições

     Assim que toda a criação estava completa Maelan partiu de seu próprio reino, pois mesmo estando tão ocupado quanto os grandes senhores e senhoras da existência a vontade de examinar seus trabalhos pessoalmente era grande. Tal vontade era compartilhada entre os deuses e deusas, que até aquele momento guardavam suas criações finalizadas apenas para si e ansiavam o momento de contemplar o que seus irmãos e irmãs haviam feito.

     Aconteceu então a Grande Reunião, evento que ocorrerá novamente apenas quando Adanna for destruída pela vontade de seus deuses e deusas. Diante dos presentes, um a um cada deus se apresentava e o fazia também com sua criação. Ali, a posição entre eles foi determinada e apenas Agnessa e Wedast não a aprovaram. Foi decidido que todos os deuses deviam honras a Camira e Nairna, pois sem seus feitos não haveria vida. Á Seirien era destinado igual respeito, mesmo que isso não fosse exposto. O trabalho de Danladi e Tirza muito agradou a Maelan e os ora pequenos, ora majestosos seres de Gwenaelle foram abençoados pelo Grande e Único. A criação de Yelitza foi definida como a mais bela entre todas e ninguém o contestou. Quando tudo parecia chegar ao fim, Sydril pediu silêncio aos seus irmãos e irmãs e foi atendida. Vaus, que estivera fora durante boa parte da conferência se fez presente, trazendo junto de si um humano primordial.

     Exclamações de raiva, indagações confusas e hesitação foram algumas das reações dos que ali estavam. Wedast parecia estar pronto para esquartejar a figura em sua frente, mas Maelan ergueu a mão e pediu para que se contesse. Finalmente, falou:

- O que temos diante de nós é a personificação de sua ingenuidade, meus queridos filhos e filha? Espero que o seja. Como ousam igualar uma criação aos criadores?  – e durante um longo tempo nada fez-se ouvir.

- Para que Adanna pudesse conter para sempre nossa essência, Maelan, o Grande e Único. – respondeu Tiadelik e por sua língua ser sincera, nada de mal lhe aconteceu – Nossos olhos puderam contemplar nesta reunião grandes feitos, criações capazes de povoar a mente de um sábio durante centenas de anos e ainda assim não enxergaria sua total dimensão. Mas – e aqui seu olhar passeou entre seus irmãos - de que adiantaria toda esta grandiosidade se não há ninguém para desvendá-la? Para deixar-se levar por ela?

- Nós ainda estamos aqui. – falou Camira, sua voz era um robusto obstáculo a ser contornado pelos três irmãos. Sydril assentiu.

-Sim, estamos. Como criador acharia possível desviar sua atenção de sua própria, para então buscar compreender a criação de qualquer um que ocupa este lugar?

E mais um longo silêncio se fez. As palavras de Sydril ainda ecoavam em suas mentes, era verdade. Desde que pousaram os olhos nos feitos de seus irmãos, a única coisa que ocupava suas mentes era se sua criação não era de algum jeito melhor ou pior que a que lhes era apresentada. Maelan sorriu, pois compreendeu o que se passava e logo de início o humano primordial não se mostrava como superior ou inferior do que qualquer coisa que vira naquele dia. Foi isso que o Grande e Único pensou e apenas por isso a criação dos três irmãos estava salva. Ainda assim, como de costume pediu os conselhos de Seirien, aquele que já nascera mais velho e sábio que todos seus iguais. O senhor de todos os tempos parecia perdido em seus pensamentos e quando Maelan fez menção de repetir seu pedido, o deus anunciou:

- Vejo em sua criação um grande fardo, muitas discórdias vão ser causados por sua simples existência.  E por sua simples existência – falou, passando o olhar cansado sobre Yelitza – alegrias imensuráveis vão surgir. Se me perguntassem, diria que eles jamais deveriam ter sido criados. Mas agora que estão à nossa frente, nada podemos fazer se não aceitar sua presença e vigiar seus passos.  

-Podemos incinerá-los. – respondeu Wedast e Agnessa riu diante de tal idéia.

- Este pensamento vindo de alguém que não criou nada que não fosse destruição não é uma surpresa. – Yelitza ignorou os comentários pouco amigáveis que se seguiram – A imagem de ter criaturas com a nossa casca andando nos campos verdejantes de Adanna, contemplando o céu com minhas ilustres pérolas aquece meu corpo e espírito. Creio que mais ninguém se opõe.

- Se este é o desejo de nosso pai, nada vou fazer a não ser dar boas vindas aos recém-chegados. – falou Camira. Danladi e Tirza assentiram, pois muitas vezes se comportavam como um só. A voz de Nairna cortou o salão, afiada:

- Saibam que não concordarei com isso. As previsões não são boas e se não são amistosas não deveríamos arriscar.

A deusa andou lentamente até o humano primordial que estava no centro daquele círculo e tocou sua face, mesmo usando as costas da mão suas unhas deslizaram pela pele provocando um pequeno ferimento. Enquanto pequenos filetes de sangue se formavam, o homem apenas a olhou, anestesiado. Nairna então lhe deu as costas, sentenciando:

- São apenas cópias mal feitas, desprovidas de qualquer encantamento. Receio que jamais se sobressairão.

E assim os deuses foram lembrados de que era ela, e não Wedast, o deus mais temido entre todos.

     Depois de mais debates as objeções de Nairna foram silenciadas e Maelan determinou que os humanos estavam livres para andar por toda Adanna sem que nenhum deus lhes fosse uma ameaça. E assim foi feito. Não teríamos uma história para contar se essa determinação tivesse sido cumprida e assim aconteceu que, enquanto os humanos dormiam profundamente, Vaus preenchido pela ira por ter sua criação denominada como fraca e impotente, fez nascer no coração dos homens o desejo de possuir. Essa exigência começou então a crescer, decidindo seus atos. Os humanos primordiais ainda gozavam das características atribuídas por Sydril e Tiadelik, mas a ganância lentamente rastejava por cima delas, deixando para trás um atalho contagioso. E aconteceu o oposto do que a senhora das águas havia rogado, os humanos sabiam com maestria sobrepujar as demais criações e se achavam no direito de fazê-lo.

     Mesmo com a bênção de Maelan, os humanos primordiais inspiravam nos demais deuses desconfiança. Desconfiança, esta, que mais tarde se transformaria em sentimentos diversos, que passariam de afeto e amor até repulsão, raiva e desgosto como mudam também as estações, dando seus frutos. Doces ou amargos.  

     O maior infortúnio dos homens, porém, veio pelas mãos que os moldaram com tanto afinco. Perfeição era o que Vaus esperava depois de tantas desavenças surgidas por causa de sua façanha, que compartilhava com seus dois irmãos. Mas os humanos, que a cada dia se descobriam mais fortes e capazes de grandes feitos, manchados pela ganância, se tornaram livres. E ao lado da liberdade veio a vontade de serem eles próprios deuses de seus destinos. Durante algumas primaveras Vaus observara o florescimento desse sentimento na sua criação, e ela bastante o incomodou, pois havia sido decidido que aos homens cabia apenas a escolha de qual dos três criadores os auxiliaria no longo caminho rumo aos reinos de Mavra e muito além. Em completa sintonia, as crescentes preocupações e o esquecimento dos deuses pelos homens prepararam o palco para a maior de todas as contradições, pois Vaus era impulso e nada seria capaz de detê-lo. 

     As idéias sombrias que se apossavam de seu irmão não passaram despercebidas por Sydril e Tiadelik e delas não tomavam parte. Acreditavam ter feito o melhor pelos humanos e viam sua liberdade como parte de seus seres, o que não podiam controlar tampouco era passível de punição. Quando o deixaram claro para Vaus, receberam em troca rogas de infortúnio e maldizeres. Tais palavras também foram dirigidas aos humanos quando o deus apareceu diante de sua criação, a fúria contorcendo seu rosto em rugas. Os dois outros deuses então, tomados pelo temor do que poderia acontecer enviaram a Adanna os Nirnailas, espíritos livres dotados de personalidades em forma de vento e brisa, conhecidos pela denominação de seres mais velozes a cruzar o firmamento. Com a ajuda dos Nirnailas o aviso de Sydril e Tiadelik chegou aos humanos e aqueles que o atenderam com rapidez se esconderam e foram poupados. O restante a ira de Vaus cobriu com um véu de desespero e diante dos olhos do deus as qualidades que antes eram motivo de orgulho dos humanos primordiais se desprenderam, deslizando pela terra e sendo tragadas. Ali aconteceu a Grande Perda, que transformou o brilho ostentado pelos humanos primordiais em luz opaca dos homens comuns. As lamentações dos homens logo foram abafadas, pois Vaus percebeu que alguns estavam escondidos e, com sua visão tomada pela raiva, falhava em encontrá-los. Deu-se então o feito mais perverso do antes respeitado deus, porque frustrados e corrompidos os olhos divinos pousaram nos Nirnailas, mensageiros de seus irmãos. E como não podia afetar Sydril e Tiadelik diretamente descontou nos inocentes, condenando os espíritos livres a prisões sólidas de corpos, corpos humanos. E anunciou, insano:

-Observem suas novas casas, Nirnailas, correspondentes traiçoeiros e mal-agradecidos. Porque desta desavença vocês não deveriam ter tomado parte e jamais deixarei que se esqueçam disso. Divirtam-se senhores, na forma daqueles que falharam em salvar.

      Maiores lamentos jamais foram ouvidos em Adanna, maior tristeza nunca presenciada. Os Nirnailas, antes livres, agora rolavam pelo chão aos prantos, pois usar as pernas para se locomover era tão estranho para eles quanto a impossibilidade de ser levados pelo vento. Ao conseguir se levantar, com as pernas cambaleantes o maior de todos os Nirnailas implorou ao deus:

-Mate-nos oh, por favor. Dê fim a essa condição deplorável em que nos encontramos grande Vaus. – e os Nirnailas tinham as faces lavadas por lágrimas, pois ver seu líder reduzido àquela cena humilhante lhes apertava o coração. O deus apenas riu, dando as costas para os prantos.

-Ah, meu querido, mas isso não passa pelas minhas idéias. Pelo contrário, a morte não será de sua preocupação. Nunca será. E vocês – anunciou, estendendo os braços em direção ao restante dos Nirnailas – terão todo o tempo para se acostumarem com sua bela condição. Até o fim de Adanna, talvez.

      E então o pranto foi substituído pela raiva. Um dos Nirnailas tentou avançar sobre a figura divina, mas com seu corpo descontrolado tropeçou e caiu. Vaus cuspiu sobre sua figura no chão e desapareceu, sem antes deixar de comentar:

-Patéticos vocês se tornaram, vejo que minha abominável criação conseguiu uma concorrente.

      Os motivos que Sydril e Tiadelik tiveram para não interferir nas ações de Vaus são desconhecidas, talvez fossem impotentes diante da ira ou o interesse não fora suficiente. O que aconteceu depois, porém, foi diferente. Maelan convocou apenas os três deuses para sua presença e os puniu de forma igual pelo infortúnio que assolou sua criação, que juraram proteger. A magia nascera com Adanna e os três deuses haviam ensinado aos humanos a usá-la em seu favor de formas diferentes que refletiam como cada um deles a via, sua natureza e fins. A punição de Maelan determinou que nascessem três filhos dos homens e a eles estava destinada a fonte mais poderosa de magia conhecida, a divina. Quando os três se reunissem nos salões de Mavra, seus poderes seriam transferidos para outros humanos ainda não nascidos, reiniciando a dança e obrigando os deuses a abdicar de parte de sua energia durante a vida de um humano, ou até que esta fosse violentamente interrompida. Vaus e Sydril não esconderam seu descontentamento, mas Tiadelik deixou os salões de seu pai em silêncio, com a cabeça pendendo como se ele próprio perdesse sua natureza naqueles acontecimentos nefastos.

     Esta história não existiria para ser ora contada, ora cantada pelos bardos e poetas se os deuses aceitassem sua punição de bom grado, nem se os portadores temporários de parte de suas energias, denominados linair, soubessem usar seus poderes com sabedoria e bom senso. Também não seria contada sem a natureza mutável dos humanos e traiçoeira de alguns deles. Ela se passa em Vassand, um reino ora grandioso e justo que nos dias atuais está numa estranha calmaria, daquelas que antecedem uma devastadora explosão. Mas ela não começa com intrigas, perigos e rancor. Não, ela começa com o nascimento de uma pequena garota, com os cabelos vermelhos como as chamas dançantes de uma fogueira e uma estranha determinação no olhar. Como se nascesse para mudar aquelas terras.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Finalmente. Vamos ao que interessa agora.