As Crônicas dos Três Reinos: Ciandail escrita por JojoKaestle


Capítulo 19
Lembranças




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“Firdos conjura uma barreira ao redor do Monte do Rei que seria suficiente para rechaçar ataques de uma catapulta, dá um passo para o lado e me convida a imitá-lo. Eu digo que ele só pode estar brincando, ele, que quem está brincando sou eu. Há dias em que o odeio e dias em que sei que ele é a única coisa que me mantém caminhando. Ele normalmente me dá sermões sobre como sou displicente, mas às vezes quando faço algo certo ou supero meus limites ele me chama de Ryia. Perguntei a Urobe e ele me disse que Ryia era o nome de sua filha, aquela que morreu em um incêndio poucos anos atrás.”


– Não. – o salão Esmeralda caíra no silêncio. Lyvlin mordeu os lábios e procurou apoio nos olhos do conselho de magia. Não o encontrou, o que a faz erguer a voz – Não. Eu vim para aprender a controlar o meu dom. Nada além.


– Você deve entender Lyvlin – começou Urobe, mas Lyvlin se levantou. A cadeira que antes a confortara agora parecia querer envolvê-la com garras invisíveis.

Breuse também pulou da cadeira e Cena cruzava os braços diante do busto, visivelmente divertida. Lyvlin os ignorou.

– Se eu sair por aqueles portões – quis saber, olhando apenas para Urobe – O que acontecerá comigo?

– Se tornará uma fugitiva. Seria caçada pelos melhores rastreadores do reino e trazida de volta. Ocuparia uma cela no lugar dos aposentos dos aprendizes, saindo apenas para receber seus ensinamentos e mais tarde para guerrear. Mas isso tudo apenas se espera passar por todo o conselho.

– Uma armadilha. – falou Lyvlin e sentiu seu estômago embrulhar. Como Gilbert dissera, como Laoviah avisara. Estúpida, estúpida.

Cena a tirou da flagelação emocional.

– Apenas se quiser, Lyvlin. Eu gosto de você. Gosto que queira colocar a verdade sobre a mesa, nisso nós somos iguais. O que Urobe falou é a verdade, mas não seria assim caso pudéssemos escolher. Uma palavra do rei vale milhares das nossas. Você pode ser feliz aqui, pode ter amigos.

A palavra a fez lembrar de Raoul e cerrar os punhos.

– Estão sugerindo que fique brincando de aprendiz dedicada enquanto a minha liberdade é arrancada de mim?

– Ninguém é livre. – falou Dechtere – Todos estão presos a juramentos, tarefas que temos que cumprir até o final, por mais que não sejam como imaginamos. Você tem a vida mais fácil do que a maioria daqui.

– Desculpe se não concordo. – rosnou Lyvlin – Não jurei nada a ninguém.

– Realmente filha da mãe.

Ela fuzilou o general com os olhos e quis arrancar o sorriso zombateiro de seu rosto. Também quis chorar, mas seria mil vezes amaldiçoada antes de derramar uma lágrima diante daquelas pessoas.

– Por que não come alguma coisa? - sugeriu Urobe, ignorando seu mau-comportamento – A viagem foi cansativa, quem sabe depois de uma boa noite de sono não seja mais fácil ver a simplicidade das coisas.

Ponderou dizer que não comeria nada oferecido por um bando de traidores, porém a verdade era que sua barriga roncava e não sabia dizer se era fruto de algum feitiço ou exaustão, mas sua cabeça parecia prestes a explodir. Tentou por uma última vez.

– Desmera me disse que depois do período de ensinamento alguns aprendizes são liberados de serviço.

– Isso não se aplica a você. Se for metade poderosa do que é linguaruda o rei poderá dormir tranquilo.

– Ele pode enfiar a tranquilidade –

Cena gargalhou.

– Chega Lyvlin, chega. Venha, a levarei até as cozinhas. Agradecerá por ser mantida fora do centro das atenções pelo resto do dia.

– Precisamos da sua presença aqui. – censurou Dechtere – Ainda não tratamos das questões sobre os nirnailas e hemeristas.

– Se qualquer um dos dois precisar ser morto vocês me chamam. – despediu-se e agarrou o braço de Lyvlin.

– Amanhã começaremos com o seu treinamento. – disse Urobe e mesmo tendo se esforçando para soar amigável Lyvlin lhe virou as costas.

Estava farta daquele salão.

–-x--

Os corredores pareciam menos rígidos com Cena a guiando. As sombras as seguiam pelas paredes altas, mas os intervalos das tochas eram curtos o suficiente para iluminar o caminho. Quando passaram por um grupo de janelas que mais pareciam nichos Lyvlin viu que o sol já desaparecera no horizonte azul profundo. Os caminhos que Cena escolhia não pareciam levar pelos corredores principais e quando começou a falar Lyvlin entendeu o motivo.

– O conselho tende a ser um pé no saco. – comentou enquanto pegava uma das tochas e as guiava por um caminho estreito – Mas você precisava ver quando Valdrin faz parte das reuniões. Urobe fez bem em mandar trazê-la mais cedo.

– Não imagino como qualquer coisa referente a minha situação pode ser categorizado como bom. – murmurou Lyvlin, tomando o cuidado de não pisar no calcanhar da mulher. A falta de luz a deixava nervosa. Se Cena quisesse atacá-la agora seria o momento ideal, estavam longe o suficiente e a última pessoa que viram fora a centenas de metros atrás.

– Não seja ingrata. Se Valdrin tivesse posto as mãos em você estaria a caminho da Provação nesse momento.

– O quê?

– Você não sabe o que é a Provação? Um teste para os aprendizes, uma coisinha perigosa e com um alto índice de mortalidade. Há alguns anos ele conseguiu convencer o conselho de que todos aqueles suspeitos de serem linairs seriam capazes de passar por ela anos antes do restante. Achamos que fora ideia do rei, para diminuir o tempo gasto com pretendentes falsos. Terminou que dois morreram e outro... Bom, não foi bonito de se ver. Dechtere ficou indignada com a falta de poder que tínhamos sobre os nossos e ameaçou partir para Rattra e no fim conseguimos convencer Valdrin e o rei de que isso era suicídio. Um linair sem treinamento é apenas mais perigoso que um tocado pela magia comum. Mas isso foi antes dos ataques.

– A situação está tão ruim assim?

– Pior. – era possível ouvir a excitação por trás de suas palavras. Cena era um cão de guerra implorando para ter sua coleira partida – Mas não precisa se preocupar com isso por enquanto. O que importa é que Valdrin usou isto para ronronar ao rei de que deveríamos por você pela Provação assim que pusesse os pés aqui. Caso sobrevivesse seria treinada e se tivéssemos que tirar o seu corpo da câmera de Provação ao menos não teríamos perdido tempo treinando-a.

– E ele volta na comitiva de Darian?

– Eu vejo onde quer chegar Lyvlin e adoraria vê-lo com o nariz e algumas outras coisas quebradas, mas não mexa com ele. O rei nunca teria concordado com esse absurdo se estivesse em tempos normais, mas ele está desesperado. Valdrin não conhece o desespero.

E eles todos me conhecem. Sentia-se como um mau jogador que tentava vencer uma partida na qual entrara com todos os demais conhecendo as suas cartas. E conhecia a sua mão, não havia nenhum coringa. Tirou o pé do caminho de um rato gorducho e imaginou que deveriam estar perto das cozinhas. No lugar disso o corredor pelo qual seguiam foi inundado por gritos. Lyvlin levou a mão à anca, mas Arcturus não estava lá. Amaldiçoava a decisão de esconder a espada em um grupo de arbustos quando Raoul não prestava atenção quando Cena se virou, o vestido tinindo leve pelo encontro dos anéis de aço.

– Nada perigoso apenas inconveniente. – disse e dando alguns passos adiante parou a tempo de não bater em um guarda que dobrava de um corredor paralelo.

Era o primeiro guarda que Lyvlin viu na Academia e sua presença não combinava com o lugar.

– Senhora. – dirigiu-se a Cena e deu uma olhadela por cima do seu ombro para Lyvlin – Firdos se recusa a comer. De novo.

– O velho Firdos, dando mais trabalho que uma criança que aprende a limpar a bunda. – Cena olhou para Lyvlin – Pode aguentar mais alguns momentos sem desfalecer de fome?

Lyvlin anuiu e se viu percorrendo poucos passos ao encontro da origem do barulho. As tochas nas paredes tremulavam na ausência de uma corrente de ar e quando chegaram à porta da cela entendeu que aquele não era um prisioneiro qualquer.

O cativeiro de Firdos era um aposento confortavelmente mobiliado, com uma cama grande e uma pequena janela na parede que mais se assemelhava a uma seteira. Estantes carregadas de livros grossos cobriam as pedras que moldavam as paredes e uma escrivaninha de madeira nobre se abarrotava em um canto. O tinteiro estava derramado sobre os pergaminhos parcialmente preenchidos e as mangas do senhor que sentava no chão estavam manchadas pelo líquido negro. Não esboçou qualquer reação quando a porta foi destrancada (e essa era a única pista que indicava que o senhor havia sido separado de sua liberdade) e ainda remexia o caldo de carne com o seu longo dedo indicador quando Lyvlin tentou ter um vislumbre melhor ao lado de Cena.

O guarda devolveu a tocha a seu suporte, libertando o quarto da penumbra. Lyvlin viu que Firdos era ainda mais velho que Urobe, o que a fez se perguntar se havia algo especial nas águas de Beltring que permitia às pessoas terem vidas tão longas e era um pouco mais que um saco puído. Sua pele era tão delicada quanto um pergaminho antigo, as veias correndo como rios debaixo de sua superfície e uma barba rala ainda estava agarrada ao seu queixo. O nariz adunco se prostrava do rosto fino e qualquer energia que tivesse décadas atrás não passava de uma pequena brasa. Brasa que incendiou-se quando viu Cena atrás do guarda.

Levou as mãos à cabeça e por sua boca saiu um gemido.

– Aqui vamos nós. – comentou Cena.

Mas Firdos não foi de encontro a ela. Passou pelo guarda, tropeçou nos próprios pés enquanto tentava se desvencilhar de Cena e abraçou Lyvlin. Sua cabeça calva atingia a barriga da garota e os braços eram tão quebradiços que não pôde fazer nada, se não permitir.

O velho ria, ria tão alto que ecoava pelo corredor. E era um riso fácil, tão ingênuo e verdadeiro que Lyvlin deu por si sorrindo, até Firdos começar a falar.

– Eu disse a eles que você voltaria, eu disse Layil. Disse mesmo. Mas eles não quiseram ouvir e as chamas, as chamas estavam tão altas eu temi que... NÃO! – afastou-a de si e pôs as mãos diante do rosto, lágrimas escorriam de seus olhos caídos e caiam no piso de pedra – Layil não temos tempo! Eles sabem! Fuja! Fuja! Pegue Lyvlin e cavalgue para o norte, deixe os outros para trás, não sei onde Thomas está Layil, por favor... Eu vou cuidar deles, vou cuidar de todos agora VÁ! – e com essas palavras tentou empurrá-la para fora da porta ainda gritando insanidades.

O guarda fez menção de agarrá-lo pela cintura, mas Cena sussurrou algumas palavras e Firdos ficou imóvel, as palavras morrendo em sua boca.

– Fazia tempo que não tínhamos um espetáculo assim. Está inteira? - quando recebeu a resposta positiva voltou-se para o velho – Firdos, você está um pouco mais confuso que o normal hoje. – falou numa voz alentadora e calma, guiando-o até a escrivaninha – Estes pensamentos que o atormentam nunca aconteceram, são apenas pesadelos.

– Pesadelos. – repetiu o velho, com uma última lágrima presa em seus cílios – Layil... – repetiu em tom de dúvida com os grandes olhos azuis em Lyvlin.

– Não. – assegurou Cena, levantando a tigela de caldo do chão – Layil foi embora há muito, muito tempo.

– Muito tempo. – o velho concordou e olhou através da seteira para o céu escuro e não pareceu perceber quando sua refeição foi posta diante dele.

– Coma. – pediu Cena.

Firdos voltou o olhar para o líquido com solitários pedaços de carne boiando.

– Eu não gosto de caldo de carne.

– Gosta sim, você pediu.

– Eu não gosto de caldo de carne. – foi a resposta.

Cena revirou os olhos.

– Pegue algumas frutas da cozinha Argo, figos, tâmaras, você sabe do que ele gosta. – disse ao guarda – E traga um pouco de vinho e mel. Quero que você tome primeiro oito colheres cheias. – falou para Firdos – Ou nada de sobremesa.

– Cinco. – tentou o velho.

– Seis.

Quando Firdos finalmente tomou o que era exigido o guarda já voltara. Era gordo e desajeitado e parecia mais servir como um amigo para Firdos do que de vigia.

– O que aconteceu com ele?- quis saber Lyvlin, observando o velho mordiscar um figo com os poucos dentes que lhe restavam.

– Sua mãe. – respondeu Cena – Não só isso, claro. Firdos foi o único mestre a aceitar treinar Layil quando ela pôs os pés em Beltring, ele era poderoso nesta época, poderoso e sábio. Características apreciadas em um grande mestre, chefiava os magos como uma mãe exigente e se levantava contra as ignorâncias e abusos do rei. Mas quando aceitou ensinar a sua mãe ele fez muitos inimigos, a maioria a consideravam indisciplinada e rebelde, prefeririam jogá-la em alguma cela. Mas Firdos pensava diferente e como ocupava o cargo mais alto eles tiveram que engoli-la. Layil cresceu e suas habilidades com magia eram mesmo esplêndidas. Se o que falam é verdade ela derrubou Adrien Fohlus em um combate corpo a corpo – Adrien foi o último linair que Cindail teve – usando apenas o cinto do oponente. Fohlus não ficou muito contente depois, com as partes a mostra em plena Praça da Rainha e todo o mais... – Cena riu.

– Mas como alguém que era a cabeça do conselho vira... Bem, isso?

– Quando sua mãe decidiu partir para o norte o rei e grande parte do nosso conselho se opôs. Uma oposição forte e que ninguém te faça acreditar o contrário, violenta. Firdos foi o único que permaneceu ao lado dela e foi o suficiente para garantir uma partida razoavelmente segura, mas quando Layil e você escaparam através dos dedos do rei ele precisava alguém para culpar. E Firdos estava bem ali, erguido e pronto para enfrentar qualquer consequência... Menos a que realmente recebeu.

Lyvlin olhou para o velho que chupava o caroço de uma tâmara como se fosse a melhor coisa que lhe acontecera, parecia tão poderoso quanto um mendigo sarnento e isso a fez gostar ainda menos do rei.

– O quanto sabe sobre os rastreadores?

– Que eles são capazes de encontrar praticantes de magia em qualquer lugar do reino. – Lyvlin tentou se lembrar. Uma vez uma dupla deles tinha passado por Evion em busca de uma garota fugitiva. O desenho que mostraram para toda a vila tinha uma garota de no máximo sete anos, com cabelos cheios e olhos espertos. De alguma forma a imagem não se desprendeu de sua cabeça e às vezes ainda aparecia em seus sonhos. Caçar uma garotinha em pleno inverno com armas e cavalos enquanto ela tinha um pouco mais que feitiços parecera injusto até para a criança que fora na época.

– Sim e ultrapassam os limites do reino também. São uma organização a parte, subordinada somente ao rei e isso te dá uma ideia de como são todos arrogantes e nojentos. Mas o que queria dizer a princípio é que eles contam com uma vertente com dons únicos, se aquilo pode ser chamado de dom.

– Magia?

– Alguns o chamam assim, mas se falar isso entre magos se prepare para receber insultos. É magia e ao mesmo tempo não é. Em alguns lugares dizem que é contramagia e acho que ouvi Urobe comentar que é assim que eles se referem a ela. Bom, no fim o nome não importa. O que faz é remover cada pedaçinho de magia que você possui.

Lyvlin a encarou.

– Sim, foi assim que arregalei os olhos quando soube também. E como você deve saber agora, cada forma de magia está relacionada a certas... Ah... Áreas. Seguidores de Tiadelik, como eu, tem a fala arrancada de nós e você pode dizer “mas teríamos o mesmo efeito se cortássemos a língua fora” e não seria a primeira a chegar a essa conclusão, sem falar que é mais doloroso e envolve maiores quantidades de sangue derramadas, então podemos dizer que o azar é meu. Com os súditos de Sydril a coisa é um pouco mais complicada, mas por envolver concentração e poder mental... Você pode imaginar como eles terminam, na verdade basta olhar para o nosso garotão aqui. – Sim Firdos, todas as uvas são suas! Não queremos encontrá-las esmagadas debaixo do seu travesseiro de novo! – disse e voltou-se para Lyvlin novamente - No caso dele tudo foi ainda pior, porque quanto mais praticamos magia, mais a magia se torna parte de nós e quando ainda temos uma inclinação maior para o dom como muitos tem...

Lyvlin anuiu, não conseguia imaginar o que Firdos estava aguentando.

– Como Urobe deixou isso acontecer?

– Ficando em silêncio. Era há décadas o segundo no conselho e amigo pessoal de Firdos. Sabia que conseguiria fazer mais por Firdos mordendo a língua e acatando a todas as ordens que partiram do rei.

– Grande amigo.

– Grande amigo mesmo. – concordou Cena, ignorando o tom irônico – Onde acha que o rei teria jogado Firdos, ainda mais com Valdrin sibilando em seu ouvido? Se não fosse Urobe teria mofado em alguma cela e morrido dois invernos depois. Ou acha que tratariam bem àquele que facilitou a fuga da arma favorita do rei? Firdos apenas não marchou até o cadafalso porque seu estado estava deplorável depois da anulação e nem com a melhor tinta impregnada com veneno Vadrin conseguiria escrever um discurso que convencesse a população e a academia de que se tratava de uma ameaça imensa ao reino. E Urobe estava lá para sugerir um fim de vida confortável uma vez que não causaria mal a ninguém e com muito contragosto o rei aceitou, acho que porque sabia que Firdos era uma ameaça maior morto do que vivo.

– Vivo ele serve para mostrar a todos o que acontece com magos traidores. – Lyvlin queria sair daquele aposento. As paredes a estavam sufocando e a raiva por Osric a preenchia de uma maneira que duvidava conseguir passar por inofensiva em seu próximo encontro.

– “Se Firdos caiu, o que aconteceria conosco?” – recitou Cena, observando o velho por alguns instantes - Agora vamos. Você está pálida de fome.

Não era fome, mas assentiu com pressa e depois de se despedirem de um Firdos que cantarolava satisfeito Cena ainda deixou algumas instruções com o guarda que envolviam desde um chá calmante antes de dormir até um novo grupo de livros que deveria ser entregue na manhã seguinte.

Assim que dobraram o corredor e deixaram o guarda para trás Lyvlin sentiu-se confortável o bastante para falar.

– Eu não matarei pelo rei Cena. – verbalizou finalmente o que estava guardado há horas – E não farei juramento algum.

– Mas você já matou. – afirmou Cena – Consigo ver no modo em que se mexe, como seu corpo reage a situações de violência. – quase trombou em suas costas quando repentinamente parou de andar – E você gostou de fazê-lo, não é?

– Aquilo foi –

– Pela sobrevivência. – Cena riu sem vontade – E vai aprender que os que cairão diante de você o farão pelo mesmo motivo. Sobrevivência. Mas não será apenas a sua que estará em jogo e no fim do dia repetirá para si mesma que tudo não fora uma questão de escolha. Em alguns dias até será o bastante. Dias bons. – recomeçou a andar e empurrou uma porta para o lado, revelando uma luz alaranjada. – Chega de assuntos sangrentos e tristes, conheça a nossa cozinha principal!

Lyvlin mal prestou atenção no enorme cômodo. Sentia o calor das fogueiras e a fumaça massageava suas narinas com cheiros que fizeram a saliva acumular-se em sua boca. Tomou lugar em uma das mesas que os serviçais usavam para ter suas refeições e a mando de Cena pilhas e mais pilhas de comida foram colocadas diante dela. Havia assado e pão, queijo e ameixas. E vinho, muito vinho.

– Vejo que não se importa com comida de segunda. – comentou Cena, observando-a do outro lado da mesa. Lyvlin tentou responder algo, mas um cacho inteiro de uvas se colocou na frente.

Não se dera conta da fome que sentia. Quando terminou um ajudante de cozinha lhe lançou um olhar respeitoso, mas toda a atenção da cozinha estava para a preparação do jantar que seria servido em poucos instantes. Cozinheiros gritavam comandos para serviçais e Lyvlin tinha a constante sensação de estar no caminho das pessoas. Tomou a segunda taça de vinho de uma só vez e o líquido adocicado demais quase a fez vomitar tudo. Controle-se, eles já a odeiam sem ter que limpar a refeição que acabaram de cozinhar do chão. Forçou-se de pé e respondeu a pergunta de Cena com um acenar de cabeça, mesmo sem ter entendido nada.

Quando o barulho da cozinha começava a se tornar menos insuportável Lyvlin percebeu que deveriam estar a caminho dos dormitórios. Não queria ter que dividir o cômodo com crianças de sete anos porque imaginava que deveriam ser tão barulhentas quanto os cozinheiros e suspirou de alívio ao ouvir que isso não iria acontecer. Segundo Cena os aprendizes eram divididos de acordo com o tipo de magia que apresentavam, o que dividia os salões particulares em três porções distintas. A de Vaus não era ocupada há décadas por causa da proibição e os alquimistas tinham exigido um espaço próprio desde que ocupavam uma vaga no conselho. A Lyvlin isso parecia justo, mas Cena não escondia seu escárnio.

– Chamamos de circo. Não na frente deles, claro. Ou poderia acabar com um rabo de esquilo.

– Isto não soa correto de uma conselheira. – ouviu-se dizendo quando pensou em Adisa.

– Muitas coisas não o são. – Cena entrou em um corredor paralelo e enxotou alguns garotos que deviam ter treze anos e que ao vê-las automaticamente esconderam algo por trás das costas.

– O que isto? - Cena quis saber assim que notou o movimento.

– São... Ah... – começou um deles, olhando para o outro. Cena cruzou os braços e o encarou também.

– São... ?

– Escritos para o teste de amanhã Cena. – confessou o outro – Apenas pensamos que talvez não realmente precisaríamos decorar todo o encantamento dos dardos congelados.

– Oh, mas esse encantamento é realmente divertido. Estão treinando com espantalhos?

– Felice disse que seria com um voluntário, senhora.

– Então é melhor se certificarem de não se voluntariar.

– Mas ninguém nunca quer se voluntariar e Felice simplesmente aponta qualquer um.

– Nesse caso acho que devem treinar para acertarem o traseiro de alguém quando ela pedir um.

Os garotos a olharam com olhos arregalados, depois trocaram um pequeno sorriso.

– Podemos ficar com estes aqui? - perguntaram estendendo os pedaços de pergaminho amassado.

Cena anuiu.

– Apenas não se esqueçam de aprender o encantamento depois. Não seria lá muito honroso morrer em um campo de batalha porque não conseguiram ler a cola rápido o suficiente, não é?

Lyvlin guardou o comentário para si quando continuaram a andar. Sabia que esse era mais um exemplo de que Cena não era uma pessoa correta ou que levava o seu cargo de conselheira como se esperava tradicionalmente. E ao mesmo tempo significava que não estava mentindo para ela ou fingindo ser algo que não era, o que no fim dava no mesmo. Com Raoul a história havia sido diferente, mas com ele ela se acertaria mais tarde. Cena poderia ter um pé em cada lado da moralidade, mas ambos estavam no chão sobre uma imagem que ela própria construíra sem permitir a interferência de ninguém. Quando abriu a porta de um dormitório individual que contava com uma pequena janela para a baía Lyvlin poderia lhe apertar um beijo na bochecha.

– Uma última coisa... – começou Cena, mantendo a porta aberta – Palavras andam rondando a academia desde que o Ligeiro aportou hoje cedo, elas afirmam que você retornou Desmera de Anwar.

– É disso que chamam o que fiz? Não sei se é verdade, conheço muito pouco de magia.

– Algo me diz que Urobe terá algo para se preocupar quando isto mudar, você não deveria ser capaz de fazer isso, ninguém deveria.

– Apenas queria ajudá-la. – e salvar Ezra, mas sobre os dois ninguém precisava saber.

– Não estou acusando-a Lyvlin, se soa assim minha inabilidade com as palavras está se mostrando de novo. – seu tom tornou-se sério – Obrigada por salvar Desmera, eu lhe devo.

Quando Lyvlin estava prestes a abrir a boca para perguntar sobre o motivo de seu agradecimento Cena apressou-se a continuar:

– Fique confortável, mas não demais. Amanhã a essa hora vai estar desejando não possuir dom algum.

– Isso não precisa esperar para amanhã. – respondeu Lyvlin, deixando a mão deslizar sobre a cama. Os cobertores estavam limpos e o travesseiro deveria ser de penas de alguma ave qualquer, lutou para não se deixar cair de uma só vez. Sabia que não teria dificuldades para dormir naquela noite. Mesmo com Firdos, mesmo com o rei. Despediu-se de Cena e assim que a porta se fechou a garota foi até ela em busca de uma chave. A encontrou na fechadura e só quando o trinco se empurrou trancando-a deixou os ombros relaxarem. O conselho não tinha sido exatamente o que esperava e culminara em algo que ela deveria ter esperado, mas empurrado de lado porque confiara em Raoul. Raoul. Sentou-se na cama e olhou através da pequena janela. Não funcionou muito bem porque havia uma cortina de tecido fino ondulando em sua frente. Não conseguiu entender a utilidade daquilo já que o luar conseguia passar através do pedaço de pano delicado e em nada ajudava a abafar o barulho das ondas no cais. As ondas a fizeram lembrar-se do Ligeiro e o Ligeiro a fez se lembrar de Ezra. Quanto tempo ficaria sem vê-lo? Talvez conseguisse se esgueirar para fora do Monte do Rei, mas a oportunidade não deveria vir nos primeiros dias. Nos primeiros dias todos os olhos estariam sobre ela, testando-a e moldando-a aos seus próprios julgamentos. Lyvlin não se importava, a única coisa que a incomodava era ter que prestar serviços a um rei que estava longe de gostar, quanto mais adorar. Poderia ser até forçada a prestar algum juramento, mas seria possível quebrá-lo depois com facilidade? Chutou as botas para longe e finalmente deitou-se, os pensamentos a sufocá-la em um abraço dominante.

O barulho das ondas batendo contra pedras começou a irritá-la. O barulho era tão grande que mais parecia que o mar se estendia à sua porta e não dezenas de metros colina abaixo. Tampou as orelhas com as mãos, mas o silêncio absoluto não a agradou mais que o vai e vem. Quando as afastou as ondas voltaram, mas também havia algo novo. Ergueu-se abrindo os olhos e ficou o mais parada possível. Lá estava de novo, a voz entre o quebra-mar da baía. E cantava. Era uma voz feminina, disso tinha certeza. Tão bonita que mesmo não entendendo as palavras a fez se concentrar ao máximo para isolar qualquer outra coisa. Cantava sobre coisas que Lyvlin não compreendeu e o fez durante um bom tempo. Foi o tempo em que não se preocupou com mais nada, mas assim que terminou foi deixada a sós com o barulho das ondas se quebrando. Abraçou as penas, imaginando o que faltava acontecer ainda ou que espécie de cidade era aquela, mas logo seus pensamentos se voltaram para o que faria a seguir.

Talvez não precisaria pensar sobre aquilo agora, talvez precisasse apenas se focar em sobreviver ao dia seguinte e confrontar eventuais juramentos quando eles aparecessem. Sim. Não seria no dia seguinte, nem no depois dele e com isso ela poderia viver. Por enquanto.


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Notas finais do capítulo

Ooooooook, esse e o próximo capítulo foram oficialmente os mais difíceis de se escrever. Não tanto pela cronologia dos eventos, mas pelo combo preguiça + universidade + trabalhos da universidade e no fim não saber onde terminar de escrever. O que resultou num capítulo de vinte páginas que tentei dividir mais ou menos no meio (sim, isso significa que o próximo capítulo está prontíssimo). O capítulo seguinte será postado no próximo fim de semana ou no seguinte, dependendo dos comentários porque agora vou trabalhar em outras histórias que estão completamente negligenciadas, shame on me Ç______Ç Mas agora aparentemente o pior da universidade passou por enquanto, o que significa capítulo de melhor qualidade yeeeyps. alguns de vocês já deram uma olhada, mas para os desavisados que tiverem curiosidade, deem uma olhada nos recortes da história das Crônicas dos Três reinos aqui http://fanfiction.com.br/historia/340808/As_Cronicas_dos_Tres_Reinos_Recortes/NOVIDADE: adicionei mapas na sinopse, deem uma olhada se quiserem



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