As Crônicas dos Três Reinos: Ciandail escrita por JojoKaestle


Capítulo 12
Mentora




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“Eu me provei e como recompensa me enviam para a morte certa. Eu me provei e me entregam de bandeja para aqueles que com suas línguas bífidas sibilam que tudo não passa de sorte. Eu me provei e me arrastam para o sul.”


Cavalos de batalha são coisas muito finas. Os orgulhosos animais recebem treinamento para não se assustarem com barulhos de guerra e para não desviarem de guerreiros inteiramente armados e cobertos por armadura. Podem fazer a diferença, pois mordem uma mão desprotegida sempre que podem, fazendo o oponente largar a arma ou podem escoicear seu caminho para fora de um pequeno cerco. Simplesmente atropelar o inimigo com seus pesados cascos também é uma habilidade bem-vinda e muito utilizada. Enquanto galopava com Arcturus em riste em direção do que restara do bando de ladrões Lyvlin percebeu que cometera um terrível erro, na verdade dois. O cavalo abaixo de si claramente não possuía treinamento algum, coisa que ficou muito clara quando refugou de um dos homens caídos na neve e, revirando os olhos, tentou disparar para o lado oposto. Gritar também não fora uma boa decisão, porque ainda que tivesse chamado a atenção para ela, fazendo os homens soltarem Raoul, também significava que se via cercada por cinco ladrões e não soubesse ao certo o que fazer.

Encarou os oponentes, todos eles peles e machados. Dois também tinham facas de caça amarradas às ancas. Se posicionou diante de Raoul, tentando manter a voz e o cavalo sob controle.

– Olhem – gritou para os rostos vermelhos e mal-encarados – É um belo cavalo, podem ficar com ele se quiserem, não fazemos questão. Ofereceria o meu também, mas parece ter fugido quando teve a chance. Não perdem muita coisa, garanto. – arriscou uma olhadela para Raoul. Estava machucado, mas talvez não fosse tarde demais – Meu amigo ali tem um belo casaco de peles e podem levar a túnica e todo o mais, aposto que conseguem um bom preço por eles.

– É uma menina. – disse um deles e pela forma como sorriu para os outros Lyvlin soube que cometera o pior erro até agora.

– Seu amiguinho metido matou alguns dos nossos. Vai devolver eles também? Carregam algo capaz de trazer os mortos de volta?

Negou com a cabeça, sentindo o coração martelando em seu peito.

– Foi o que pensei. – falou o mesmo homem. Parecia ser o líder do grupo – Vamos pegar o cavalo, os casacos e tudo que vocês tem de valor, não se preocupe. Mas antes disso seu amiguinho vai olhar para as próprias tripas derramadas pelo chão e você... – lambeu os lábios, deixando para trás um rastro de cuspe – Você nos dará diversão esta noite.

O rápido movimento os pegou de surpresa. O homem escolhido pela garota era o mais franzino do grupo e o que olhava o tempo inteiro para Raoul, como se receasse que se levantasse novamente. Enfiou Arcturus em seu pescoço antes que percebesse o que estava acontecendo. Quatro. Ouviu o líder urrar de raiva, mas estava bloqueando o machado daquele que a chamara de menina.

– Para trás! – gritou, mas sabia que não estava em posição de exigir coisa alguma. O braço de espada começou a falhar.

– Não machuquem o cavalo! – avisou alguém à sua esquerda e tentou usar isto ao seu favor. Esporeou o garanhão adiante, mas o cavalo relinchou apavorado ao se ver rodeado por armas e empinou, fazendo Lyvlin soltar as rédeas e agarrar-se a crina alva. Quando um dos homens tentou agarrar as rédeas para dominar o cavalo a garota acertou a sua mão, o membro saltou para a neve e seu dono segurou o toco sangrento e urrou, se afastando. Três. Pensou confiante. Assim que os quatro cascos do garanhão atingiram a neve sentiu duas mãos a agarrarem pela cintura. O animal dançou nervosamente de um lado para o outro enquanto Lyvlin lutava para se manter na sela. Viu Raoul levantar-se com dificuldade e o líder do grupo correr em sua direção. Chutou o homem que a agarrava no rosto com toda a força e ele cambaleou para trás. Dois.

– Se afaste! – sibilou para o único homem que permanecia voltado para ela e quando não atendeu fez o cavalo avançar em sua direção. Estava coberta pelo sangue de seus companheiros e parecia preenchida de fúria, o que rompeu qualquer lealdade que tivesse com o líder de seu grupo. Tropeçou, se recompôs e correu para dentro da floresta. Lyvlin o observou desaparecer atrás dos pinheiros, virou o cavalo e encarou o último dos ladrões que permanecia de pé. Um. Pensou triunfante quando seus olhos caíram sobre o líder. Sabia que deveria tomar cuidado com este último, mas a embriaguês da luta pulsava em suas veias e afastava qualquer sensatez. Havia derrubado quatro homens feitos, homens que de uma forma ou de outra foram treinados para roubar e matar desde sua juventude. A espada parecia ter adquirido vida própria e exigia sangue.

E foi para atender o seu desejo que avançou sobre o homem. Estava de costas para ela, mas quando chegou ao seu alcance repentinamente se virou, o machado cortando o ar e errando o pescoço do garanhão apenas porque Lyvlin puxou as rédeas para trás com violência. O animal relinchou apavorado, as orelhas voltadas para trás e teve medo de que a derrubasse.

– Pouco me interessa o cavalo – disse o homem. Era enorme, os cabelos negros presos em uma trança e os olhos brilhantes e perversos. A boca se torcia em um sorriso. Lyvlin soube que se conseguisse derrubar o cavalo estaria perdida – Quero você, vadia, e quando terminar com você vai sonhar com um golpe de machado como esse.

Não respondeu. Estava tentando manter-se fora do alcance, o cavalo dançava sobre seus cascos, completamente encharcado de suor. Não manteria o ritmo por muito tempo. Seu oponente cortava o caminho para Raoul, o que a impedia de fugir. Ao menos se pretendia levar o rapaz. Mordeu os lábios, sentindo o próprio suor descer pelo seu rosto.

– Diga – lançou o desafio ao homem, vendo uma movimentação atrás dele – Como exatamente treinou os seus homens? Parecem carecer de qualquer habilidade e lealdade. Ou acontece muitas vezes? Perder todos eles para dois simples viajantes, quero dizer.

– Farei você comer bosta para calar essa sua boca!

– Duvido que consiga ao menos tocar em mim.

– Não. Não apenas tocarei em você. – estava lívido, o machado descia com mais força a cada golpe, mas cada vez menos preciso – Esfolarei você e passarei sal por todo o seu corpo e pendurarei para secar como um porco. Ficará assim por três dias, nua e pendurada para todos verem. Depois queimarei a sua carne, mas com cuidado e devagar, para que não perca nada da diversão. Apenas então tocarei em você e é apenas neste momento que a dor de verdade começará, sua porca no cio!

– Estranho falar tanto de porcos – devolveu Lyvlin, abaixando a cabeça no momento exato – São seus familiares? É isso? Quando voltar para casa virão dois leitões para abraçá-lo e uma porca enorme estará preparando algo na fogueira? - permaneceu em silêncio por um instante, porque não vinham mais insultos - Roubou a sua leitoa também? Deve ter sido, não consigo imaginar uma mulher que deitaria voluntariamente com alguém com o seu rosto!

O homem urrou, mas o grito de raiva logo se transformou em um guincho esganiçado quando Raoul surgiu atrás dele.

– Foi rude Lyvlin. – reprovou, intensificando o aperto de seu braço que envolvia firmemente o pescoço do homem. Puxou com a mão livre uma de suas lâminas e a enterrou em sua garganta deixando o homem deslizar até a neve numa mistura de sangue e grunhidos.

– Se não tivesse mantido a atenção dele sobre mim não daria certo. E uma das formas mais fáceis de conseguira atenção de alguém é xingando-o, sei como funciona.

– Apenas não espere que todos os oponentes se deixem levar pelos seus insultos. Um bom guerreiro coloca a concentração acima de sua raiva e isso vale para você também. Se ele – indicou o homem caído na neve com o pé – tivesse sido um pouco mais inteligente, estaríamos mortos.

– Sim, ainda bem que voltei para salvar a sua vida. – avaliou os ferimentos e fez uma careta – Devo tentar puxá-lo para a sela ou carregá-lo como um saco de batatas?

Raoul a olhou por um momento, depois apalpou o seu tronco em busca de cortes. Recebera um golpe na cabeça, cujo corte ainda sangrava bastante.

– A maioria do sangue não é meu. – avaliou por fim – Poderei tratar tudo que necessita atenção no estrado. Por mais difícil que possa parecer Lyvlin, você ainda desobedeceu uma ordem direta.

– Não gostei da ordem. – estendeu uma mão para ele – E é difícil levar as suas palavras a sério quando está coberto de sangue e ferimentos.

– Meu arco? - quis saber, virando-se para procurá-lo.

– Não vai querer procurar um arco branco na neve na última luz do dia.

O homem a ignorou, deu alguns passos e levou a mão ao ombro. Lyvlin revirou os olhos e saltou da sela.

– Se formos atacados duas vezes no mesmo dia espero sinceramente que sua vaga na guarda real não seja vitalícia. Tome. – disse entregando as rédeas do garanhão em suas mãos.

Voltou-se e buscou qualquer saliência na neve que pudesse abrigar o arco perdido. Não era uma tarefa fácil, o céu começava a se tornar cada vez mais escuro, fazendo com que conseguisse enxergar com facilidade o contorno dos mortos e o sangue. E havia muito sangue. Sangue que começava a entranhar-se na neve, formando uma casca rubra e gélida que se quebrava por baixo de seu peso. A penumbra de início da noite não foi suficiente e a garota deu as costas para o rapaz, o estômago protestando contra o vislumbre dos corpos mutilados. Achou que os olhos de um dos mortos a seguiam, vidro que refletia o monstro que se tornara. Não era isso que ela era agora, um monstro? Tirara a vida de pessoas sem hesitar, fora fácil. E que os deuses a perdoassem, tinha gostado. Estava se defendendo. Uma voz soprava em seu ouvido. Qualquer pessoa o teria feito, você fez bem. Ao menos conseguira manter o semblante firme diante de Raoul, agora mal conseguia manter a bainha de Arcturus firme para guardar a espada. Qualquer pessoa o teria feito, mas teria gostado de fazê-lo? Algum tempo naquela busca a fez se sentir frustrada e quase ignorou o aviso de Raoul sobre evitar acender fogo. Ambos carregavam acendalha seca em pequenas bolsas de couro e Lyvlin achou que era melhor improvisar uma tocha do que procurar na neve a noite inteira. Sentia frio e cada respiração emitia sua própria fumaça.

– Não é um arco comum. – Raoul a observava revirar a neve com as botas com apreensão, segurara as rédeas sem se opor, provavelmente porque não estava acostumado a receber ordens de simples garotas e sua educação o impedira de recusá-lo. Ou os ferimentos o enfraqueciam mais do que admitira. De qualquer forma precisavam deixar aquele lugar o mais rápido possível, pensava Lyvlin, nada impedia os homens que fugiram de retornarem com reforço.

– É um arco longo feito de pura madeira de árvores sussurrantes. – continuou Raoul como se estivessem diante de uma aconchegante lareira e não cercados de toneladas de neve - Já ouviu falar delas?

– O suficiente para saber que são lendas. – resmungou Lyvlin.

Mesmo sem enxergá-lo soube que o rapaz dava mais um de seus sorrisos pacientes. Sorrisos que pareciam sentir pena de sua ignorância. Sorrisos que diziam ah, mas ainda não viu nada. E por isso sentiu-se seriamente tentada a dizer que o arco havia quebrado no meio da confusão quando o avistou meio enterrado por um monte de neve ao lado da estrada.

No lugar disso o devolveu para Raoul e o ajudou a subir no garanhão que ainda não parecia totalmente recuperado da pequena batalha. Bem, somos dois. Pensou a garota quando se alçou para as costas do cavalo.

– Apenas siga adiante, não estamos muito longe agora. – disse Raoul atrás dela.

A garota anuiu e encorajou o garanhão adiante. O caminho era iluminado pela lua que já se erguia no firmamento em todo seu esplendor. Lyvlin olhou para a neve que mais parecia um tapete cintilante e um calafrio a percorreu. De alguma forma sentia olhos a observando da escuridão, escondidos pelos densos pinheiros. Um lobo uivava distante e por um momento esperou que Laoviah saltasse sobre ela e a arrastasse para longe. Ouviu um resmungo de reclamação de Raoul e diminuiu o galope, aconselhando-o a descansar até que chegassem. Protestou por um momento, mas logo estava transferindo todo o seu peso para as costas dela.

– Ótimo. – murmurou. Os cachos faziam cócegas em sua nuca.

Não se atrevia a cavalgar com a rapidez que queria, Raoul poderia acabar desabando no caminho e seria uma pena se morresse caindo de um cavalo depois de tudo pelo que passara. Quando estivesse melhor lhe perguntaria se um verdadeiro guerreiro gostava de matar. Vez ou outra ouvia galhos se partindo na floresta e cada vez que pensava em desembainhar a espada tentava se convencer de que barulhos assim eram comuns em uma floresta. Pare de se comportar assim. Até parece que é a primeira noite que passa debaixo da copa de árvores adormecidas. Mas em todas as outras vezes contara com Ezra ao seu lado. Gostaria de saber como o amigo reagiria se a visse agora, nem uma semana fora e já arriscando a vida por um integrante da guarda real. Provavelmente a encararia descrente, com o semblante de quem teve arrancado a casca de uma velha ferida. Uma ferida que nunca cicatrizara por completo. Afastou as lembranças de Ezra e Aidan, segurou as rédeas com firmeza e esporeou o garanhão.

O estrado não corria risco de passar despercebido por ninguém. Erguia-se numa mistura de luzes e barulho em uma clareira que deve ter sido aberta com muito esforço e machados. Era uma robusta construção de três andares, metade pedra, metade madeira. Dos estábulos vinha o cheiro dos animais que sobreviveram à matança do outono, quando grande parte deles era separada e morta para armazenar a carne para o inverno. A ideia de carne salgada armazenada em barris ou pendurada para secar acima de fogueiras de fumaça fez o estômago de Lyvlin acordar. Parou o cavalo ao lado de um carro de boi que era descarregado por dois meninos.

– Podem ajudar por um instante? - perguntou ao garoto mais próximo descendo do garanhão – Minha montaria precisa de uma porção extra de feno e meu amigo de algumas mãos para carregá-lo para dentro.

O menino abriu a boca para perguntar algo, mas quando Lyvlin foi iluminada pela luz das janelas apenas anuiu e gritou para que o outro chamasse alguém do estrado. Desamarrou a pequena bolsa que Raoul carregava na garupa e lembrou-se de que a maioria que carregavam estava amarrada nas costas de seu cavalo. Não será de grande serventia para ninguém agora. Pensou, imaginando o cavalo aterrorizado galopando pela floresta. O mais provável é que acabasse como comida de lobos. O pensamento a deixou triste.

– Eu consigo andar. – reclamou Raoul quando dois homens saíram do estrado para ajudá-lo – Lyvlin, diga que estou bem.

– Ele precisa de uma boa cama e talvez alguma ajuda com os ferimentos. – retrucou a garota – Vocês não contam com alguma pessoa que possa ser de auxílio numa situação assim?

– Estamos apenas de passagem. – desculpou-se um deles – Talvez o estalajadeiro saiba de algo.

Raoul foi encaminhado para dentro meio mancando, meio arrastado. Lyvlin se certificou de que o garanhão fosse tratado bem e o seguiu. Quando entrou viu-se em meio a uma confusão. A estalagem estava lotada. Em um canto um grupo de homens bebia o que parecia ser uma quantidade impossível de cerveja, um bardo cantarolava algo sobre um dragão e um burro no meio do aposento, mas não recebia muita atenção de ninguém. Risadas e conversas enchiam o ar e uma atendente se desdobrava para manter todos satisfeitos, seus cabelos castanhos estavam soltando-se de um coque frouxo e pérolas de suor surgiam em sua testa. Passou correndo por Lyvlin e foi direto até onde os homens soltaram Raoul sobre uma cadeira. O rapaz parecia miserável por baixo de todo aquele sangue e a cor deixara o seu rosto. O fato de receber os gritos de uma mulher gorducha não parecia estar ajudando.

– Estou bem. – repetia Raoul quando chegou perto o suficiente para ouvir o que estava sendo dito – Preciso de um banho quente, linha e agulha e um espelho. Estarei novo amanhã.

– Estarei novo amanhã. – imitou a mulher furiosa, as mãos nos quadris. Lyvlin olhou para os lados, mas além da atendente ninguém parecia perceber a discussão. – Eu disse para você, disse que levar apenas Casimir não serviria. – apenas agora parecia perceber a ausência do outro, porque levantou os olhos como se procurasse algo e fulminou Lyvlin pelo caminho – E onde ele está agora? Típico. Fazer a besteira e depois sumir em uma nuvem de fumaça prateada, que conveniente.

– Ena, por favor. – interveio Raoul com um gesto fraco – Casimir está em Faolmagh, a campanha não estava indo como o esperado.

– Bem, isto eu estou vendo. – disse. Lyvlin deu um pequeno passo para trás, enfrentaria de bom grado um bando de bandidos se isso a mantivesse longe da fúria daquela mulher. Era mais velha, deveria estar com quase quarenta anos. Talvez mais, mas seus cabelos ainda eram pretos e cheios, era pequena, mas seus braços e postura transmitiam que poderia derrubar um touro se achasse necessário. Ena balançou a cabeça na direção de Lyvlin – Quem é essa?

– Lyvlin Tessart. – respondeu Raoul para afastar qualquer desentendimento de que se tratava de um animal que encontrara na rua e esperava manter – A busca está completa, podemos voltar a Ciandail.

Os olhos de Ena voltaram-se novamente para a garota, mas agora seu rosto redondo estava surpreso e triste.

– Achei que fosse mais –

– Ela também precisa de um bom banho Ena – interveio Raoul – Não deve estar machucada, mas dê uma olhada apenas para confirmar.

Antes que conseguisse dizer algo Ena a pegou pelo braço e a arrastou para um quarto do andar superior onde uma grande bacia de madeira aguardava cheia de água. Deixou que Ena a despisse e a empurrasse para dentro. Estava quente demais, mas não teve coragem para reclamar.

– Dê-me o braço – ordenou a mulher com um pedaço de esponja nas mãos – Você está uma bagunça.

– Sinto muito. –disse Lyvlin, reprimindo uma careta. A esponja estava áspera demais – Então você é integrante da guarda real também?

Já esperava por uma negativa, mas Ena irrompeu em uma gargalhada que fez suas bochechas corarem.

– Claro que não. Já imaginou alguém como eu defendendo nosso rei? Não, não, não. Não é trabalho para mim. Não para uma mulher como eu.

– Parece uma mulher muito capaz.

– Raoul mandou que me amolecesse com palavras para esquecer a burrice que cometeu?

– Raoul não manda em mim.

Ena abriu um pequeno sorriso.

– Gosto de você. – disse, passando para o outro braço com mais cuidado – Espero que ainda esteja viva quando eu voltar para Ciandail.

– Espero continuar viva também. – respondeu, tentando sorrir. Não conseguiu – De onde conhece Raoul e Casimir se não é da guarda real?

– Não é preciso integrar o grupo dourado para defender os interesses da coroa, mas isso você ainda aprenderá. Agora se abaixe um pouco, sim? Estas orelhas precisam de uma limpeza.

Lyvlin obedeceu e o restante do banho seguiu com poucas palavras. Tentou dizer que sabia tomar banho e como se enxugar, mas Ena a ignorou. Também deu de ombros diante das afirmativas da garota de que não precisava de ajuda para escovar os cabelos (mais porque sabia como era uma tarefa dura do que por educação). No final permaneceu calada enquanto a mulher dava o seu melhor tentando desfazer os nós de seus cabelos. Depois do que pareceu a noite inteira Ena deu um suspiro e disse que tinha terminado.

– Não vou deixá-la vestir essas roupas cheias de sangue e suor. Não trouxe uma muda?

– Estava no cavalo que perdemos no caminho.

– Bem. – disse Ena sem esconder o alívio – Aposto que eram horríveis. Vou buscar um dos vestidos de Sinnie, deve dar em você.

Quando abriu a boca para dizer que preferia calças Ena já tinha partido. Sentou-se no canto da cama, sentindo frio. O quarto não contava com lareira. Os cabelos úmidos pregavam-se em suas costas nuas e puxou as pernas de encontro ao peito e as abraçou. Era bom sentir a pele limpa de todo aquele sangue. Agora que toda a ação passara era difícil dizer que tudo fora real. Perguntou-se onde Raoul estaria e se seus ferimentos eram tão ruins como pareceram quando chegaram.

– Ah, aqui está. – anunciou Ena entrando como um pequeno vendaval. Segurava um vestido de linho simples, mas de corte bonito. Enfiou-o pela cabeça de Lyvlin sem pestanejar, para o alívio da garota trouxera também finas calças de algodão para usar por baixo.

– Raoul mandou chamá-la para o seu quarto. – disse, mostrando-se satisfeita com o trabalho. Enfiou um pequeno espelho em suas mãos. – Tome, o entregue para ele.

Antes que pudesse reagir já estava sendo empurrada para a porta do quarto da frente. Ena fez um movimento enérgico com as mãos para que batesse e desapareceu no corredor. A garota a observou se afastar a passos largos, depois pigarreou e bateu na porta. Esperava que já estivesse vestido.

A atendente passou por ela e Lyvlin pôde jurar que estava chorando. No meio do corredor virou-se para ela e mostrou a língua. A garota suspirou e deu de ombros.

– Isso foi Sinnie, eu suponho. – disse entrando no quarto.

– Sim. Ela tem um temperamento muito instável. E não parece entender o que digo na maioria das vezes.

– Ou ela talvez não queira entender. – retrucou a garota se aproximando. Raoul estava deitado na cama, com travesseiros elevando o seu tronco. Estava vestido da metade para baixo, o que já era bom. O corte na cabeça não era tão ruim como imaginava, mas quando olhou para baixo soltou um pequeno assobio.

– Está horrível. – Lyvlin sentou na beira da cama e encarou o ferimento. O corte fora limpo, mas isso nem de longe lhe conferia uma aparência boa. Vinha do alto do ombro esquerdo e seguia em diagonal até atingir o seu peito. Quando chegou mais perto viu que não era muito fundo e não conseguiu conter um suspiro de alívio – Vai precisar costurar.

– Por isso você está aqui. – Raoul acenou com a cabeça para duas agulhas e uma linha de tripa de gato que repousava sobre o criado-mudo.

– Não sei costurar. – disse a garota, sentindo o pavor crescendo. Odiava costurar e era muito ruim. Raoul acabaria como um dos horríveis lenços que tentara bordar há tantos anos atrás.

– Não, você entendeu errado. Eu vou costurar e você vai segurar o espelho, Ena te deu um, não foi?

Anuiu com a cabeça.

– Não sei se é uma boa ideia. Com certeza existem pessoas que sabem mais sobre medicina do que nós na estalagem.

– Disso eu duvido. – retrucou o rapaz, molhando um pedaço de pano com um líquido de um frasco ao seu lado. Estendeu-o em sua direção – Se eu começar a perder os sentidos, você pode esfregar isto debaixo do meu nariz. Levante o espelho um pouco mais, sim. Agora é só manter nesta posição.

Observou-o esquentar a agulha nas chamas de uma vela e colocar a linha. Quando se voltou para o ferimento deu um pequeno sorriso.

– Não posso trabalhar se o espelho está tremendo tanto.

– Não estou acostumada a ajudar pessoas a se costurarem.

– Uma garota que luta contra um bando de banditos não deveria se sentir desconfortável com uma pequena agulha. Você lutou bem Lyvlin, ainda lhe devo agradecimentos.

– Sim, deve. – disse a garota, contente com a conversa. Se não parasse de falar talvez não desmaiasse.

– E é muito boa no manejo da espada, Gilbert a ensinou? - quis saber Raoul observando a agulha e decidindo por devolvê-la às chamas.

– Gilbert nunca me ensinaria, achava que é perigoso demais. Eu e um amigo aprendemos um pouco com o ferreiro do vilarejo. Vivia se amostrando, dizendo que tinha lutado no exército do rei, eu não tenho certeza se era verdade, mas sabia lidar com espadas e isso era o suficiente para mim. Mas logo se cansou de nós e se recusou a nos deixar treinar com espadas de verdade, então tivemos que nos virar sozinhos. – ainda lembrava como ela e Ezra iam brincar na floresta e voltavam cobertos de hematomas. Sorriu, tinham sido os melhores verões de sua vida.

– Espero que não canse seu braço. Se Casimir estivesse aqui – disse Raoul, enfiando a agulha em sua pele e mantendo o rosto impassível – Ele simplesmente fecharia o corte com magia, mas como não está temos que recorrer a métodos mais... Tradicionais.

– Sim, Casimir foi para Faolmagh. A campanha ao qual se referiu com Ena, era a campanha do príncipe, não é¿ De Darion¿

– Darian. – corrigiu Raoul, fazendo uma pequena careta enquanto puxava a linha pelos furos – Sim, enquanto você dormia recebemos um mensageiro que pedia a sua ida imediata à fortaleza. A partida de Casimir certamente será mais do que suficiente para resolver quaisquer problemas, mas nos deixou numa situação delicada.

– Raoul – começou Lyvlin e parou. Estivera reunindo coragem para a pergunta desde o momento em que soube quem eles eram. No começo estava com medo de fazê-la porque poderiam resolver matá-la, agora o nó que fechava a garganta tinha um motivo bem diferente.

– Vai desfalecer? - perguntou o rapaz, parando o trabalho e voltando os olhos para ela.

– Não. – respirou fundo, sustentando o seu olhar – Você e Casimir estiveram no norte o tempo inteiro, me procurando. E eu sei que talvez não queira me contar por achar que não é a pessoa certa para fazê-lo ou pelo menos é isso que gosto de repetir para mim mesma porque a alternativa me parece muito ruim, mas sei que isso tudo envolve a minha mãe.

Uma tênue ruga desenhou-se na testa do jovem.

– Continue.

E então ela despejou tudo em seus braços. Ou quase tudo.

– Por acaso eu sei que ela estava me protegendo de ser descoberta, não sei como, mas estava. E quando ela morreu essa proteção foi quebrada e a minha vida tornou-se um caos. Não importa o caminho, mas tudo terminou comigo esbarrando em vocês. Não acho que foi uma coincidência.

– Você acha que nós a matamos para encontrá-la? - perguntou Raoul, sem demonstrar surpresa.

– Você não acharia?

– Se a sua mãe foi capaz de escondê-la aos olhos de todos por todos estes anos, não acha que seríamos inofensivos a ela?

Lyvlin mordeu os lábios.

– Casimir não seria.

– Vejo que não se deu muito bem com Casimir, mas isto não é motivo para acreditar que ele seria capaz de fazer isto. E acredite quando digo que nunca lhe faria mal.

– Está tentando me convencer de que Casimir não mataria para cumprir o seu dever?

– Mataria qualquer outra pessoa talvez, mas nunca Layil. – Raoul ficou irredutível.

– Como você sabe o nome dela? - quis saber Lyvlin, baixando o espelho.

– Todos sabem Lyvlin. – quando viu que o interromperia ergueu um pouco a voz - E vou me antecipar a você, Casimir jamais faria mal a Layil porque a amava.

– O quê?

– A amava e a teria defendido com todas as suas forças se a tivéssemos encontrado a tempo. Mas o destino é inexorável. Achei que a notícia o enlouqueceria, depois de todos estes anos que passou procurando-a, se agarrando ao instinto de que ainda vivia quando todos duvidavam de suas palavras. Se havia uma pessoa capaz de encontrar Layil seria Casimir e infelizmente mais alguém o percebeu.

– Do que você está falando? O que minha mãe era de Casimir? – perguntou Lyvlin.

– Achei que soubesse desde o início: Layil transformou Casimir no que ele é agora. Ela foi sua mentora.



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Notas finais do capítulo

Tudo está mais enrolado do que Lyvlin (e talvez vocês) pensava.



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