45% escrita por SobPoesia


Capítulo 3
Algo gay




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Instantaneamente tinha ganhado uma nova charada que ficaria em minha cabeça por dias. Além de desvendar essa garota, eu precisava descobrir o que tinha de errado com ela. Foi assim que a minha nova aventura começou.

Entramos no saguão e ela acompanhou cada canto daquele grande quadrado aberto com seus olhos que deveriam não enxergar. Ela notou as cadeiras confortáveis e a bancada azul-escuro na qual a recepção se localizava. Caminhamos para lá em um silêncio estranho. 45% conversou com a recepcionista sobre sua estada e a mesma a entregou um outro informativo, Bruni começou a ler o mesmo e inconformada com a sua visão, disse:

–Vamos começar com o tour? Esse papel pode ser lido em seu quarto, mas a sua nobre companhia precisa estar em algum outro lugar em pouco tempo. – tentava de todas as formas atravessar seus óculos com meus olhares, mas não conseguia.

–Claro. – ela sorriu.

Dei meu braço para ela, que o segurou delicadamente e caminhamos. Atrás do balcão havia uma entrada para um corredor cheio de salas frias nas quais eu expliquei que tínhamos de descer para consultas e exames algumas vezes durante as semanas.

Subimos um andar. A ala infantil. Ao se sair do elevador havia uma enorme pintura de um coelho descascado na parede, uma aparição que em algum tempo remoto do passado fora uma novidade e bonito. Ao lado esquerdo do Mister Orelhas Estranhas estavam localizados os quartos das crianças, era uma parte ainda inexplorada por mim. Já ao lado direito estavam as salas de aula. Atrás daquela parede era a cozinha e uma sala de brinquedos. Já a recepção era aos pés daquele medonho coelho. Não havia refeitório ou felicidade naquele andar.

Fomos então para o terceiro, o meu andar. Ele mantinha a mesma configuração, mesmo que não tivéssemos uma pintura medonha, uma cozinha ou uma sala para se brincar, mas sim um grande refeitório e uma parede branca, mas a falta de algo ali não me incomodava.

Antes de mostrá-la os quartos, a levei para o quarto andar. Subimos de elevador e chegamos a pior ala de todo o hospital. Quem costumava subir ali não voltava, exceto eu e Evans, já que o telhado era naquele piso. Aquela era a conhecida ala segura, na qual de um lado haviam as salas de cirurgia e do outro poucos quartos de observação, duas salas de funcionários e duas salas que ficavam vazias, mas já tínhamos achado um uso macabro para a mesma.

Por incrível que se pareça, aquelas não eram as salas usadas para os amassos adolescentes muito ocorrentes. Os pequenos cubículos eram usados para realizar as despedidas.

Nós sempre sabíamos quando iriamos partir, isso se dava ao que foi chamado de “A Aparição de Saint Mary”. O hospital tinha esse nome em homenagem a sua fundadora, uma jovem médica de cabelos pretos que se dizia ter morrido salvando gente naqueles corredores algumas décadas atrás.

Nada de estranho nisso, não é? Não. A verdade é que todos os pacientes que morreriam tinham tido a mesma aparição. Segundo relatos, havia esta sala branca, com um sofá branco e lá estava “Saint Mary”. Uma mulher de longos cabelos negros e uma pele especialmente pálida chamava seu nome e amigavelmente te dizia um número, o problema é que esse número – sempre abaixo de 10 – era, com exatidão, o número de dias que ainda se tinha para viver.

Essa seria uma história muito insana, se não fosse a mesma contada, com os mesmos exatos detalhes e precisão por todos os pacientes que já morreram naquele hospital.

Em vez de tentar entender aqueles fenômenos, tínhamos o aceitado. Então sempre que alguém sonhava com Saint Mary subíamos para alguma daquelas duas salas e falávamos três coisas boas sobre a pessoa que faleceria. Sempre que eu ia a uma dessas coisas ficava imaginando que a única coisa boa que falariam de mim era sobre como meu liso cabelo castanho tinha luzes naturais.

Quando contei isso a 45% ela sorriu e disse que diria algo sobre como eu era a única pessoa que ela já havia visto que era bonita, mesmo com sobrancelhas grossas. O que me arrancou um sorriso automático.

A levei para o telhado e ela gostou da vista. Dali de cima se podia ver um parque, um quarteirão depois do fim da garagem. Sempre haviam alguns drogados ali e eu os observava, pensando que aquele seria meu destino se o mesmo não fosse a morte.

–Te levaria no necrotério, mas esse é o meu lugar de encontros românticos. – suspirei, acabando com todo o clima.

Na verdade, eu estava me sentindo um pouco tonta por andar tanto e respirar pouco.

–Pode me levar lá no final de semana. – ela se segurou em mim.

–Você sairia comigo? – ergui uma das sobrancelhas, eu não sabia se ela sabia que estava fazendo algo gay.

–Eu vou, no final de semana. – ela sorriu, tendo uma pausa – Você é sempre fria assim?

Fechei minhas mãos.

–Má oxigenação. – apontei para Hazel.

–Você deve estar muito cansada de me levar em todos os lugares. – ela se sentou, um pouco distante do parapeito, no meio do telhado.

–Um pouco sem ar... Na verdade eu sempre estou sem ar. Com um pouco menos ar do que o usual. – me sentei do seu lado e coloquei as travas de segurança em Hazel, não queria repetir o incidente.

45% tomou uma pausa, eu não sabia ao certo no que ela estava pensando, mas tomou uma grande quantidade de tempo.

–Você me contaria o que tem? – ela se virou para mim.

–Claro! Porque essa pergunta? –estranhei, provavelmente fazendo alguma careta medonha.

–Seria completamente estranho se alguém não quisesse contar o que tem?

–Sim, seria. Mas se você tem problemas com isso eu não vou julgar, faça tudo em seu tempo. Só te aviso, os outros vão começar a perguntar realmente muito rápido. – procurei meu maço em meu casaco, mas não consegui achar.

–O que você tem?

–Pulmões pequenos, uma bolsa super nojenta de gordura que é pesada e as vezes se infiltra no meu pulmão e o comprime todo o tempo, um coração seletivo, recorrentes embolias pulmonares, um habito horrível de fumar e um humor negro pouco sarcástico. – assim que comecei a falar, coloquei a mão sobre meu peito, como se eu conseguisse sentir ou pegar na doença daquela forma.

–Você realmente tem cheiro de fumante. – 45% olhou para frente e sorriu de canto de boca.

–Muito obrigada pelo elogio. – sorri, entendendo a brincadeira.

–Vamos para o meu quarto. – ela se levantou.

Sabia que estava fazendo algo gay, de novo?

Pegamos o elevador para o terceiro andar. Minhas pernas falharam um pouco e a minha respiração estava pesada, então seguimos para o meu quarto, mesmo que Evans estivesse dopado em sedativos.

As luzes continuaram apagadas, mas entrava um pouco daquela iluminação laranja de fim de tarde pelas cortinas, fazendo com que o quarto fosse visível, até mesmo pelas luzes exteriores que vinham dos quartos adolescentes sem o menor respeito pelas contas caras dos hospitais.

Bruni entrou no mesmo e começou a tatear tudo, desde a cortina, a escrivaninha e minha cama, na qual eu sentei quase instantaneamente procurando recuperar meu folego. Em pouco tempo ela se sentou ao meu lado e segurou minha mão fria.

–O que ele tem?

–Má função renal. Prepare-se para ouvir por toda a noite as nossas máquinas realizarem o que não conseguimos fazer. – tentei segurar a sua mão, mas não tinha muito controle sobre meus membros naquele momento.

–Porque vocês dois dormem juntos? Não tem a mesma doença e são um casal.

Tentei não ficar perdida no: mas você está na ala dos cegos e não é cega. Acabei pensando algum tempo naquilo antes de responder.

–Nossas máquinas fazem realmente muito barulho, então fomos colocados juntos. E eu realmente não ligo de dormir com um cara, sempre tive companheiros de quarto masculinos, me entendo melhor com os homens.

–Mas isso não tem nenhuma tensão...?

–Sexual? – a interrompi e ela assentiu – Não. Nós dois gostamos de garotas. – ri e conclui que ela realmente não sabia que estava fazendo algo gay todo aquele tempo, como ela ficou calada eu resolvi continuar falando, para acabar com qualquer constrangimento – Ele na verdade gosta muito mais de garotas, ele chega a não ficar com nenhuma por medo do que a sua morte causaria nelas. Eu sou apenas má.

–Eu te chamei em um encontro. – ela sorriu.

–Podia ter sido uma saída não tão romântica assim, afinal, vamos a um necrotério.

–Você achou que eu...?

–A verdade é que e queria saber como as coisas iam acontecer. Você pode ser... Eu não sei.

–Mas eu não sou, ok? Eu gosto de garotos!

–Tudo bem, eu respeito isso. – sorri, eu não queria que toda a nossa relação acabasse ali, seria impossível de descobrir qual era a sua doença.

–Ainda vamos em nosso encontro não romântico, antes que você pense em fugir. – ela se levantou.

–Não deixe o gay assustar o hétero para longe de você.

–Acho que isso é impossível.

Bruni começou a mexer em algumas coisas que estavam sobre a mesinha ao lado de minha cama, mas então algo nojento aconteceu.

Evans balbuciou algumas palavras impossíveis de serem entendidas e aquilo não era uma coisa boa. Soltei os tubos de Hazel, fazendo com que eu pudesse andar pelo quarto livremente, porque tudo estava prestes a ficar bem sujo.

Peguei, em baixo da nossa escrivaninha, uma lata de lixo e coloquei em cima da cama de Evans, suspirei e sorri.

–45%, esse não é o melhor lugar para você agora.

–Porque?

Evans pegou a lixeira, acordando subitamente, se sentou, me olhou com olhos assustados e vomitou.

–Por isso.

Bruni sorriu, passou por mim e foi embora, sem cerimonias.


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